Exu matou o Jesus que existia em mim

Bianca Melo
revistaokoto
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4 min readMar 4, 2021

Demorei demais pra assumir, mas é isso. Se existia ainda algum cristianismo em mim, Exu fez o favor de expulsar. Talvez de todas as mudanças que tive desde que entrei no Òkòtó, essa com certeza foi a maior e a mais difícil de assumir. Mais de 30 anos de cristandade e demonização da espiritualidade ancestral faz isso com uma pessoa, risos.

Em algum momento eu realmente acreditei que seria possível conciliar a minha fé — que já tinha compreendido como branka e a raiz de todo o mal que assolou o povo preto — com tudo que vinha aprendendo com Exu e a espiritualidade preta. Ledo engano…

Minha infância foi dividida entre idas ao terreiro e estudar em um colégio de freiras. Ainda que o sincretismo fosse forte, o team Papa ganhou do team Oya, porque sempre que o bicho pegava era na missa que eu caia. Depois de velha fui inventar de ser evangélica, e aí foi só ladeira abaixo. Até porque, o que o catolicismo não sincretizou, o protestantismo fez questão de demonizar. E vamos de tacar fogo no brinco de coral que ganhei criança da minha madrinha no monte, pois pedra de orixá né? Precisa quebrar a “maldição”, risos.

A primeira vez que fui apresentada a Exu e o conceito de ebó de forma não demonizada foi quando comecei a acompanhar os eventos do Òkòtó e a sua pretagogia. Muita coisa que não fazia sentido na minha relação com Deus e espiritualidade começou a se encaixar quando entendi que a encruzilhada é lugar de decisão e que ninguém recebe nada além do que deu. O conceito cristão de misericórdia e graça, apesar de bonito e romântico, forma pessoas preguiçosas e sem senso de responsabilidade. Eu posso agir da forma que eu quero, com toda a displicência do mundo, sem qualquer tipo de responsabilidade sobre mim e com o meu entorno, mas Deus vai me guardar porque sou “blindado”. Sério, não há nada mais irresponsável que isso.

Imagem: Freepik

Mas como boa insistente que sou, continuei passeando entre minhas experiências espirituais na casa do outro, enquanto aprendia cada vez mais com Exu, os orixás e os itans. A minha lógica era: vou puxar essa parte considerando apenas a mitologia, então isso não vai afetar minha experiência cristã, já que a minha espiritualidade roda em outra sintonia. E vou ser sincera, funcionou por um tempo. Continuei frequentando a igreja, participando dos rituais, mantinha minhas orações enquanto iniciava meu processo de entrada na casa via Entendendo. Fiquei por um bom tempo ouvindo toda a sorte de chacota sobre cristianismo e ficava na minha, dichavada, só pensando “eu não vou me expor pra ser zoada né?”. No fundo, eu sabia que estava errada, mas não queria assumir. Tipo palmiteiro que solta a mão do incolor quando passa por uma roda de preto, sabe?

Mas uma coisa que a ouvi muitas vezes na casa, e que faz todo o sentido quando você começa a viver uma realidade preta é: você não é tão diferente das pessoas que você se cerca. Se você come branko, vai vomitar branko. E vice-versa. Chegou um momento em que grande parte do que eu consumia era preto a ponto de tudo que antes parecia bom, começar a incomodar. E naturalmente comecei a expelir o que era branko. O discurso cristão parou de fazer sentido, e um domingo à noite numa igreja cheia de branko depois de ter passado o sábado com meu bonde preto treinando parecia uma cena de Corra.

Com isso eu parei de atribuir a um Deus mimador as conquistas que tinham sido resultado de sementes que foram plantadas por mim, por encruzilhadas que eu tive que escolher o caminho, por ebós que eu tive que fazer e coisas que tive que abrir mão. Também parei de usar o discurso “foi vontade de Deus” quando os resultados não foram favoráveis a mim, por displicência da minha parte e aprendi a tomar responsabilidade pelos meus atos.

Quando entendi que Exu é a boca que come primeiro, que a encruzilhada é lugar de aprendizado e decisão, e que as relações entre os orixás ensinam muito sobre as nossas relações humanas. Crer em um Jesus sacrificial, que morre para que todos possam viver em displicência parece inverossímil e desonesto. Ser “um cordeiro mudo em direção ao matadouro” soa como suicídio, em uma sociedade desenhada para matar corpos pretos. Em que ganhamos dando a outra face? Um pseudo galardão futuro, ao custo de uma vida miserável.

Ainda que Jesus seja realmente preto, seus ensinamentos são brankos. É a mesma lógica da academia grega que foi copiada de Kemet. Não é porque os ensinos tiveram origem no povo preto que a academia que conhecemos hoje é nossa. Já era parceiro, o que já tá estragado não tem conserto. Hoje eu entendo muito mais sobre mim, minha vida e minhas relações graças ao que aprendi com Exu e uma espiritualidade preta. Onde Jesus reinava, Exu hoje mora.

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Bianca Melo
revistaokoto

Eu cheguei no bregafunk ninguém deu nada por mim