EU NUNCA QUIS SER MÃE

Rayssagribeiro
revistaokoto
Published in
3 min readFeb 14, 2023

(Até então)

Tibor Òkòtó

Desde que tenho recordação, sempre tive muita dificuldade de conseguir me ver nesse lugar, e algumas reflexões internas me levaram a crer que talvez parte disso se deve à minha trajetória pessoal.
Porém, vivências recentes vêm modificando o meu olhar para com a maternidade (ou a ideia dela), despertando em mim o desejo de me tornar mãe um dia!
Esse texto é sobre isso, e, sobretudo, sobre a importância de nós, como um povo, negarmos qualquer ideologia que nos afaste ou gere conflito em torno de algo que, na verdade, é o caminho mais natural para nossas vidas.

A nossa visão de mundo determina tudo, né? Inclusive (ou principalmente), os nossos valores. E é exatamente por isso que não conhecer a própria história/cultura é perigoso, porque a gente acaba assumindo a perspectiva alheia como se fosse a nossa.
Na perspectiva ocidental/branca, ainda mais em um mundo que nos cobra cada vez mais “produtividade”, ter filhos, na visão de muitos — especialmente muitAs, passou a representar um atraso de vida, algo indesejado e até mesmo um fardo; o que está intrinsecamente associado à cartilha feminista de empoderamento das mulheres (brancas).
Não se aplica a mim. Não se aplica a nós, pretas, porque a realidade que essas outras mulheres viveram e vivem nunca foi a nossa.

Pois bem, é muito fácil perceber que esse caminho linear ilusório que nos é vendido, de que “você só deve ter filhos quando tiver a estabilidade financeira e emocional necessária, um bom emprego, casa, carro, etc.” é bastante contraditório, já que estamos constantemente em movimento, e naturalmente passamos por oscilações, diferentes momentos e fases. Nesse sentido, nunca existirá um momento “ideal” em que tudo vai estar alinhadinho para que, só então, você possa dar um passo importante.
Essa falsa ideia, na verdade, serve ao propósito de ser mais um obstáculo, um empecilho, para que a gente vá, pouco a pouco, abdicando de nossa continuidade; porque não é preciso pensar muito para sacar exatamente quem são as pessoas que estão mais próximas, e as que estão mais distantes, de alcançar esse tal ideal.

A lógica então é a seguinte: se você, pessoa preta, não conseguiu se aproximar do ideal de sucesso do branco, você não está qualificado para deixar descendentes. Simples assim.
Eu aposto que você, assim como eu, já ouviu ou até mesmo falou aquela frase “se for pra colocar criança no mundo pra sofrer é melhor nem ter”. Ou pior, ouviu pessoas pretas afirmando que ter filhos com um branco ou uma branca seria uma forma de poupá-los, porque esses nascendo brancos, ou, com sorte, mais “clarinhos” sofreriam menos.
Viu como nenhuma dessas ideias foram difundidas em nosso meio por mero acaso? Muito se parte de uma sensação de impotência diante das dificuldades impostas pelo racismo. Além do sentimento de inferioridade também.
Mas voltando à questão financeira, se eu penso que ter minimamente um planejamento é desejável e até mesmo necessário? Com certeza! Mas a verdade é que se nossos pais seguissem essa cartilha à risca a maioria de nós nem estaria aqui…
Depois que eu entendi que não ter filhos é o mesmo que desistir da própria vida a longo prazo eu nunca mais encarei esse assunto da mesma forma que antes.

Crianças pretas são ancestrais retornando a esse plano. São a personificação de nossa continuidade. Elas representam PROSPERIDADE sob a perspectiva afrikana.
Além do mais, quando falamos em nos organizarmos, muitas vezes falamos em plantar sementes agora, das quais nós mesmos não iremos colher os frutos diretamente. Mas as gerações futuras irão. E isso, por si só, muda tudo!
É o que faz com que, ao invés de simplesmente abdicar, a gente se sinta responsável por criar os meios e condições necessárias — sejam eles materiais/emocionais/espirituais, para que elas possam vir ao mundo e cumprirem seus propósitos; conscientes de que essas condições não serão perfeitas, mas firmes no objetivo de que sejam cada vez melhores.
O intuito é seguir trabalhando para isso. Não de forma isolada, mas em conjunto, em comunidade.
Daqui, sigo aguardando e nutrindo essa vontade que só cresce!

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