Ninguém escapa ao encontro com o espelho:

a sinceridade como valor de primeira ordem

Akínwálé Òkòtó
revistaokoto
5 min readJun 21, 2022

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Estava refletindo sobre o quanto a sinceridade é um valor de primeira ordem. E a primeira relação em que a sinceridade tem um papel decisivo é a relação consigo mesmo. Afinal não podemos ofertar o que não temos para nós mesmos, não é verdade? Pois é, e é ali que tropeça muita gente preta que se propõe a agir, atuar na direção de algum tipo de iniciativa mais ou menos coletiva.

Ilustração: Izaias Oliveira

Que os detratores e ressentidos mordam a testa, mas esse é sem dúvida um ponto forte no Kilûmbu Òkòtó. A sinceridade é nosso ponto de partida. Nem sempre é fácil olhar para o espelho, mas esse é o nosso passo primeiro aqui dentro. As reflexões e ruminações que o bonde lança nas redes e nos nossos meios de comunicação atestam isso.

Aqui, o autoexame do quanto estamos embranquecidos, quebrados, desorganizados é tarefa de primeira ordem. Sem isso, tropeçamos na tarefa de coletivamente criar os meios de nos refazermos indivíduos, pessoas íntegras e funcionais à comunidade, comprometidas com um propósito para além de nós mesmos. Vamos frisar essa última parte: um propósito para além de si mesmo. Vamos traduzir o que isso significa, em termos concretos? Significa que muito dos esforços feitos hoje serão colhidos e recompensados por gerações posteriores. “Quem planta tâmaras não colhe tâmaras”, eu escuto isso desde que entrei para a casa.

Aqueles cujo objetivo primeiro seja fazer seu nome ou de sua marca em cima de um programa coletivo aqui não se criam. Nem é sobre anular sua individualidade. É, antes, sobre individualidade e coletividade se nutrirem de modo equilibrado, como dizia Táíwò esses dias. Sem extrativismo e, assim, proporcionarem os meios de gerar e manter colheitas do hoje e das tâmaras do amanhã.

O ponto central da pedagogia e da filosofia do Òkòtó é a construção de pessoas. Pessoas muito frágeis, quebradas, desorganizadas, entregues à busca de compensações para uma autoimagem desfocada, saturada e mal assumida, não têm condições de construir organizações duráveis e prósperas. Sem a sinceridade no ato de olhar para o espelho, os passos seguintes serão só derrapadas. Só ladeira mesmo.

O que vemos em muitas iniciativas de pessoas Pretas é um tipo de voluntarismo confuso, muitas vezes motivado por um desejo de protagonismo e visibilidade à custa de uma pauta e agenda coletiva. Tudo isso é bastante previsível, quando observado de um ponto de vista histórico e sociológico. Não é surpresa alguma que um povo acostumado a ser dobrado, encolhido, silenciado venha a desenvolver um desejo muitas vezes desmedido de se colocar, se postar e de se destacar. Nesse pique, recorrem ao subterfúgio, ao atalho de substituir a imagem do espelho por imagens de negros e negras fabricados para a propaganda das instituições da ordem do dia. Recorrem a miragens de gente Preta projetadas nas propagandas comerciais e institucionais de organizações como partidos, mídias e academia. São produtos e conceitos do supremacismo branc’o. Falta-lhes substância, estrutura. Falta chão. Aquelas pessoas não estão ali, são apenas miragens.

Com o recurso ao atalho, surgem os reis e rainhas de Wakanda, os Zumbis e as Dandaras cercados de gente que Zumbi e Dandara teriam como inimigos. As Mães-guerreiras, cansadas demais para sustentar a própria palavra — logo a palavra que, como nos ensina a Tradição, é a nossa medida primordial de humanidade. Surgem ainda os pretagonistas não se sabe ao certo de que povo, já que a maior parte das famílias Pretas sequer os reconhece como a frente de algo para além da própria imagem fabricada.

Miragens. E não se pode escapar da substância dos fundamentos. Espelhar-se em uma dessas miragens é contribuir para o atraso do relógio do progresso do seu próprio povo. Enquanto você se enxerga, se encanta neles e nelas, seu espelho permanece lá, aguardando pelo encontro com você mesmo.

Sem o tempo do preparo, vemos pessoas tomando a frente, se colocando publicamente e sem a menor fibra emocional para o menor e o mais óbvio dos apontamentos de inconsistência. Pagam de brabos e brabas para, diante do primeiro apontamento, se quebrar, chorar e apelar emocionalmente. Pulando etapas, atropelando o tempo dos processos, muitos procedem no pique de quem declarou ser chegada a hora de florescer, sem que ninguém tenha antes tratado da terra ou cuidado do solo. Anunciam ser a hora de os humilhados serem exaltados, mesmo que a exaltação tenha como custo a própria humilhação. O que chamam de exaltação é normalmente entretenimento para um público branc’o. A humilhação não tarda a bater, porque, cedo ou tarde, de uma forma ou de outra, é preciso se deparar com o espelho. Ninguém escapa ao encontro com o espelho.

Não se trata de atingir um ideal de equilíbrio para daí iniciar um trabalho, uma iniciativa coletiva. Há muito de desenvolvimento que só vem tocando o trabalho em si. Por outro lado, há muito do tempo da autoavaliação sincera e de leitura política dos espaços, sem autoenganos, como dever inicial.

Nisso, é preciso não negligenciar o que é fundamento, que está lá no espelho. Esse é o passo primeiro, anterior a qualquer pretensão de ir à frente ou de cabeça em uma iniciativa. Pois, “ninguém experimenta a profundidade do rio com os dois pés”, assim nos ensina a Tradição Afrikana. Já no que diz respeito aos perigos das projeções e adesões a imagens, especialmente em contexto de forte apelo a imagens artificiais, à compra e venda, há um provérbio Yorùbá que assim nos ensina: “uma borboleta que se espelha em um pássaro não pode realizar o trabalho de um pássaro” — Labalábá tó fi ara rẹ̀ wé ẹyẹ kò lè ṣe iṣẹ́ ẹyẹ.

Malcolm X

Em cada espelho, um caminho, um ponto de partida, uma trajetória. Em cada espelho, um propósito. Para um público Preto, inaugurando uma nova fase no seu trabalho de organização, Malcolm X disse, “Eu não sou educado, nem sou especialista em qualquer campo em particular — mas sou sincero, e minha sinceridade são minhas credenciais”. Ali, nos ensinava que o que nos falta não é a carteira da federal ou nome no google. O que mais nos falta é sinceridade. Essa foi a credencial dos maiores na nossa história recente. A sinceridade foi o principal trunfo dos grandes e honoráveis, como foi Malcolm X.

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