Basquiat vai ao (anti)cemitério dos Pretos Novos

Miguel Maribondo
revistaokoto
Published in
3 min readOct 19, 2018

(…) nossos anciãos derramaram tabaco na terra seca a fim de chamar os espíritos dos antepassados para nos proteger. Ao contrário do que acontecera muitos anos antes, os espíritos não vieram dançando da terra. Rastejavam. Empacavam. Estavam com fome. Queriam sangue, carne e cerveja de painço, queriam sacrifícios, queriam presentes. Exceto por alguns grãos de tabaco, não tínhamos nada para dar, absolutamente nada. E assim, os espíritos apenas olharam para nós com olhos secos de piedade. Entre si, eles sussurravam: como é que esses aí vão ficar bem na Mélika, tão longe dos túmulos dos seus antepassados?

(Noviolet Bulawayo no livro Precisamos de novos nomes, p. 212)

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meus mestres foram mortos

sem covas, sem campos santos

entre ossos de galinha, espinhas de peixe, ganância e porcelanas partidas estão os restos deles,

gente-resto

meus mestres foram mortos

em minhas mãos, meia mandíbula

sob meus pés, farelos de crânios

na minha retina, os dentes de suas filhas e filhos

gente-ossada

Basquiat, 1988

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meus mestres foram mortos

dedos sem mão

maxilares sem risos

cabeças sem cabelo

bacia sem cintura

pernas sem canela

pés sem pisada

braços sem gesto

dentes sem riso

gente-fóssil

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meus mestres foram mortos

destruídos no translado transatlântico

novo pai: o tumbeiro

nova mãe: o mercado

nova irmã: a corrente

nova sombra: a dor

novo protetor: o traficante

destituídos na travessia:

ninguém os comprou

nenhum cemitério os acolheu

não eram:

nem mercadorias

nem fugidos

nem quilombolas

nem cristãos

nem revoltosos

nem submissos

nem libertos

nem cativos

nem zangados

nem macumbeiros

nem jagas

nem nagôs

lixo urbano

gente-lixo-urbano

Basquiat, 1982

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meus mestres foram mortos

de suas vidas, só se encontram suas mortes

de suas memórias, só se encontram seus ossos

ossadas sem nome

osso osso

osso lixo

osso lixo urbano

memória-osso

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meus mestres foram mortos

os esqueletos em fragmentos não são celebrados como o retorno da memória dos heróis

as ossadas misturadas a crânios de cães, gatos domésticos e tubos de esgoto de 100mm não são louvadas como narrativas de caçadores perspicazes

memória-fosso

anti-memória

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meus mestres foram mortos

seus novos nomes constam somente no livro dos mortos da Igreja de Santa Rita

nomes de morte

livro de morte

escrita de morte

obituário

nada os narra:

nem Anais

nem samba-enredo

nem grafites

nem baixo relevo

nem prosa

nem verso

nem entalhado em rocha ou madeira

nem memorial

nem busto

nem rua

nem escola

nem coletivos

nem ditos populares

nem tatuagens

nem corridos

nem pontos

gente-óbito

gente-anti-narrativa

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meus mestres foram mortos

mestres crianças

mestres mulheres

mestres jovens

corpos incendiados

ossos quebrados

a lixeira é pequena, o lixo desembarcado é grande

queima

quebra

gente-quebrada

condenados à anti-memória

anti-ancestralidade

seus corpos expostos quebram e queimam o caminho de retorno ao útero ancestral

condenados à condição de ossada perpétua

condenados a não retornar jamais

pretos novos

pretos travessia

pretos sem lugar

pretos flutuantes

pretos fossilizados

pretos óbitos

pretos farelos

pretos lixo

pretos novos

pretos novos lixos urbanos

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meus mestres nunca foram meus mestres

meus mestres nunca foram meus

meus mestres nunca foram

meus mestres nunca

meus mestres

meus

meus mestres

meus mestres foram

meus mestres foram mortos

meus mestres nunca foram mortos

Basquiat, 1982

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