Lembre-se de Lucrécia

mas não se esqueça das bentas e das franciscas

Akínwálé Òkòtó
revistaokoto
5 min readMay 4, 2022

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Três registros históricos de três mulheres no brasil dos séculos dezoito e dezenove. Os registros foram colhidos, por historiadores, do que sobrou dos arquivos coloniais, após a destruição dos registros de escravizados por autoridades brasileiras. Os três registros oferecem um retrato de vários ângulos da “sociedade do açúcar”, da região de mais intenso tráfico de Afrikanos do país, o norte-fluminense, e mais que isso: tem ali um raio x do brasil de ontem e de hoje. Se liga:

escravizados e sua sinhá em Nova Orleães no século dezenove / Hulton Archives

Benta Pereira é mulher festejada tanto por parte dos conservadores quanto por setores progressistas, de esquerda, no que hoje é a cidade de Campos dos Goytacazes. Benta Pereira teria liderado um levante contra o domínio dos Assecas, descendentes de Salvador Correia de Sá. Em consequência, a região retornou aos domínios da coroa portuguesa. Entre as razões porque é celebrada se destaca o pioneirismo em matéria de liderança feminina na política dos colonizadores das terras Goitacá e Purí. Em seu testamento, lavrado em 1752, constava dentre suas posses um grande número de pessoas de origem Afrikana em condição de escravizado e de “propriedade”, entre elas, Pedro, Ventura, João, Lourenço, Sebastião, um mais velho de nome Manuel, Maria, Ascenção, Inácia, Marcela, Francisca, Romão, Manuel, Salvador. Os nomes Afrikanos eram proibidos por lei e escravizados não podiam ter um sobrenome.

Francisca Barreto de Jesus Faria, esposa de um dos maiores e mais conhecidos traficantes de pessoas Pretas escravizadas dessas terras. Seu marido possuía três grandes fazendas em São João da Barra, com centenas de escravizados. Como o tráfico de pessoas com o apoio das autoridades regionais e (inter)nacionais, mesmo quando na letra da lei o tráfico já tinha sido proibido, fazia dele nobre na “sociedade do açúcar”, exerceu uma série funções administrativas. Foi patrão-mor do porto de São João da Barra, presidente da câmara administrativa e delegado de polícia, entre outras funções de grande influência política. Com a fortuna acumulada com o tráfico, o marido de Francisca, comendador Joaquim Thomaz de Faria, católico fiel, construiu, em 1847, a igreja da Boa Morte, em São João da Barra. Para além dos laços íntimos com a Igreja, o casal era cortejado por autoridades políticas locais, nacionais e estrangeiras.

Quanto à Francisca, católica fervorosa, doou terras para a construção da igreja da Penha, em Atafona. No seu testamento, lavrado em 1876, escreveu o seguinte:
“Por minha morte ficará liberta a escrava Ambrozina, parda, a quem deixo para a servir a escrava Gabriella. Além deste legado, terá mais a quantia de hum conto de réis que lhe será entregue por meo testamenteiro. Também por minha morte ficará liberta a parda Idalia: deixo à mesma a quantia de hum conto de réis e a escrava Clemencia para a servir. Estas duas escravas que liberto, como acima disse, merecem de mim esse favor”.

As duas afrodescendentes de pele mais clara que, após sua morte e pela via do testamento, Francisca fez sinhás pardas eram ou filhas de seu marido ou de outro parente de Francisca, que, nessa condição de bastardas, serviam de escravaria da casa, como via de regra acontecia. Parte importante da escravaria da casa era gerada pela via do estupro, com a participação ativa da mulher branca. Miscigenação, a violência sexual e fazendas do sexo foram armas críticas usadas contra mulheres, homens e crianças Afrikanos, atendendo a fins distintos, a depender de quem praticava, a mando de quem e de onde praticava, se no interior da casa grande, na lavoura ou na senzala.

Um terceiro ângulo segue na transcrição de parte de uma ação judicial interposta em 1883, por uma mais velha, já idosa, Afrikana de nome Lucrécia, que solicita à “Justiça” Municipal sua liberdade. Veja:

“Auto das perguntas feitas à africana Lucrécia.
(…) perguntado seu nome, filiação, naturalidade e residência, respondeu chamar-se Lucrécia, filha de Manoel e Eleutéria, residentes no continente africano, donde também é ella respondente natural do Reino de Benguela e que atualmente reside em São João da Barra. Perguntada quando veio ou chegou ao Império do Brazil, que idade tinha então, onde se effectuara o seu desembarque? Respondeu que há muito tempo se acha ella respondente no Brazil, pelo que não sabe precizar a data ou época de sua vinda; sabe porém que já era mulher feita, maior de dezesseis annos, pouco mais ou menos, e que o seu desembarque neste Paiz teve lugar na Praia Grande de Manguinhos. Perguntada se sabia o nome do navio ou barco que a trouxe ou do Commandante que o dirigia e a nacionalidade deste? Respondeu que de nada sabia, porque não entendia a língua e chorando como vinha em nada podia reparar, podendo notar apenas que o Commandante era branco. (…) Perguntada se é bem tratada por esse ultimo seu senhor [referido como Professor Mendes]? Respondeu que ele conjuntamente com sua mulher a tem maltrado horrivelmente, chegando a queimar sua fronte com tição de fogo, e dando com o salto da botina nos joelhos, que ella respondente já os tem inchados e aleijados, além de pancadas de que é a respondente victima de um e outro. Perguntada se tem filhos, quantos e onde residem? Respondeu que tem trez filhas, que vivem ainda, uma na fazendo do referido barão, outra alforreada já e a terceira vendida pelo dito Medeiros para a Côrte. E como nada mais foi respondido nem perguntado, dou por findo este auto.”

Estão aí as palavras de Lucrécia. Aí está um fragmento de material importante para, em primeiro lugar, sim, lembrar de Lucrécia e das muitas Lucrécias que atravessaram o desterro. Serve ainda para refletir sobre a relação da mulher branca com o patriarcado, para além das patacoadas feministas. Serve para refletir sobre o papel fundamental da igreja nessa imundície toda. Serve para refletir sobre formas de colorismo institucionalizado na figura da ex-escrava, filha bastarda do seu escravizador, feita dona de escravos após a morte de sua sinhá, como uma forma de compensação e dever ante sua condição mestiça. Serve para refletir sobre como esses papéis vêm sendo refeitos hoje, sob novos nomes, novas dinâmicas, mas segundo a mesma lógica política anti-Afrikana.

Lembre-se de Lucrécia, e não se esqueça das bentas e das franciscas.

fonte: Escravidão e engenhos, joão oscar.

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