há graus de racismo?

Miguel Maribondo
11 min readAug 13, 2018

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nós temos que morrer todas as mortes para que eles vivam todas as vidas

“eu acredito na vida.

E eu tenho visto a parada da morte

marchando através do dorso da terra,

esculpindo corpos de lama em sua trilha.

eu tenho visto a destruição da luz do dia,

e visto vermes sedentos de sangue

sendo adorados e saudados.”

assata shakur (2016, p.26)

1993. 29 mortos.

existem graus de racismo?

você sabe o significado de “chacina”?

1993. Candelária. Vigário Geral.

existem graus de racismo?

pode-se ser descolado, libertário, desconstruído, progressista, liberal em relação a muitas coisas. mas diante do mundo negro… não. aí os vermes sedentos de sangue pululam, saem da acidez do estômago e infestam a boca.

questionado sobre o racismo inerente a uma atividade dentro de uma universidade brasileira, o professor que coordenava o grupo questionado disse mais ou menos o seguinte: “Calma aí. Não é bem assim. Vocês apontando as coisas desse jeito colocam um problema sério pras esquerdas. Vocês têm que pensar nos graus do racismo, o racismo do Bolsonaro é uma coisa, o da universidade e da esquerda é outra. Não é tudo a mesma coisa não.”

1993. Rio de Janeiro.

você sabe o que significa chacina?

O professor, branco, repetiu uma ideia que a militância negra sem se aperceber concorda. são frases frequentes: “Fulano é muito racista!”, “Aquele lugar é muito racista”, “você foi muito racista com ela”, “Beltrano quanto mais velho, mais racista” e por aí vai.

o que está em questão aí? a própria noção do que seja o racismo. aprendi com franz fanon: uma sociedade é racista ou não o é. se racista, ela tem uma meta: a morte. a destruição total daqueles e daquelas que são o alvo do racismo. a morte.

o sonho constante de todo racismo é o campo de concentração. a aniquilação.

1993. Candelária. 8 mortos.

há graus de racismo?

não. não há. não existem graus de racismo.

o que há são formas diferentes de matar. os vermes estão sempre sedentos. os vermes estão sempre sugando sangue. sempre. assisti agorinha ao vídeo de um Padre. ele faz o rito tradicional: colocar a hóstia na boca dos fiéis. e eis que surge uma coroa, uma mais velha retinta. bem coroa, bem retinta. ela abre a boca, o Sacerdote da Santa Igreja exita e põe a representação do corpo de Cristo, a hóstia, na mão da mais velha. ela fecha a boca, abaixa a cabeça, abre a boca novamente e engole a hóstia.

aquela preta foi morta. ali no altar, no gesto veloz do Padre. há diferentes modos de matar. que o senhor branco de batina é Santo, não se pode duvidar. acredito que ele seja. mas diante do mundo negro, diante da coroa negra, a santidade não estanca a sede de sangue do racismo.

o Professor e o Sacerdote. a casa do saber e a casa do perdão. o lar da ilustração e o lar da salvação. o Homem intelectualizado e o Homem purificado. casas da morte. os homens de morte. morte do mundo negro. a parada da morte marchando através do dorso da terra… negra.

1993. Vigário Geral. 21 mortos.

Você sabe o que é chacina?

não há graus de racismo. há vontade de matar. e ponto.

e a que serve esta noção de graus e de intensidades do racismo? serve para o racismo matar e matar e não ser importunado. tem um efeito anestésico, amortecedor, pacificador da ação contra ele, contra o racismo. como escrevi antes, há diversas formas de matar. e o racismo vai matando matando matando… quando ele mata o corpo físico quase ninguém se incomoda, pois o racismo desumaniza, animaliza, torna “matável” matando. devir morte.

mata para matar. mata para matar melhor. mata para continuar matando.

todo gesto racista, portanto, é um assassinato. ele empurra o corpo negro, a comunidade negra, o mundo negro para a borda da cova e da vala. e diz em sussurros: “vocês merecem morrer”, “vocês já estão morrendo”, “vocês valem menos.”

mirem a seguinte imagem:

capturado da internet

não sei o ano desta ilustração do laxante Negritas. é óbvia a associação: jovens negras e bosta. pretas servem para movimentar merda. o texto rimado: “Muitos do que as provaram/ Satisfeitos afirmaram/ Que desta data em diante/ Não usarão outro laxante. E com seu ar petulante/ As negras vão avante/ Muito cheias de razões/ Conquistando multidões.”

jovens negras-bosta. jovens negras-algo que se “prova”. jovens negras-petulantes. jovens negras são desejadas pelas multidões porque desentopem os intestinos inchados por excesso de merda.

sim. sabemos a imagem que os empresários do laxante acionam aí: a mucama. a escravizada destinada a “cuidar” das merdas da casa grande. quem limpa é a preta. (repare as empregadas pretas nos lares de gente de esquerda, de direita, de centro, libertários…) há ainda a imagem das duas jovens, humilhantes. não humanas. bocas disformes, brancas. a saia curtíssima. a falta dos seios indicando que são muito jovens. os pés nus também evocando a escravidão. a barriga inchada.

parece não haver laxante que retire das entranhas de uns as merdas do racismo.

os vermes sedentos de sangue também ficam com o intestino preso.

observem a seguinte imagem:

retirada da internet

aí uma ilustração italiana da década de 60. o texto: “… o café de hoje, bebido desde sempre!” Itália? sim, agorinha recebo reportagens descrevendo… o linchamento e a morte de pretos neste país. os vermes sedentos existem em vários idiomas. aí, na ilustração, novamente a morte, o racismo. não mais as meninas negras, mas o menino, uma criança. servil, servo, servente, servidor, humilhado. ridicularizado “desde sempre”, desde a tenra infância submisso. aí a óbvia associação do moleque negro à plantation. o molecote de recado agora trás o café Foschi… na cabeça. descalço, sempre esse signo da escravização. Perceba, aqui também, o sorriso. aqui e no Negritas, o sorriso e a alegria de quem serve. o sorriso do submisso. é o mesmo que dizer: “eles se alegram em ser o que são: troços exploráveis.” ridículos que riem. humilhados que riem.

tendemos a pensar que os europeus são menos racistas que o resto dos viventes, já que aqueles possuem a imagem de mais ilustrados, civilizados, com maior acesso à educação “de qualidade”. isto é uma mistificação. racismo não é falta de educação. o máximo que a educação pode fazer é maquiar a expressão. racismo é relação de forças. é política. é dominação. não é ignorância. embora ele, o racismo, não abra mão da idiotice e do louvor à imbecilidade.

os vermes europeus sedentos de sangue também bebem café.

1993. 23 de julho. 29 de agosto.

não há graus de racismo.

você sabe o que significa chacina?

CHACINA

“substantivo feminino

1 carne suína ou de gado vacum cortada em postas, salgada e curada.

2 abate e esquartejamento de porco ou gado.

3 assassínio em massa, ger. com crueldade; matança, mortandade, morticínio ‹policiais e jagunços fizeram a c. dos inocentes›.” (dicionário Houaiss online).

sabe o que é chacina? você e eu mortos como gado vacum.

sabe o que é chacina? você e eu destruídos em postas.

sabe o que é chacina? você e eu sangrados como porcos.

chacina é um derrame. derrame no corpo de uma sociedade de pressão muito alta. elevadíssima. uma artéria se rompe e o sangue afoga os tecidos negros.

lembrou-se do massacre do Carandiru, 111 chacinados em 2 de outubro de 1992? lembrou-se das carnificinas no Congo belga, os cestos cheios de mãos negras? lembrou-se das mortes na Argélia colonizada pela França, a tortura no café da manhã, no almoço e na janta (a fome, a sede, o choque elétrico na buceta e no saco, o estupro, o afogamento…tudo acompanhado por um médico para fazer a gestão das dores)? lembrou-se do massacre dos tútsis em Ruanda no ano de 1994? lembrou-se da chacina do Cabula na Bahia em 5 de fevereiro de 2015, 12 jovens negros picotados por 88 tiros “dados” pelos PMs da Rondesp, conforme o apontou o Ministério Público? lembrou-se dos cinco jovens negros abatidos como pombos doentes em Costa Barros (RJ) em 11 de novembro de 2015, 111 tiros disparados pelos PMs do batalhão de Irajá, segundo o Ministério Público? eu me lembrei destes e de muitos outros morticínios.

não há graus de racismo por um motivo muito simples: já estamos mortos. do ponto de vista do racismo já morremos.

como humanos estamos mortos.

como laxante, carregadores de café, objeto de investigações científicas diversas, sub-humanos, animais, etc estamos quase vivos.

alguma morte nos acomete agora.

o que varia é o tipo de morte. ele, o racismo, nos mata — reveja as ilustrações — cotidianamente, “molecularmente”, gota a gota. e às vezes, muitas vezes, sempre, todo ano, a coisa fétida transborda: 21 mortos, 8 mortos, 111 mortos, 12 mortos de uma só vez. e numa boa.

na manhã seguinte ao banho de sangue. na manhã seguinte tudo funciona. numa boa. os intelectuais descolados dão suas aulas sobre Marx, Walter Benjamin e Foucault. os padres desenvolvem suas missas. os constipados procuram novos laxantes e os italianos bebem café cremoso em capsula, made in BRAZIL (a Foschi usa a mesma ilustração com o menino negro até hoje em seus produtos). numa boa.

1993.

há graus de racismo?

não há graus. há etapas. etapismo mortal. leia o incontornável mestre senegalês cheikh anta diop: “o imperialismo, como o caçador pré-histórico, mata primeiro espiritual e culturalmente o ser, antes de tentar sua eliminação física. A negação da história e das realizações intelectuais dos povos africanos é a morte cultural, mental que já preparou o genocídio aqui e acolá, em todo o mundo” (2015, p.28).

em todo o mundo.

aqui, ali e acolá… a morte.

sacou o processo? o procedimento? Itália, EUA, Brasil. aqui e acolá os vermes querem sangue. e tudo está preparado pelo racismo para que eles se alimentem. aqui e acolá. em todo o mundo. sacou?

não há graus. há percurso: o caçador pré-histórico desumaniza, animaliza ao matar espiritual e culturalmente o mundo negro. devir porco. devir vaca dos pretos. devir barata.

devir gado vacum.

havia um menino de seis anos na Candelária em 93. ele recebeu tiros na cabeça. seis anos. 6.

assim se compreende a noção de morte atmosférica. ela é do fanon. parece óbvia, não? o racismo é o ambiente, é o tempo. ele está sempre em torno das vidas negras, sempre matando e de quando em quando chove… aí as nuvens choram sangue: 8 mortos, 21 mortos, 111 mortos, 12 mortos, tiros na cabeça de criança negra de 6 anos que dorme na rua.

a coisa é mais grave do que se imagina. pensar o racismo — portanto a morte - nestes termos significa compreender que ele é fundacional. ele é como a chuva e o sol, faz florescer tudo: as delícias brancas para os brancos e os tormentos brancos para os negros.

estas ligeiras considerações exigem desdobramentos que não posso desenvolver aqui. mas pelo exposto, algumas conclusões são possíveis:

1.não há graus de racismo. o racismo, se é racismo, está sempre matando, destruindo e tem como objetivo o genocídio, a aniquilação. às vezes ele encontra o tempo oportuno e desaba como na Candelária e Vigário Geral. portanto, o racismo expresso pela esquerda ou quem se considera desconstruído ou progressista não é pior ou mais grave do que o do Bolsonaro, por exemplo. eles são inseparáveis. cada imbecil cultiva seu estilo próprio. numa boa.

2. todo gesto racista é intolerável. ele é ato de morte espiritual, intelectual, mental, cultural e física. uns pretos são alvos das primeiras etapas, outros de todas. sabemos bem quem serão os pretos presos, executados, torturados e desaparecidos, estropiados em cracolândias, desprezados em manicômios e explodidos pela cachaça. há aqui um ponto crucial pros movimentos negros que não posso abordar neste texto. deixo a pergunta: a militância negra está preocupada com quem? afinal, o que o movimento negro quer? acabar com o racismo ou viver mendigando as delícias(valores) dos vermes sedentos de sangue? poucos são chamados e poucos os escolhidos.

3. racismo não é desvio de conduta, má educação, ignorância. racismo é dominação política. É esmagamento. é morte de um para a melhor vida de outros. reparem novamente as ilustrações. as duas remetem ao gesto de ingestão. comer, engolir. as duas deixam bem evidentes o ato de consumo digestivo do laxante e do café. ao mesmo tempo está exposta ali a velha imagem da colonização. cólon é uma parte do intestino. colonizar é consumir, interiorizar. e ali as crianças negras estão sendo consumidas, umas para desbloquear o intestino abarrotado de fezes e a outra para, entre outras coisas, dar vigor e prazer. pois é isso aí o racismo. consumo da vida de uns para o viver de outros.

nós temos que morrer todas as mortes para que eles vivam todas as vidas.

assim exige o racismo.

“eu acredito no viver.

eu acredito no nascimento.

eu acredito na doçura do amor

e no fogo da verdade

eu acredito que um navio perdido,

conduzido por navegantes cansados e mareados,

ainda pode ser guiado para atracar

em casa”.

assata shakur (2016, p. 24)

dedico este texto aos meninos da Candelária e aos moradores de Vigário Geral.

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referências

Assata Shakur. Escritos. Reaja: Brasília, 2016.

para a relação entre racismo e genocídio no Brasil, conferir o incontornável:

Abdias do Nascimento. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.

sobre as chacinas da Candelária e Vigário Geral é possível ter acesso online aos jornais impressos e as reportagens de televisão sobre os massacres e as investigações. repete-se a velha retórica do desvio de conduta dos policiais nos dois casos.

sobre os massacres no Congo, então propriedade pessoal do Rei Leopoldo II da Bélgica, consultar:

Carlos Moore. A África que incomoda: sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.

Adam Hochschild. O fantasma do Rei Leopoldo: uma história de cobiça, terror e heroísmo na África Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Mario Vargas Llosa. O sonho do celta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

Christian Ferrer. Mecanismo. Tradução de Edson Passetti. Revista Ecopolítica, São Paulo, n. 12, mai-ago, 2015, pp. 2–12.

sobre a noção de morte atmosférica:

Franz Fanon. Sociologia de una revolucion. Mexico: ediciones Era, 1976.

sobre o horizonte e o sonho genocida do racismo ver:

Franz Fanon. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Editora Sá da Costa, 1980, pp. 34–48.

para a afirmação segundo a qual uma sociedade é racista ou não o é, conferir:

Franz Fanon. Pele negra, máscaras brancas /tradução de Renato da Silveira . — Salvador : EDUFBA, 2008.

sobre o caçador pré-histórico e a noção de morte que antecede ao genocídio:

Cheikh Anta Diop. Civilización y barbarie: una antropología sin condescendencia. Barcelona: edicions Bellaterra, 2015.

sobre as grandes dores dos tútsis em 1994, ver Sholastique Mukasonga, seus livros foram recém lançados no Brasil:

Nossa Senhora do Nilo. São Paulo, Nós, 2017.

Baratas. São Paulo: Nós, 2018.

A mulher de pés descalços. São Paulo, Nós, 2017.

sobre ataques recentes contra negros na Itália:

https://www.ilpost.it/2018/06/04/omicidio-san-calogero-maliano-ucciso/ aqui se trata da execução de um líder sindical malinense. tiro de fuzil na cabeça.

https://www.ilpost.it/2018/07/30/aggressione-daisy-osakue/ relata a agressão sofrida pela atleta italiana de origem nigeriana, Daisy Osakue. ela recebeu uma ovada no rosto, teve sua córnea ferida.

Sobre a chacina do Cabula conferir o site http://www.reajaouseramortx.com/

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