Basquiat vai ao (anti)cemitério dos Pretos Novos
(…) nossos anciãos derramaram tabaco na terra seca a fim de chamar os espíritos dos antepassados para nos proteger. Ao contrário do que acontecera muitos anos antes, os espíritos não vieram dançando da terra. Rastejavam. Empacavam. Estavam com fome. Queriam sangue, carne e cerveja de painço, queriam sacrifícios, queriam presentes. Exceto por alguns grãos de tabaco, não tínhamos nada para dar, absolutamente nada. E assim, os espíritos apenas olharam para nós com olhos secos de piedade. Entre si, eles sussurravam: como é que esses aí vão ficar bem na Mélika, tão longe dos túmulos dos seus antepassados?
(Noviolet Bulawayo no livro Precisamos de novos nomes, p. 212)
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meus mestres foram mortos
sem covas, sem campos santos
entre ossos de galinha, espinhas de peixe, ganância e porcelanas partidas estão os restos deles,
gente-resto
meus mestres foram mortos
em minhas mãos, meia mandíbula
sob meus pés, farelos de crânios
na minha retina, os dentes de suas filhas e filhos
gente-ossada
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meus mestres foram mortos
dedos sem mão
maxilares sem risos
cabeças sem cabelo
bacia sem cintura
pernas sem canela
pés sem pisada
braços sem gesto
dentes sem riso
gente-fóssil
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meus mestres foram mortos
destruídos no translado transatlântico
novo pai: o tumbeiro
nova mãe: o mercado
nova irmã: a corrente
nova sombra: a dor
novo protetor: o traficante
destituídos na travessia:
ninguém os comprou
nenhum cemitério os acolheu
não eram:
nem mercadorias
nem fugidos
nem quilombolas
nem cristãos
nem revoltosos
nem submissos
nem libertos
nem cativos
nem zangados
nem macumbeiros
nem jagas
nem nagôs
lixo urbano
gente-lixo-urbano
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meus mestres foram mortos
de suas vidas, só se encontram suas mortes
de suas memórias, só se encontram seus ossos
ossadas sem nome
osso osso
osso lixo
osso lixo urbano
memória-osso
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meus mestres foram mortos
os esqueletos em fragmentos não são celebrados como o retorno da memória dos heróis
as ossadas misturadas a crânios de cães, gatos domésticos e tubos de esgoto de 100mm não são louvadas como narrativas de caçadores perspicazes
memória-fosso
anti-memória
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meus mestres foram mortos
seus novos nomes constam somente no livro dos mortos da Igreja de Santa Rita
nomes de morte
livro de morte
escrita de morte
obituário
nada os narra:
nem Anais
nem samba-enredo
nem grafites
nem baixo relevo
nem prosa
nem verso
nem entalhado em rocha ou madeira
nem memorial
nem busto
nem rua
nem escola
nem coletivos
nem ditos populares
nem tatuagens
nem corridos
nem pontos
gente-óbito
gente-anti-narrativa
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meus mestres foram mortos
mestres crianças
mestres mulheres
mestres jovens
corpos incendiados
ossos quebrados
a lixeira é pequena, o lixo desembarcado é grande
queima
quebra
gente-quebrada
condenados à anti-memória
anti-ancestralidade
seus corpos expostos quebram e queimam o caminho de retorno ao útero ancestral
condenados à condição de ossada perpétua
condenados a não retornar jamais
pretos novos
pretos travessia
pretos sem lugar
pretos flutuantes
pretos fossilizados
pretos óbitos
pretos farelos
pretos lixo
pretos novos
pretos novos lixos urbanos
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meus mestres nunca foram meus mestres
meus mestres nunca foram meus
meus mestres nunca foram
meus mestres nunca
meus mestres
meus
meus mestres
meus mestres foram
meus mestres foram mortos
meus mestres nunca foram mortos