Lições do Ayiti (2)

Passos que vêm de longe.

Akínwálé Òkòtó
revistaokoto
5 min readAug 4, 2022

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Você provavelmente já ouviu falar de uma guerreira por trás de um dos maiores feitos de pessoas pretas organizadas na modernidade: a Revolução do Ayiti. Você provavelmente já ouviu falar de Janjak Desalin (Jean-Jacques Dessalines) e de uma guerreira do Dahomey que lhe teria ensinado, senão tudo, quase tudo, mas você sabe o nome dela? Sabe como ela foi parar numa ilha no meio do Atlântico? Vamo aqui, então:

Imagem ilustrativa / domínio público

Adbaraya Toya (também escrito Agbaraya Tòya) era parte de um exército feminino do Reino do Dahomey, em terras que hoje conhecemos como Benin. Como nos ensina Bayyinah Belo, o Reino do Dahomey contava com dois exércitos distintos, cada qual com suas missões e propósitos específicos: um formado exclusivamente por homens guerreiros e outro, por mulheres guerreiras. O exército de guerreiras se chamava N’Nonmiton, que em língua Fon significa “nossas mães”.

Toya exercia uma função de liderança na frente de defesa do seu povo. Era também parteira e curandeira. Mas aconteceu que, em meio às guerras de colonialização, os invasores europeus sequestraram Toya e a traficaram para o Ayiti, onde seria escravizada. Chegando na Ilha, foi renomeada como Victoria Montou.

Uma guerreira do Dahomey, como nos conta Bayyinah Belo, não poderia se fazer escrava. E, diante da impossibilidade imediata de formar tropas e acender as revoltas, lhe restaria tirar a própria vida. E foi para isso que ela se recolheu para o meio da mata. Lá foi em busca das ervas para realizar a passagem de forma apropriada, conforme aprendeu da tradição Afrikana no Dahomey.

Sua intenção foi interrompida pelo som do choro de uma mulher grávida em sofrimento. Era uma mulher Afrikana, nomeada pelos escravizadores como Marie Elisabeth. Ela chorava as dores de um parto que parecia não ter forças e estrutura para realizar. A mulher pranteava as dores das vidas que já acreditava perdidas: a do bebê e a sua própria.

Toya se aproximou e logo se prontificou para realizar o parto, salvando a vida da criança. À Marie Elisabeth coube, minutos antes de morrer, fazer que Toya prometesse que cuidaria do pequeno grande ancestral retornado. Toya assim prometeu.

No caminho de volta à plantação donde, horas antes, tinha fugido com o intuito de dar fim à própria vida, Toya parou, levantou a criança bem alto, no limite da alcance dos seus longos braços, e declarou, refazendo-os, seu compromisso e seu propósito: eu vou permanecer viva para ajudar você a crescer forte e você terá que fazer por esta terra o que eu não pude fazer no Dahomey. Eu não pude manter o Dahomey livre, então você terá que fazer isso por esta terra.

Toya ensinou a Janjak a história dos e das grandes do Dahomey. Ensinou o básico das línguas Afrikanas, como Fon, Yorùbá, entre outras. Ensinou sobre espiritualidade Afrikana. Treinou Janjak em formas de luta Afrikanas, ensinou a ele o lançamento de facas, em que Toya era imbatível, e no uso da espada.

Aterrorizado com o que essa parceria entre aquela mulher negra e aquele homem negro poderia gerar, Henri Duclos, dono da plantação e proprietário de Janjak e sua “tia” Toya, decidiu vender Janjak para um lado e transferir Tòya para o outro. Janjak foi comprado por um alforriado que lhe deu o nome do seu ex-escravizador: Dessalines. Janjak se tornou Janjak Desalin.
Conforme o fogo da revolução negra se acende sobre a ilha, Toya, com uma idade já um tanto avançada, assume a liderança de uma das tropas pretas revolucionárias. Conforme descrição que fez dela um médico da época que cuidou da família Dessalines, de nome Jean-Baptiste Mirambeau:

“À frente de cerca de cinquenta escravizados, achava-se Toya, tendo uma foice na mão, uma enxada sobre um ombro e uma faca de anileira suspensa na cintura (…) Sob os comandos de Toya, uma parte é enviada para cortar madeira, uma outra, para arar o campo, outra a colher e depositar os cereais dentro de um grande cesto. (…) ela tem uma voz empostada, seus comandos são idênticos aos de um general.” Como muitos dos nossos aí, Mirambeau tinha apenas o Ocidente e os modos culturais dos brancos como referência cultural e civilizatória, e por isso só foi capaz de associar o papel de Toya ali ao de um general. Como muitos de nós hoje, não conhecia N’Nonmiton.

Com a prisão de L’Ouverture pelos franceses, Janjak Desalin assume a liderança da revolução e, após uma série de ações militares bem-sucedidas, declara, em 1804, a Independência do Ayiti. À frente do novo estado livre de toda sujeira colonial racista brankkka, Janjak se prontifica a retribuir à sua Tia Tòya com as mais altas honrarias e um posto de prestígio. Mas, àquela altura, a saúde de Tòya estava gravemente debilitada.

Em junho de 1805, Toya fez a passagem, tendo cumprido sua palavra e seu propósito de libertação do seu povo, onde estivesse. Janjak realizou seu enterro com um serviço funeral oficial, com todas as honrarias de estado. Entendia que era uma parte importante dele, do seu povo e de sua continuidade que seguia para outro plano.

Esses dias, estava conversando com Ọmọ Ọba e Máyọ̀wá sobre nossa falta de vergonha na cara de tornar todo um precioso legado em slogans, em autopromoção, sem que aquilo que se diz ser/fazer tenham liga em nada de concreto que estejamos realizando no agora. É “nós por nós” sem um nós em construção; são as autodeclarações de ascendência real Afrikana sem nenhum povo, nenhum reino e nenhum exército à vista; é quilombo nomeando puxadinhos dentro da máquina política-cultural brankkka; é “nossos passos vêm de longe” quando ninguém está vendo pegada ou rastro de nenhuma realização de/para povo. É palavra sem nenhum lastro concreto: é palavra sem àṣẹ.

Janjak, sim, poderia ter dito: “nossos passos vêm de longe”. As pegadas de Toya tão lá, tão aí, e foram honradas. Há grandes feitos, há registros, há trilhas de continuidade a refazer.

Diante desse relato de vida e obras de Toya, as perguntas que devemos nos fazer são: sobre o túmulo de quem que nós estamos depositando flores e honrarias? Esses gestos são/seriam aceitos neste e noutro plano? Da vida de quem podemos, de fato, ser reconhecidos, a partir dos nossos feitos concretos, como continuidade?

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