Falemos mais e com mais honestidade sobre colorismo

Táíwò Òkòtó
7 min readFeb 15, 2018

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Eu tinha cerca de oito anos quando comecei a viver pelas ruas. Vagava pelos bairros do Grajaú e Vila Isabel com meus seis irmãos de criação. Nós tomávamos conta de carro, pedíamos dinheiro, engraxávamos sapatos, ensacávamos as compras dos outros nos supermercados e ajudávamos a levar em casa, vendíamos balas… enfim, fazíamos vários corres para conseguirmos uns trocados para sustentar nossa casa e garantir algum lazer — jogar fliperama e ir aos bailes, por exemplo. Nessa função, passávamos nosso dia inteiro na rua.

Passávamos a maior parte do tempo juntos e estávamos sempre zoando uns aos outros. Não preciso dizer que, por causa disso, rolavam várias brigas. No começo, eu era o alvo principal. Era o novato da família, não familiarizado com a dinâmica da rua, não sabia me defender e, por conta disso, estava sempre sendo zoado, apanhando ou tendo que lidar com os outros tomando meu dinheiro na mão grande.

Mas me adaptei rápido e, assim, tirei o alvo das minhas costas. A partir disso, eu comecei a saber, mesmo sem entender, o que era racismo. Na época, não tinha juízo de valor formado sobre, mas agora percebo que, na ocasião, tive contato com um dos aspectos mais cruéis dele— o colorismo.

Depois que eu deixei de ser o bobo da parada, entrou em cena uma nova forma de definir “o alvo”, o encarregado das tarefas ingratas, que antes caía na minha conta por se o novato e o mais “fraco na mão”. Na maioria das vezes que a gente se deparava com uma situação que alguém tinha que fazer, porém ninguém queria ser “o bucha”, se resolvia da seguinte forma: geral colocava o braço um do lado do outro e quem tivesse o tom de pele mais escuro é que carregaria a cruz. (Lembro da gente zombando de quem “perdeu” com as frases “vai, seu bucha!”, “vai, escravo!”).

Nessa nova dinâmica, raramente, a bomba caía no meu colo. Eu, “o filho emprestado”, era um dos que tinham a pele mais clara. Sempre me safava. Só dava errado mesmo quando a gente estava com o grupo reduzido e o sol me “prejudicava”. Por outro lado, era sempre o Buiú — apelido do Alessandro — que tinha que descascar os abacaxis. Tinha o Andinho também, com o mesmo tom de pele, mas ele era muito novo e por isso, muitas vezes ele não saía com a gente ou a tarefa era demais para ele. Assim, era certo que sobrava sempre tudo para o Buiú.

Mas a questão não para por aí. As zoações também tinham ele como alvo principal e em 99% das vezes tinham a ver com a cor da pele. Ninguém batia nele ou tomava seu dinheiro porque ele era bom na porrada — talvez, isso tenha sido reflexo da necessidade, já que as coisas exigiam mais dele, assim como aconteceu comigo no início, porém num nível mais hard.

Uma coisa bizarra ocorria ao meu irmão Alessandro: ele não conseguia ganhar muito dinheiro na rua. Era sempre um dos que menos ganhava. E isso rendia também muita zombaria pro lado dele. Algumas frases desse escárnio: “Porra! Também né… preto pra caralho!”, “Tu assusta as pessoas. No máximo vão te dar um trocado para você sumir com essa cara feia”…”Tu chega pra pedir dinheiro no sinal e o vidro já vai subindo. Tu tinha que ir de máscara”…

E a cada absurdo desse que falávamos — junto com vários outros — a gente passava mal de rir. E ele? Ele ria pra caralho. Ria mais que a gente. Nos dava uns tapas, fazia caretas, satirizava as situações que passava no dia. Ele era super alto astral, sempre nos divertia. Parecia não estar nem aí pra isso tudo. Nunca demonstrou-se irritado, incomodado… nada! Mas isso não quer dizer que tenha passado incólume. Certamente era um caso de “quem me ver sorrir, pensa que estou alegre”.

Hoje, com ajuda do flashback, percebo que não foi coincidência que ele tenha sido o primeiro a se destacar do grupo. E logo soubemos que estava metido com “outras formas de ganhar dinheiro” e com drogas. Hoje não me parece que tenha sido por acaso. Não me parece que foi pelo acaso que ele tenha sido o primeiro de nós a ser enterrado. Racismo é foda! Implacável! E o plano de embranquecimento, a política eugenista, de forma tácita, segue a todo vapor, alimentando e se alimentando do colorismo.

Ainda estou descobrindo que muita coisa não foi por acaso. Hoje, creio que haja uma força invisível que se encarrega desses “acasos”. Outro dia estava pensando sobre meu período na graduação — de 2004 a 2009. Cursei Economia (UERJ) e Relações Internacionais (Estácio). Na estadual, já havia cotas. Então, por lá, eu até encontrava um certo número de negros. Na Estácio, pouquíssimos. Quase nenhum. Mas a questão é a seguinte: não me lembro de ter vistos negros de pele muito escura pela faculdade. Acho que não os vi por lá. Todavia, antes de alguém levantar a bola de que isso pode ser resultado da miscigenação que fez haver poucos negros cujo tom da pele seja mais escuro, peço para se deslocar até a Central. Lá, repare nos ambulantes e nos mendigos. Repare naqueles que pegam o Japeri lotado.

Quando comecei o trabalho de oferecer aulas gratuitas de capoeira no Largo São Francisco de Paula, adivinhem o tom de pele dos dois primeiros camaradas das ruas que chegaram para colar com a gente nos treinos. Com isso, aprendi que sua condição social tem a ver não só com sua negritude mas também com o grau em que ela se externa. Pois é… Vivemos num ambiente que tende a ser mais hostil quanto mais você se apresenta negro, exala negritude. E essas experiências me apresentaram a validade de se considerar o colorismo na análise do racismo no Brasil. O que passa a fazer mais sentido se a gente atentar para o fato de que a maioria dos brancos do Brasil nem é tão branca assim. Nos EUA, eles percebem isso rapidinho.

A regra cruel é que na ausência do branco, valida-se o mais próximo ao branco possível. O racismo do Brasil sustenta-se muito nisso.

Quanto mais negro você se mostra, maior a probabilidade de você ser espremido e alijado dos espaços de visibilidade, de protagonismo. Mais você é mantido afastado dos meios que poderiam lhe garantir a sobrevivência e a dignidade.

Embora até aqui a abordagem tenha considerado o tom da pele para falar de grau de negritude e marginalização na sociedade, esse “grau de negritude” (ou seu reverso, “grau de assimilação”)não é medido apenas pela epiderme, não. Mas o tom de pele é uma medida mais visível e direta, mais fácil de ser percebido, o que torna mais direta a represália social. Agora, assim como as portas se fecham ao alto grau de negritude mensurado pelo tom da epiderme, elas também respondem ao que se pode medir pelos costumes, vestimentas, pensamentos, etc.

Quando nos portamos como negros e a partir de interesses negros, os ambientes se tornam mais hostis do que de costume. As pessoas se incomodam e reagem à nossa diferenciação. A engenharia social trabalha para sufocar e diluir a negritude em todos os níveis, mantendo ativo o processo de clareamento/embranquecimento pensado para a construção da identidade brasileira no início do século XX.

No fim disso tudo, o que eu concluo é que o processo de participação do negro no Brasil é nivelado pelo grau de negritude, em que todo negro aceito, querendo ou não, o é a partir do enquadramento sistemático à branquitude.

Falando de algumas experiências, as pessoas até tratavam bem e davam dinheiro para meninos negros, desde que não fossem tão negros; na faculdade até que vi negros, mas praticamente inexistiam os “muito” negros; com os amigos são todos sorrisos e abraços até que eu me coloque a partir das questões existenciais negras e fale de seus privilégios e sua relação com o racismo; somos até aceitos em empregos, desde que nos apresentemos dentro de roupas, modos e crenças brancas; outra exigência é a “boa aparência”, que nada mais é que um eufemismo para dizer “que não seja/esteja ‘muito’ negro”.

É bom a gente pensar nisso.

O colorismo, talvez, seja a base do racismo no Brasil, pois o processo de “aceitação” se dá através de recortes na negritude. Todavia, nossa plena realização nessa sociedade só virá quando pudermos ser o que somos em nossa plenitude. Isso vai apontar para a nossa necessidade de voltar a esses elementos negados e lutar pela sua aceitação. Temos que pensar a luta lá na fronteira, naquilo que ainda não passou; partir da epiderme mais escura e das características físicas e culturais mais pretas possíveis. Quando o mais claro é aceito e o mais escuro é negado, podemos, com certa segurança, afirmar que você não está participando da sociedade pela sua negritude já que você está sendo aceito apenas a partir da sua aproximação em termos físicos e culturais à branquitude. Você é aceito — na visão da sociedade — a partir da sua “perda” de negritude. Quem não conhece a frase “acolhedora”: mas você nem é tão negro assim, né? Ela ilustra muito bem o meu ponto.

Para fechar, há sempre aquela discussão de não podermos chamar isso ou aquilo de privilégio, ou vantagem ou sei lá… “Porque, se comparado ao branco…” enfim, esqueçam essa conversa que só emperra e dificulta um tratamento honesto da pauta. Entendam que, em terra de cego, quem tem um olho é rei. Entendam que se você pode fazer o que o outro não pode, ou precisa se esforçar menos (nem que seja em relação ao enquadramento) você carrega uma vantagem, em relação a ele. Honestidade com o irmão é colocar tudo na mesa, é ajudar a reparar as desvantagens que ele carrega, inclusive, em relação a nós mesmos. Enquanto não pudermos cuidar para que possamos, todos, fazer tudo, que pelo menos lutemos para que possam, no mínimo, tanto quanto a gente.

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