Geraldo Pereira do Teleco-Teco

Priscila Argolo
revistaokoto
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5 min readFeb 19, 2021
Ilustração: Lisimba Dafari

Das terras mineiras para a movimentação carioca, Geraldo Pereira segue seu rumo para ajudar seu irmão com a vendinha e algumas famílias no Morro da Mangueira. Ali, com 18 anos, encontrou o samba e não tinha como ser diferente quando o chamado vem de longe. E, diferente do que se esperava dos sambistas da época, o pretão criou o samba com gingado cadenciado, pingando na gafieira: o samba sincopado ou o tal do samba de teleco-teco — o brabo feito pra dançar com a escurinha; seguindo o caminho "oposto" ao que caminhava o das escolas de samba. Entre aspas, já que pra mim tudo é complemento.

Antes que fosse conhecido como o rei do samba de teleco-teco, não tinha como não se tornar sambista com as companhias que trombava no Morro da Mangueira. Era Carlos Cachaça, Nelson Sargento e Cavaquinho pra cá; mais um pouco de Cartola e Aluísio Dias pra lá, que ensinaram o gigante Geraldo a tocar violão. Muito mais do que a malandragem do samba, o pretão conheceu a boemia e o quanto era bom ter uma escurinha presente em suas andanças. O estilo de vida de Geraldo não foi muito diferente das histórias que conhecemos sobre os sambistas do século passado. Era um tal de vagabundo pra cá, malandro pra lá… Mas tava todo mundo querendo embalar junto.

No riso, o que conhecemos como sua primeira criação, brinca com o sonho de alcançar a riqueza através da loteria e largar tudo quanto é coisa de pobre. "Acertei na loteria" não é nada mais do que a narrativa de "sonhos negrescos", em que a Europa é o ponto em que se quer chegar com seus casacos de pele, crianças no internato e aulas de francês. O preto sonhador volta para o morro quando Etelvina o acorda. Aqui, se vê que Geraldo debocha do que realmente é inalcançável pra quem busca referência do outro lado.

Com isso, dá pra se pensar que a visão que a literatura dita como brasileira foi passada pra frente com seu principal intuito: mostrar que o verdadeiro valor do homem só seria alcançado se estivesse equiparado aos valores e padrões europeus. Pode parecer que isso não cabe aqui, mas a maioria dos estudos que se têm sobre Geraldo Pereira estão no campo da literatura, no qual dão ênfase para seus problemas com a boemia que caía nas brigas noturnas e na vida boemia que o transformava em um homem machista que deteriorava o modo com que a figura feminina era entoada em suas composições.

Dei uma olhada em todas as letras do homem e me pareceu muito mais que ele não conseguiu encontrar uma mulher que combinasse com ele do que qualquer outra coisa. Na vida a gente tem dessas, essa necessidade de colocar na mão do outro aquilo que deveria estar no campo da nossa responsabilidade com a gente mesmo. É Geraldo não presta porque a mulher achava ruim suas andanças pela noitada; é seu Pereira sendo xingado porque colocava à vista as mulheres que maltratavam seus sentimentos — só sai de errado porque o mundo acadêmico dita o que é opressão e, pelo visto, mulher não magoa, não destrói, não engana.

Só que o mesmo homem que fala de suas decepções e arranjos amorosos também é o mesmo homem que questiona a baiana sem ginga, que chega no samba e ninguém sente o axé. É o mesmo que será visto como machista e um destruidor da imagem da mulher por perceber que não faz sentido a escurinha da escola de samba não ter gingado e expor que tem algo errado quando não mostra o rebolado de seus ancestrais. A gente sabe que, quando estamos encharcados de europeus, o corpo da gente mostra que ficamos travados e sem movimento.

Saindo das minhas opiniões e voltando para Geraldo Pereira… É conhecido que o pretão deixou para o mundo cerca de 77 composições, sendo que vira e mexe surge algo inédito que passou batido nas contagens sobre sua vida. Uma coisa que não pode ficar para trás é que seu estilo foi uma das principais influências que levou a surgir o que conhecemos como bossa nova, que nada tem de novo além de substituir os verdadeiros criadores pretos monumentais por imagens de branc’os que não lavam o cabelo e deixam a barba por fazer. Muito disso também aconteceu porque Geraldão saiu da Mangueira para se aventurar no centro do Rio, o lugar que todos falavam em progresso, mas esse tem endereço e caixa de correspondência certeira e sabemos quem as recebe.

O que sabemos de Geraldo vem das histórias que o povo conta e das composições que ficaram de herança. O que ficou do pretão vai além das andanças pela mangueira e pelas acusações a Madame Satã, que muitos acusam ter sido responsável pela morte prematura de Geraldão. E, já que chegamos até aqui, fica o relato de Madame quanto às vozes acusadoras:

Não, eu fui acusado de ter matado o falecido compositor Geraldo Pereira com um soco. Mas o caso foi o seguinte: eu entrei no Capela e estava sentado tomando um chope. Ele chegou com uma amante dele (ainda vive essa mulher), pediu dois chopes e sentou ao meu lado. Aí tomou uns goles do chope dele e cismou que eu tinha que tomar o chope dele e ele tinha que tomar o meu. Ele pegou o meu copo e eu disse pra ele: olha, esse copo é meu. Aí ele achou que aquele copo era dele e não era o meu. Então eu peguei meu copo e levei para a minha mesa. Aí ele levantou e chamou pra briga. Disse uma porção de desaforos, uma porção de palavras obscenas, eu não sei nem dizer essas coisas. Aí eu perdi a paciência, dei um soco nele, ele caiu com a cabeça no meio-fio e morreu. Mas ele morreu por desleixo do médico, porque foi para a assistência vivo.

E é por isso que devemos estar dispostos a receber as histórias e questionar sobre sua verdade, pois o que foi criação de Geraldo pra mim, pra outros é obra de Juãos Gil-bertos; o que pra muitos foi acusação de morte, pra nóis pode ser como auto-defesa. Aqui, Geraldo escrevia sobre suas vivências, lá nas teses, falam sobre suas deficiências e sabemos que não é bem assim, porque quando falamos de nossos ancestrais, sabemos que não estamos falando de santos, mas de figuras que trouxeram criações maravilhosas para a continuidade e é disso que devemos nos lembrar.

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Priscila Argolo
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Ninguém me deu permissão pra sonhar, mas eu já sabia o quanto era bom. Mãe do Jota, companheira do Marquinhos e a humana da Akira.