“Mas branco tem Orixá?” — reflexões sobre pessoas brancas em manifestações negras

Táíwò Òkòtó
5 min readFeb 19, 2018

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Sabem por que temos bem menos negros que brancos nos espaços de cultura negra? Porque o sistema é feito para nos barrar para que vocês possam passar e passear. Porque esse “barrar” do qual falo agora ocorre da forma mais bruta que possível, através do genocídio.

Quantos de vocês aí, brancos, já foram parados, com arma na cabeça, pela polícia enquanto corriam para não chegar atrasados numa roda de capoeira? Eu já contabilizo duas e a contagem está aberta. E, em uma delas, minha mandinga foi estar com um livro de direito na mochila, que tinha, como uma espécie de marcador de páginas, uma xerox das duas carteirinhas das duas faculdades que eu fazia, mumunha que quando caiu na mão dos policiais operou toda uma transformação no tratamento. Fez brotar imediatamente pedidos de desculpas.

Também, para tais ocasiões, eu sempre me revestia de um bem trabalhado ar de superioridade, vendendo uma segurança inabalável. Porque, desde cedo, aprendi que, quando a gente exala segurança, a gente transfere a insegurança pro outro lado. Pois, quando o camarada chega e te vê bem postado, e que, mesmo quando tinha tudo pra você ter medo, você está lá despreocupado, sustentando a bronca… Ahh, amigo, assim como qualquer predador fareja medo e vai pra cima, quando bate de frente com a confiança, ele afina.

A arte do blefe é capoeira. É mandinga. É coisa da nossa vida, do dia-a-dia. É pra lidar com uma realidade que nos é mais que fodida, na qual temos que andar “escaldadão” todos os dias.

E vocês ainda, quando chegamos para falar de racismo, dessas porras, e de apropriação cultural, têm coragem de dizer que nós somos/estamos chatos, que nossos papos são chatos, se portando como se fossem, vocês, vítimas diante dos nossos apontamentos?! Vocês querem mesmo falar de chatice e de apontamentos?! Logo pra mim, que tenho que enfrentar um mundo por conta da cor da minha pele, pelas minhas crenças e pra falar de coisas que moldam a realidade a qual sobrevivo?

Por acaso, pensam que a gente acha legal falar disso com vocês? Cara, tenha certeza que muitos de nós só se entregam à ingrata tarefa de tentar falar porque não podem dar tiro (rss), usar de outros meios… É bizarro, mas é tipo isso (rss). É rir pra não matar — quer dizer, chorar.

Sobre apontamentos, é bizarro que usem esse termo para reclamar diante de pessoas que enfrentaram e enfrentam apontamentos na vida que não são nada nutella. É como ver vocês dizendo que estão sendo vítima de “linchamento”. Porra! Vocês não percebem mesmo como isso soa e é ridículo. Eu tenho dúvida se vocês se ouvem. Pois, não é possível!

Saibam vocês que a capoeira nasceu como um contraponto à sua existência mesmo, tá? Afinal, é para proteger quem mesmo que a sociedade está sempre na vigília e contenção de corpos pretos? Vocês sabem? Desconfiam? Sabem a segurança de quem trabalham para garantir? Sabem quem é visto 24h por dia como ameaça a ela?

Os corpos negros e os corpos brancos, nessa sociedade, são antagonistas. Basta ver como eles reagem frente à polícia (e como a polícia reage a eles). Pra um, ela passa sensação de segurança. Para o outro, exatamente o oposto. Acontece com a sociedade como um todo que o corpo negro merece estado de atenção enquanto o branco merece estado atencioso. E podemos até trocar “estado” por “Estado”. É a realidade das coisas.

Vocês precisam entender que a capoeira não tem explicação no corpo branco. Pois, não era ele que precisava — e ainda precisa — ser safo por ser constantemente ameaçado, caçado. Se der bobeira, facilmente violado. Daí, deriva o fundamento, a razão de ser, da capoeira. É essa realidade a mãe da nossa sagacidade, mandinga que brota da necessidade de sobrevivência ao sistema garantidor do bem-estar do branco.

Se vocês não entendem isso, não sabem nem o que estão fazendo. Assim sendo, à revelia do fundamento que precede todo o fundamento, como pode o que vocês fazem ser capoeira? Capoeira “à la branca” não é capoeira. Capoeira branca não é capoeira. É algo abstrato. Jogar dessa forma é fazer cosplay de capoeira.

Só existe um corpo movido à resistência, lutando para não ser submetido, eliminado, nessa sociedade. Só existe um corpo que foi todo trabalhado pra “chamar na mandinga”, pois, caso contrário, não sobreviveria. Então, não venham me falar que são capoeira se nem bem isso entenderam. Se não respeitam isso.

Brancos que não reconhecem essa parada— a grande maioria — eu não reconheço como capoeira. Esse papo de mestre e contra-mestre branco que viram as costas para o racismo (e nem preciso dizer que se beneficiam dele)… gente, pára com isso! Não existe! No máximo é mestre ou contra mestre de ginástica com capoeira. Porque capoeira mesmo é muito mais.

Quem é um obstáculo à vivência negra não se faz digno de representar qualquer manifestação de matriz africana. Quem não respeita e alimenta o mensageiro, o canal por meio do qual a coisa lhe chegou, não merece nada. É princípio na nossa cultura alimentar o mensageiro, alimentar, antes de tudo, quem traz; reverenciá-lo. Quem foi — qual corpo — que lhes trouxe a capoeira? Hein?! Vocês ao menos sabem, né?! Sabem. Claro que sabem! Mas não estão nem aí pra ele.

Foto reprodução da internet

Por isso, que sempre que lançam o tal do “mas branco tem Orixá?”, eu respondo que não sei se tem ou se não tem, mas afirmo com toda certeza que de uma coisa eu sei: vocês falham feio com o princípio — que reside em Exu — que é alimentar, cuidar do mensageiro, daquele que serviu como canal, que providenciou a conexão.

Como tratam o corpo que possibilitou essa ligação? Como tratam o corpo que serviu de canal? Como tratam essa melanina, o canal de transmissão desse axé? Me digam! Digam para vocês mesmo. Pois, querem saber? No nosso mundo, consoante nossa cosmovisão, há uma coisa que é mais certa que a morte: quem não cuida do canal, não merece nada, não tem nada, não tem axé, não o acessa. E, sem axé, manifestação negra não é. Simples!

Post Scriptum

“ConTradição” na Capoeira

Imagina só que viagem se, na capoeira angola, discutir e lutar pela condição social da pessoa negra fosse encarado de forma tão séria quanto colocar a camisa pra dentro da calça e ter que jogar sempre calçado…

E se, na roda, as pessoas estranhassem a ausência ou o baixo número de pessoas negras como estranham a ausência de um dos instrumentos da bateria “tradicional” completa?

“A grande diferença é que angoleiro não é só corpo, angoleiro pensa”, dizem eles. Então, pensaí nessa viagem, camará. Pensa!

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