Nunca deixamos de existir

Kamila Aranha
revistaokoto
Published in
3 min readOct 14, 2021

Acho que todos temos alguém muito querido que não vive mais entre nós. Na maioria das vezes a dor é muito maior por acreditar que a pessoa morreu e deixou de existir do que por outros motivos. Tem a saudade sim, mas é comum se apegar a esta “não existência” da pessoa. É sobre a forma como nos relacionamos com a morte.

Fu-kiau chama a atenção para uma falsa ideia que alguns têm, de que os africanos veneram os mortos e explica de uma maneira muito didática o porquê disso não ser verdade.

Ele explica que no conceito Kongo, não existe isso de chamar ancestral de morto, e essa é uma coisa que eu já trouxe em outro texto, mas não com ênfase. Sabemos que estamos sempre renascendo ao longo da vida e de vidas, que tudo é cíclico, mas o mundo ocidental insiste em dizer que os africanos veneram os mortos.

Bem, na explicação de Fu-kiau, ele usa de exemplo uma caixa como sendo nossa matéria, a nossa parte física, em que nosso espírito sai deste corpo e passa uma espécie de férias em outro lugar. O corpo que habitamos é a nossa casca e quando alguém morre, olhamos para aquele corpo e nos lembramos de quem “estava” ali, e sabemos que a pessoa não está mais naquele lugar físico, aquela pele não é quem realmente somos, mas onde estávamos.

Se pensarmos nisso na prática reconhecemos inconscientemente que quem estava ali se foi, e o que fica é a matéria. Quando falamos de ancestrais, não estamos falando de um corpo morto, estamos falando de quem habitou um corpo, que deixou de residir naquela matéria e fez a passagem. Logo, não veneramos mortos, pois mortos estão os corpos, não o espírito, e não veneramos corpos mortos, mas o espíritos destes.

O que quero dizer é que a forma como sofremos pela morte de alguém é mais pela presença física. Entender que não acaba ali muda totalmente o sentido da morte. É normal sentir saudades da presença física de quem amamos, mas é reconfortante saber que não acabou ali para aquela pessoa, pois estamos sempre voltando.

Em um outro texto, também falei sobre os ancestrais e o que os eleva a tal nível, e é justamente por isso que têm nossa admiração e se tornam nossas referências. Entender isso é muito importante pra gente se livrar dessa forma cristã de sentir as mortes.

Não estou dizendo que por isso não vamos ficar tristes, nem que podemos morrer a torto e à direita. Isso seria concordar e aceitar o racismo que sofremos. Não temos mesmo que aceitar morrer pelas mãos dos brancos. Temos que lutar todos os dias e se for pra morrer, que seja com honra, pelos nossos, pelas nossas batalhas, que nesse momento é principalmente contra o racismo. Que se a gente cair, caia atirando, com a certeza de estar fazendo algo importante pela emancipação do nosso povo. Estou dizendo que viemos de uma cultura que crê que a vida é uma passagem imaterial, e que vamos voltar e voltar e voltar quantas vezes precisar, quantas vidas forem necessárias, e assim sendo, não deixaremos de existir.

Então, quando se lembrar de alguém que já se foi, e sentir saudade, não fique triste e se lembre também que esse alguém há de voltar e que nunca deixou de existir.

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