Ninguém escapa ao encontro com o espelho:
a sinceridade como valor de primeira ordem
Estava refletindo sobre o quanto a sinceridade é um valor de primeira ordem. E a primeira relação em que a sinceridade tem um papel decisivo é a relação consigo mesmo. Afinal não podemos ofertar o que não temos para nós mesmos, não é verdade? Pois é, e é ali que tropeça muita gente preta que se propõe a agir, atuar na direção de algum tipo de iniciativa mais ou menos coletiva.
Que os detratores e ressentidos mordam a testa, mas esse é sem dúvida um ponto forte no Kilûmbu Òkòtó. A sinceridade é nosso ponto de partida. Nem sempre é fácil olhar para o espelho, mas esse é o nosso passo primeiro aqui dentro. As reflexões e ruminações que o bonde lança nas redes e nos nossos meios de comunicação atestam isso.
Aqui, o autoexame do quanto estamos embranquecidos, quebrados, desorganizados é tarefa de primeira ordem. Sem isso, tropeçamos na tarefa de coletivamente criar os meios de nos refazermos indivíduos, pessoas íntegras e funcionais à comunidade, comprometidas com um propósito para além de nós mesmos. Vamos frisar essa última parte: um propósito para além de si mesmo. Vamos traduzir o que isso significa, em termos concretos? Significa que muito dos esforços feitos hoje serão colhidos e recompensados por gerações posteriores. “Quem planta tâmaras não colhe tâmaras”, eu escuto isso desde que entrei para a casa.
Aqueles cujo objetivo primeiro seja fazer seu nome ou de sua marca em cima de um programa coletivo aqui não se criam. Nem é sobre anular sua individualidade. É, antes, sobre individualidade e coletividade se nutrirem de modo equilibrado, como dizia Táíwò esses dias. Sem extrativismo e, assim, proporcionarem os meios de gerar e manter colheitas do hoje e das tâmaras do amanhã.
O ponto central da pedagogia e da filosofia do Òkòtó é a construção de pessoas. Pessoas muito frágeis, quebradas, desorganizadas, entregues à busca de compensações para uma autoimagem desfocada, saturada e mal assumida, não têm condições de construir organizações duráveis e prósperas. Sem a sinceridade no ato de olhar para o espelho, os passos seguintes serão só derrapadas. Só ladeira mesmo.
O que vemos em muitas iniciativas de pessoas Pretas é um tipo de voluntarismo confuso, muitas vezes motivado por um desejo de protagonismo e visibilidade à custa de uma pauta e agenda coletiva. Tudo isso é bastante previsível, quando observado de um ponto de vista histórico e sociológico. Não é surpresa alguma que um povo acostumado a ser dobrado, encolhido, silenciado venha a desenvolver um desejo muitas vezes desmedido de se colocar, se postar e de se destacar. Nesse pique, recorrem ao subterfúgio, ao atalho de substituir a imagem do espelho por imagens de negros e negras fabricados para a propaganda das instituições da ordem do dia. Recorrem a miragens de gente Preta projetadas nas propagandas comerciais e institucionais de organizações como partidos, mídias e academia. São produtos e conceitos do supremacismo branc’o. Falta-lhes substância, estrutura. Falta chão. Aquelas pessoas não estão ali, são apenas miragens.
Com o recurso ao atalho, surgem os reis e rainhas de Wakanda, os Zumbis e as Dandaras cercados de gente que Zumbi e Dandara teriam como inimigos. As Mães-guerreiras, cansadas demais para sustentar a própria palavra — logo a palavra que, como nos ensina a Tradição, é a nossa medida primordial de humanidade. Surgem ainda os pretagonistas não se sabe ao certo de que povo, já que a maior parte das famílias Pretas sequer os reconhece como a frente de algo para além da própria imagem fabricada.
Miragens. E não se pode escapar da substância dos fundamentos. Espelhar-se em uma dessas miragens é contribuir para o atraso do relógio do progresso do seu próprio povo. Enquanto você se enxerga, se encanta neles e nelas, seu espelho permanece lá, aguardando pelo encontro com você mesmo.
Sem o tempo do preparo, vemos pessoas tomando a frente, se colocando publicamente e sem a menor fibra emocional para o menor e o mais óbvio dos apontamentos de inconsistência. Pagam de brabos e brabas para, diante do primeiro apontamento, se quebrar, chorar e apelar emocionalmente. Pulando etapas, atropelando o tempo dos processos, muitos procedem no pique de quem declarou ser chegada a hora de florescer, sem que ninguém tenha antes tratado da terra ou cuidado do solo. Anunciam ser a hora de os humilhados serem exaltados, mesmo que a exaltação tenha como custo a própria humilhação. O que chamam de exaltação é normalmente entretenimento para um público branc’o. A humilhação não tarda a bater, porque, cedo ou tarde, de uma forma ou de outra, é preciso se deparar com o espelho. Ninguém escapa ao encontro com o espelho.
Não se trata de atingir um ideal de equilíbrio para daí iniciar um trabalho, uma iniciativa coletiva. Há muito de desenvolvimento que só vem tocando o trabalho em si. Por outro lado, há muito do tempo da autoavaliação sincera e de leitura política dos espaços, sem autoenganos, como dever inicial.
Nisso, é preciso não negligenciar o que é fundamento, que está lá no espelho. Esse é o passo primeiro, anterior a qualquer pretensão de ir à frente ou de cabeça em uma iniciativa. Pois, “ninguém experimenta a profundidade do rio com os dois pés”, assim nos ensina a Tradição Afrikana. Já no que diz respeito aos perigos das projeções e adesões a imagens, especialmente em contexto de forte apelo a imagens artificiais, à compra e venda, há um provérbio Yorùbá que assim nos ensina: “uma borboleta que se espelha em um pássaro não pode realizar o trabalho de um pássaro” — Labalábá tó fi ara rẹ̀ wé ẹyẹ kò lè ṣe iṣẹ́ ẹyẹ.
Em cada espelho, um caminho, um ponto de partida, uma trajetória. Em cada espelho, um propósito. Para um público Preto, inaugurando uma nova fase no seu trabalho de organização, Malcolm X disse, “Eu não sou educado, nem sou especialista em qualquer campo em particular — mas sou sincero, e minha sinceridade são minhas credenciais”. Ali, nos ensinava que o que nos falta não é a carteira da federal ou nome no google. O que mais nos falta é sinceridade. Essa foi a credencial dos maiores na nossa história recente. A sinceridade foi o principal trunfo dos grandes e honoráveis, como foi Malcolm X.