NIA: Propósito

Lisimba Dafari
revistaokoto
Published in
6 min readDec 28, 2020

Nascer, absorver, locomover, padecer, amadurecer, florescer e morrer. Sete verbos constantes em qualquer ciclo de vida, mas que muito pouco nos informa sobre seu sentido. Não que eu tenha uma pretensão de responder aqui o sentido da vida, contudo, acredito ser possível concordarmos que, ao menos no que se refere a seres humanos, viver vai muito além de sobreviver. A plenitude de se estar vivo(a) significa muito mais que escapar da morte ou resistir aos inevitáveis contratempos. Isso, basicamente, porque somos dotados de linguagem, da capacidade de atribuir valor e significado à tudo que envolve a nossa (co)existência. No entanto, sermos todos dotados com tal aptidão não implica dizer que a maioria de nós saibamos definir o propósito desse percurso ou de onde tiramos a direção que norteia nossos momentos entre o primeiro abrir de olhos e o nosso último suspiro.

Como as possibilidades de significação e interpretação proporcionadas por essa faculdade, singularmente humana, são incontáveis, podemos até divergir sobre o momento exato do começo da “vida”, contudo, fica bem complexo negar o papel fundamental que as circunstâncias nas quais chegamos ao mundo exercem na nossa cosmovisão. Sobretudo no que se refere ao contexto familiar, não necessariamente consanguíneo, que arca com os custos de alimentar e proteger seres tão frágeis e indefesos nos primeiros anos de vida. Nos tempos dos hominídeos primordiais talvez pudéssemos creditar somente às condições naturais do ambiente no qual nos desenvolvemos individual e coletivamente, todavia, atualmente, se faz inevitável compreendermos a trajetória daqueles e daquelas que habitaram este mundo antes de nós, pois essa informação nos fornece tanto carga genética como um lugar no emaranhado entre história, economia, política e cultura. Ainda mais para nós, que descendemos de homens e mulheres arrancados de suas raízes e sentenciados a existir sem outro porquê que não o enriquecimento dos responsáveis ​​pelo sequestro e deturpação de nossa história. Embora, para muitos, esse passado, nada distante, seja por demais doloroso ou vexatório, jamais teremos como desfazer os nós impostos nos distraindo com as “luzes” que vem da casa grande. Somente encarando detalhadamente cada apertado laço temos como desatar tudo aquilo que nos impede de retomarmos a grandeza interrompida pela instrumentalização das nossas forças vitais para melhor atendermos os mandos e desmandos de quem ainda enxerga mais serventia que significado em nossas veias.

Sem a devida compreensão de todas as técnicas e táticas que subjugaram nossos ancestrais não temos como avaliar o nosso real progresso rumo à Liberdade. Enquanto ignorarmos o que foi feito de nós ontem nunca teremos uma visão nítida do que somos hoje e de quem podemos/devemos nos tornar amanhã. Continuaremos nos contentando em driblar a morte e a miséria por não vislumbrarmos nada mais recompensador que a obediência àqueles (as) com as rédeas da história.

Por mais tentador que seja acreditar que séculos de condicionamento físico-mental (dos oprimidos) e moral (dos opressores) pudessem ter sido abolidos por uma redentora canetada, sabemos que toda mudança – principalmente de hábitos/tradições – requer um esforço consciente diário incompatível com os boletos da vida numa sociedade na qual ser “alguém” representa ser inconfundível com um(a) – neguinho(a)/incivilizado(a) – qualquer. Num mundo onde até a oposição “legítima” a esse tipo de pensamento elitista/meritocrático nos coloca na posição de adubar a profecia de um senhor-doutor revolucionário da mesma “nata” intelectual que sempre se julgou universal/superior demais para acatar direcionamentos vindos de gente sem os mesmos timbres europeus deles. Aquele ditado: ainda que destros prefiram a chibata e canhotos a canonizada palavra, ambos adoram as ovelhas arrebatadas às aquilombadas. Por mais acalentadora que seja a ideia de sermos escolhidos/salvos numa reforma da estrutura colonial, reconhecer que não há descolonização possível enquanto permanecermos à mercê dos mandos e desmandos dos herdeiros da casa grande. Não temos como nos considerar livres enquanto o nosso destino permanecer atrelado a cartilhas do colonizador.

“De que 'África Mítica' obteremos o nosso propósito então?”, questionará alguma fiel ovelha. Ao que respondo: das famílias que escolhemos cultivar; das conexões com as quais nos comprometermos fortalecer; das comunidades regadas pelo nosso suor e/ou lágrimas. Caso queiramos genuinamente romper com uma narrativa “civilizada” de salvação, precisamos botar o nosso na reta e restabelecer os nossos parâmetros de “sucesso” em termos de coletividade e não mais de “farinha pouca, meu Sodexo primeiro”. Para tanto, a comunidade deve deixar de ser um mero conceito teórico, mas uma rede a ser tecida e suportada pelas contribuições de cada elo. De acordo com as possibilidades e potencialidades de cada membro. Como numa família. Como nas trajetórias de tantas de nossas famílias onde há sempre um(a) mais velho(a) que fez de um tudo para que não faltasse nada aos seus a fim de que a geração seguinte tivesse mais recursos para garantir “luxos” impensáveis ​​para a anterior. Como estudar, se formar, ter uma infância, brinquedos, orgulho do próprio cabelo, um emprego digno e tantos outros “luxos”.

Um esforço que remonta tanto aos quilombos, como às ordens religiosas que faziam “consórcio” pra compra de alforrias de pessoas próximas e desconhecidas, como às escolas de samba, às maltas de capoeira, às casas de candomblé e da cultura ballroom e tantas associações//organizações/famílias formadas pelo reconhecimento de que a melhor forma de resistirmos a uma estrutura que nos marginaliza e esmaga é através da união em torno de objetivos em comum. De curto, médio e, principalmente, de longo prazo. Ainda que, no processo, uma forma outra de nos expressar, interagir e conceber o mundo emerja a ponto de nos tornamos incompreensíveis aos de fora. Um valor que tem se perdido cada dia mais diante da marola de que, a ocupação individual das raras “oportunidades” oferecidas – de executar mais funções por menos –, representa o avanço da mesma estrutura que continua fabricando balas “perdidas” em plena era do GPS de bolso. Por certo, nada disso quer dizer que o convívio e a proximidade serão um comercial de margarina. Embates são inerentes a qualquer relacionamento. A diferença é que da mesma forma que fazemos das tripas coração pra caber no mundo branco/ocidental(izado), ao transformarmos a valorização dos nossos em prática cotidiana, redescobrimos o quão recompensador é reconhecer-se parte de um espaço no qual podemos ser vistos em nossa inteiridade e não como a exceção “civilizada” da regra que nos desumaniza. A diferença é que o embate não seria em nos mostrar dignos de salvação, mas em alcançarmos os nossos próprios objetivos e não mais aqueles que nos exigem agachar até caber.

Por fim, como dito no início, viver, em seu sentido mais pleno, vai muito além de sobreviver. Se nos reconhecemos como semeaduras ancestrais na fé de dias melhores, precisamos agir de forma a somar nossos esforços aos dos que vieram ​​antes. Devemos buscar, a cada geração, mais conquistas e não nos contentarmos com as brechas cavadas pela anterior. Se passos a frente foram dados, mais longe conseguimos enxergar e mais buracos temos mapeados pelo caminho. O propósito de um povo, diferente de meta ou objetivo de vida, não se resume a conquistas solitárias, mas das que são compartilháveis. Das que oferecessem garantias aos que vierem depois e não daquelas que podem ser perdidas numa eventual troca de cadeiras mais conservadora no governo ou barganhadas por candidatos “bem” intencionados. O retorno de uma mudança real requer deve ir muito além de CPF, tendências de marketing, corrente filosófica, hashtag viral e tantas outras “conquistas” que, repetidamente, nos trazem de volta a ter que gritar o óbvio: nossa dignidade/humanidade nunca foi de vocês pra ser devolvida! A recompensa dos nossos sacrifícios rumo a uma Vida deve se refletir na integridade inegociável de nossos filhos, sobrinhos e netos. Na certeza de que eles não precisaram se humilhar para ter o que somente nós nos empenhados a dar: apreço e consideração.

O nosso propósito de povo surgirá através da construção dessa noção de povo. Da mesma forma que a nossa “democracia racial” levou séculos para se configurar como tal — e ainda temos muitas décadas para firmar a ruptura desse mito –, ainda serão necessários muitos mais séculos para que os passos seguintes se tornem mais visíveis. O nosso propósito, caso ainda esteja turvo, definirei com a resposta ao seguinte questionamento: esse “passo” que estamos celebrando agora, reafirma a empreitada “civilizatória” europeia ou traria conforto aos ânimos daqueles(as) que tentaram ao máximo preservar, desse lado do Atlântico, concepções e práticas nas quais a nossa “humanidade” nunca foi extirpada?

--

--