Lições do Ayiti

Akínwálé Òkòtó
revistaokoto
Published in
4 min readDec 5, 2021

São muitas as lições que a nossa história tem a nos dar. Você já escutou em algum lugar sobre esse modelo branc’o de militância focado na juventude não servir pra nós, né? Mas tá ligado que boa parte do corre de organização e planejamento do pontapé da Revolução do Ayiti foi tocado durante vários anos por uma mais velha? Que essa mais velha fez tudo isso já acima dos 60 anos? Sabe o nome dela? O papel dela na Grande Revolução Preta? Se liga:

Fatimah era filha de uma mulher Afrikana e de um branco da Córsega. Foi vendida junto com a mãe e seus irmãos para a Ilha de São Domingos, Ayiti, pra onde foram traficados e escravizados. Não há registro confirmando, mas tudo indica que Fatimah veio ao mundo pela brutalidade do estupro que sua mãe sofreu nas mãos do francês corso. Afinal, estamos falando da dinâmica de origem do que chamam de cultura — moderna — do estupro: a escravização de pessoas Afrikanas e a amputação das Famílias Pretas.

Imagem de uma Ayitiana atribuída à Mambo / wikipedia

Chegando à ilha e sendo vendida no leilão de escravos, Fatimah perdeu o contato com sua mãe e com seus irmãos. Na ordem escravocrata, a jovem foi renomeada com o nome francês de Cécile, passando a se chamar Cécile Fatimah. Tendo trabalhado longos anos na casa grande, Fatimah se viu, em idade já avançada, no trabalho penoso das plantações. Mudança que provavelmente foi uma forma de punição por insolência ou insubmissão.

Além de Mambo, seu título de alta sacerdotisa do Culto aos Voduns no Ayiti, Mambo Fatimah era reconhecida publicamente por seus trabalhos como curandeira e parteira. Os partos mais complicados eram com ela mesma.

Com uma determinada idade, a Mambo conseguiu se liberar dos trabalhos forçados das plantações e passou a assumir, em regime de escravidão, os cuidados dos bebês e crianças Pretas, incluindo os trabalhos de parto.

Tia Fatimah, como era chamada pelos Afrikanos e seus descendentes escravizados no Ayiti, aproveitou dessa condição, que lhe permitia circular por inúmeras fazendas da ilha, sob muita restrição e controle, para realizar, na boca pequena, a convocação e organização de homens e mulheres Pretos para a grande reunião no Bwa Kayiman (Bois Caïman), o ponto de partida da Revolução Preta.

Fazendo-se íntima da geografia da ilha, Tia Fatimah participava de todas as reuniões de organização e seguia nesse pique de caminhar, cavalgar, se esconder, caminhar, caminhar, cavalgar, se esconder e caminhar, reunindo pessoas Pretas. Era a organização para o dia que abriria nas suas palavras, “a epopeia ayitiana” em agosto de 1791. Foram quatro anos nesse corre, como nos contam Bayyinah Bello e sua equipe.

Não se engane! Ao atravessar a ilha de ponta a outra, a mais velha se colocava em grande risco, ter as pernas amputadas ou mesmo morta, se pega pelas autoridades sem as devidas autorizações dos sinhôs e das sinhás para circular pela ilha, noite e dia.

Àquela altura da vida, tendo sobrevivido a tanta violência, era preciso ter guardado um grau tamanho de coragem, determinação e dedicação por “Lafrik Ginen” (referência dos Afrikanos no Ayiti a Costa Ocidental da Afrika, seu lugar de origem).

No grande dia, Tia Fatimah já havia passado dos 60, quando se viu na posição de presidir o grande congresso político-ritual do Bwa Kayiman, junto com o N’Gan (ou Houngan, título de sacerdote Vodun) Dutty Boukman. Lá estavam homens e mulheres Arada, Bambara, Dogon, Ewe, Fon, Igbo, Kongo, Mina, Nago, Peul, Wolof, entre outros Povos Afrikanos, reunidos sob o comando da Tia Mambo Fatimah e de Papa Boukman.

Ela tocou a concepção, a organização e a gestão de todos os encontros de organização e planejamento para o grande encontro, nos conta Bayyinah Bello. Ali, no Bwa Kayiman, ela conduziu os rumos da conversa e do ritual. Contam os griots que, quando alguém pedia a palavra e se lançava numa de listar os horrores praticados pelos brankkkos contra os Pretos, Tia Fatimah cortava logo e botava a ordem na floresta, na casa. Ela lembrava logo aos emocionados que a questão a tratar ali era a tomada posição sobre as ações a serem ou não tomadas com o objetivo de pôr fim à escravidão. Sem tempo para lamentações sem fim: vapo! A Mambo não tava pra conversinha, pra papo de acolhimento. Ali não!

Ao tomar palavra, antes mesmo de fazer o que ficou conhecido pelos Afrikanos do Ayiti como “diskou Papa Boukman nan”, N’Gan Boukman fez um respeitoso agradecimento pelos anos de trabalhos da nossa Mambo.

Tia Fatimah viria mais tarde a se casar com um soldado mais jovem, Jean-Louis Michel Pierrot, que ela tinha dito que viria a ser presidente da ilha. Nossa Mambo não viveu para ver suas palavras se realizarem, com o então general chegando à presidência, em 1845. Em julho de 1841, Mambo Fatimah fez a passagem, com 112 anos vividos até os últimos instantes em plena lucidez.

Além da enorme tarefa de organização e congregação da grande família Afrikana no Ayiti, a Tia Mambo cumpriu o papel de guia espiritual da Revolução. 112 — cento e doze! — anos de vida, a maior parte deles sob as humilhações e violências sem limites da imundície supremacista brankkka, não foram capazes de apagar o fogo da liberdade daquele espírito encarnado na nossa mais velha.

Sua visão de organização espiritual e política foi documentada pelos escritos dos núcleos de organização que ela mesma montou e por griots ayitianos. Tudo para que as gerações posteriores pudessem decidir ou conhecer e dar prosseguimento à sua missão de libertação de Lafrik Ginen e da Mãe Afrika e seus filhos apartados pelo mundo, ou traí-la.

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