Zezi Masomakali
revistaokoto
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5 min readNov 28, 2022

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Gigante como um grão de areia

Lá na inauguração do KMG, quando fomos a praia e o Taíwo puxou aquele corrido

“Oh, por cima do mar eu vim
Oh, por cima do mar eu vou voltar”

pra lembrar de onde viemos e pra onde estamos indo, acho que não assimilei tudo que tava por vir. E que realmente já estávamos no caminho do retorno.
Me toquei disso quando passei essas semanas antes do evento, olhando as coisas de longe. Parando pra lembrar do que rolou até chegarmos aqui.
Olhei de forma individual e da ótica de participante do grupo, ah porra nenhuma. Observei como integrante da família que nós somos memo.
É surreal ver que é muito da nossa sorte como cada coisa se acertou pra fazer tudo ganhar o peso que ganhou, e ao mesmo tempo, saber que é perfeitamente normal porque ralamos muito pra isso e quem faz por onde, obtém resultados.
Puxei na lembrança as coisas sobre o festival do ano passado e senti que o coração tava batendo diferente pra esse.
Tava descompassado de um jeito que eu não tinha sentido ainda.
E eu sei o que é isso.
Lembro que quando cheguei em SP, eu fiquei com medo

Eu desci em uma cidade mais afastada. Na minha cabeça eu me perderia sem dúvidas, mas por algum motivo meu coração tava tão tranquilo que parecia que eu sempre soube o caminho do KMX. Ainda brinquei que essa deveria ser a sensação que os pretos que iam pros quilombos se libertar, sentiam.
Me orientaram e eu só andei.
Vim tranquila e quando cheguei na porta do Kilûmbu ainda era cedinho.
Olhei pra cima, vi estampado o brabo que dá nome pra nossa casa, uma delas, e isso me fez até respirar melhor.
Demorei um pouquinho até chamar alguém pra me deixar entrar.
Catei ouvir as vozinhas das pessoas que já tavam lá dentro e foi tão reconfortante. Parada de tá voltando pra casa mesmo.
Poxa, a garganta chega a dar um nó.
Fui recebida com café, afeto e fofoquinha do amor.
Durante o evento, enquanto andávamos pra ir treinar na rua, como sempre foi, por várias vezes eu olhava a cara das pessoas, botava a mão na boca, assim meio cabreira e pensava:
“Caraí, a gente é grandão!”
Mas ao mesmo tempo somos piticos demais.
Quando leio os textos da galera falando que somos grandes, gigantes, eu fico de coração cheio. Mas amo quando falamos que somos pequenininhos também.

“Oh areia
Oh areia do mar
Oh areia
Oh areia do mar
Dá licença aqui
Que eu quero passar
Sou pequenininho”

Eu fico feliz demais de sermos tal qual graõzinhos de areia, porque aquilo tá em todo lugar.
Pode tomar quantos banhos for, você ainda vai achar areia por aí meses depois de ver o mar. Nós passamos em qualquer lugar, lugar onde ninguém vai ou ousa ir.

Somos aquele vento que vem e ninguém sabe como, mas dá aquele alívio.
Sabe fumaça? Igual.
Ser pequeno não só pela humildade, mas por questões tudo que é muito grande tende a ser desengonçado e vazio e nós não, tamo alinhadinho.

Foi tudo tão certo, e nem tudo programado. Mas nossa família tá vivendo e aprendendo pra ter esse momento de saber amparar o outro, de botar o pé onde o do outro não vai, de segurar pro outro subir, de fazer firmeza no olhar pra dar segurança.

E essa foi a sensação que dominou. Que tudo que passamos foi só pra ter certeza das coisas. Ver o teatro, onde a galera braba do Ykoritá entregou tudo.
E também foi assim na abertura com a Malta da capoeira, geral alinhado, pegando um cinto ali, uma blusinha acolá, quem já tava torcendo pro caminho abrir pra quem não tinha chegado colar juntão, nem preciso dizer, todo mundo na estica.
Geral cantando
alto, de olhinho fechado e com emoção.
Ter pessoas brabas nas conversas no salão, a galera da cozinha com um cuidado e atenção ímpares.
Lançamos nosso Podcast. Porque o que não tem, a gente inventa e bota na mesa.
Fizemos um maracatu preto, coisa que ninguém botava fé que dava pra fazer.
Dançamos com a mesma energia com a qual fazemos tudo, mesmo mortos com farofa, ver todo mundo virando as ruas com a alegria e o peito cheio pra cantar igual um sabiá, foi sem igual.
Quando teve o Samba no domingo, foi tudo tão mágico… Porque saímos de BH com receio de não dar pé já que os ensaios estavam recentes. Daí quando chegamos as pessoas de várias freguesias tinham levado seus instrumentos pra fazer o samba com a gente. Porque fazemos rindo o que ninguém faz chorando.

Ainda no sábado de madrugada, fugimos pra tocar numa pracinha, aqui do lado da casa. Um vento frio e a gente era só alegria. No dia da apresentação a galerona somou na voz e na beleza. Entregaram tudo. As meninas vieram pra roda sambar e o coração errou as batidas, o sorriso afrouxou.
Pular e vibrar com os nossos rappers descarregou nossas almas e dá licença aí porque temos rappers também.
O cuidado da equipe do audiovisual com todos que se apresentaram foi de outro mundos.
Fora as artes, fora os nossos empresários de produtos e serviços.

O festival foi pensado pra fazermos tudo através da nossa corporeidade e pelas manifestações culturais que nós nos propomos a aprender. Foi pra gente ter certeza da gente mesmo. Que damos conta.
Fazer, autonomia!
Essa é a nossa receita pra fazer dar certo.

Não tinha ninguém de braço cruzado, triste, parado… Apesar do cansaço geral se ajudando, elogiando, fazendo força pra sair perfeito e incentivando até o resultado vir, é isso pra tudo.
Nem a chuva brecou nós.
Várias vezes nesses três dias me peguei olhando tudo que nos tornamos.
E no meio disso tudo, agradeci muito por ser miudinha.
Fiquei em êxtase por poder caber em cada abraço e foram milhares deles.
Mesmo sem geral saber o que era, cada apertada minha, cada beijo, cada cumprimento, cada cuidado, cada sorriso, era um obrigado.
Por cada um tá ali e por quererem estar sempre.
Pelo compromisso que assumimos o ano todo. O festival foi nosso lugar de desaguar.

Lembro de ter dormido pouco pra perder o mínimo de coisas possíveis.
Quando eu digo que o Òkòtó me faz querer viver, eu to falando disso.
De ter tanta vida acontecendo ali que ela transborda e você não quer perder nada.
Eu desejei muita vida ao Òkòtó, eu desejei participar dessa vida.
O festival se encerrou mas a vida não. Porque cabe muita vida num grãozinho de areia e nós somos uma praia inteira.

Todo gigante nasce miudinho e a gente vai chegar lá.

Arte: Diego Nunes

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Zezi Masomakali
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Pretinha, Okotoshica, filhota mais velha do KZP, a sede caçulado Okoto que fica em BH- MG.