O axé que sai da boca: a importância da energia contida nas palavras

Anlenvu
7 min readApr 24, 2018

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O grande Mestre Pastinha com seu célebre ensinamento: “Capoeira é tudo o que a boca come!”

A fala pode criar a paz, assim como pode destruí‑la. É como o fogo. Uma única palavra imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo modo que um graveto em chamas pode provocar um grande incêndio.

- Amadou Hampaté Bâ, em “A tradição viva”.

Um dos elementos presentes na cultura africana e que possui total contraponto com a cultura ocidental é a oralidade. Comunidades tradicionais africanas acreditam que a boca é um dos mecanismos de transmissão de energia mais poderosos que existe. Ela tem o poder de emanar axé, a energia vital que circula em tudo aquilo que está na natureza em sua forma orgânica. A palavra falada dá existência às coisas; através dela são conduzidos processos iniciáticos, ritos de passagem e cerimônias de culto às divindades como também por ela ocorre a maior parte do fenômeno de transmissão de conhecimento entre pessoas, principalmente dos Mais Velhos para os mais novos.

Diante de tanta importância, entendemos que a boca não é só um elemento de nossa anatomia; Através do que sai dela, ditamos como as relações se dão entre nós e definimos nosso vínculo com a comunidade que nos cerca. A fala é a principal forma de se provar o caráter de uma pessoa. Dentro da cultura africana, a palavra tem vínculo direto com a ancestralidade, o que faz com que tratados firmados de forma oral tenham total legitimidade, a ponto de levar um indivíduo a desonrar o legado de seus ancestrais e até mesmo ser desmembrado de determinada comunidade, caso faça uma promessa ou firme um tratado e não cumpra com sua palavra.

Em contrapartida, a cultura ocidental, de forma intencionalmente antagônica, não reconhece a importância da oralidade. Pelo contrário: por aqui, vivemos o eterno ciclo da burocracia. Tudo o que fazemos só tem valia se houver algo escrito que possa comprovar: se alguma criança nasce, os pais correm pra elaborar certidão; pra casar, tem que ter papel; pra comprar casa, tem que ter papel; pra abrir uma sociedade, tem que ter papel; até na nossa morte tem que ter documento pra reconhecer! O ocidente então, criou a necessidade de afirmação através do que é escrito, e isso é muito presente em nosso dia-a-dia.

A supervalorização da palavra escrita nos mostra uma outra faceta difundida ao longo da História ocidental: a displicência com aquilo que é dito. Em nossas relações cotidianas não há valorização ao que é falado; o que nos torna despreocupados em cumprir aquilo que dizemos. E o pior: além da displicência com o que se diz fazer parte de um sistema naturalizado, utilizamos do “vazio” do discurso o tempo todo: Quem nunca marcou um compromisso presencialmente com aquele (a) amigo (a) e depois, quando chegou no dia da parada, mandou aquela letra no WhatsApp só pra confirmar? Ou pior: se você teve o desprazer de, estando em um determinado local com uma pessoa, marcar um próximo encontro e, chegando no dia, recebe um “bolo” justificado com o seguinte migué: “Ah, mas eu te mandei mensagem e você não confirmou”, ou “Ah, você falou comigo naquele dia [que você marcou com a pessoa presencialmente] mas não falou mais nada no WhatsApp”, etc, sabe do que eu tô falando. Nossa palavra é tão desacreditada que temos de reafirma-la a todo o momento.

Ao entrarmos em contato com a História, vemos que a falta de compromisso com aquilo que sai da boca é uma antiga novela, além de naturalizar a mentira: imagine só se, ao chegarem no continente americano ou em qualquer outro território que tenha passado pela colonização no mundo, o homem branco europeu afirmasse sua real intenção diante de povos não brancos? Imaginem se todos os representantes do Estado hoje fossem totalmente preocupados com aquilo que dizem em suas campanhas eleitorais? Imaginem se tudo aquilo que afirmamos com nossa boca fosse realmente um dispositivo que nos mobilizasse para honrar aquilo que falamos?

Pois é, nosso descuido com a palavra é um problema sério, e isso nos traz graves consequências espiritualmente. Lembra do começo do texto, quando falei sobre a transmissão de energia pelas palavras? Pois é. Agora, raciocina comigo: se você transmite energia por tudo aquilo que você fala e não cuida para que aquilo que você fala seja levado adiante, que tipo de energia você acha que está passando a outras pessoas? E isso também recai sobre você, afinal, a oralidade é um processo cíclico.

Utilizando as palavras do grande Mestre Pastinha, “Capoeira é tudo que a boca come”. Me atreveria a dizer que não só o que a boca come constitui a capoeira, mas também o que sai dela. Afinal, o que é a capoeira senão um constante jogo de pergunta e resposta? Quando você se permite adentrar no jogo do corpo com o outro, há uma cadeia de transmissão energética poderosa ali, o que demanda responsabilidade de todos os envolvidos.

Sendo assim, irmã(o), te faço um desafiador convite: repense o tipo de energia que é transmitida por suas palavras. Reveja a responsabilidade assumida com seus semelhantes; se firmou um compromisso, cumpra-o. Agora, se você não for capaz de cumprir algo, seja honesto de não assumir o compromisso. Não há problema nenhum nisso. Entretanto, não veja o cuidado com as palavras como um limitador, ou algo que vai fazer você pensar 50 mil vezes antes de fazer algo. Faça com que, ao assumir um compromisso, ainda que você não tenha todas as condições de cumpri-lo no momento, ou não tenha segurança para saber o resultado, se sinta encorajado a correr atrás e procurar formas sólidas de fazer se cumprir o que você falou.

Priorize suas metas e se organize para alcança-las:

Em muitos momentos fazemos promessas a nós mesmos que, no fundo, não nos consideramos capazes de alcançar. É aí que você se engana: se saiu da sua boca, tudo você pode. Porém, seja zeloso para cumprir: se organize, veja as melhores formas de se alcançar o objetivo; estabeleça um prazo a curto, médio e longo alcance; procure pessoas que possam te ajudar a chegar onde você quer: acredite, sempre temos uma rede de apoio, e, geralmente, não percebemos isso porque não sabemos como pedir ajuda ao outro. Permita-se trabalhar com a coletividade, e você pode se surpreender com a quantidade de pessoas que podem se disponibilizar para te ajudar.

Valorize a ancestralidade e a transmissão de conhecimento através da oralidade:

Sabe aquele(a) tiozinho(a) preto(a) que sempre te dá bom dia/boa tarde/boa noite na sua rua quando você tá chegando ou saindo dos rolês cotidianos? Aquela tia mais velha que sempre está em todas as festas de família? Então, ele(a) com certeza pode ter uma boa história sobre o bairro onde você mora, sua família ou uma experiência enriquecedora de quando tinha a sua idade. Tire um dia e pergunte a ele como eram as coisas há 30, 40, 50 anos atrás. Você pode aprender coisas incríveis, e receber uma energia renovadora pra continuar sua caminhada. Muitas dificuldades que passamos nos parecem penosas porque temos a impressão de que aquilo só ocorre com a gente na mesma situação. É aí que você se engana: ancestralidade é um ciclo. As experiências que você vive hoje em algum momento podem ter sido vividas por um(a) Mais Velho(a) que conseguiu enfrentar o problema. Logo, permitir que o outro transmita essa energia pra você pode te ajudar bastante. Um bom caminho a se fazer também é tentar traçar sua linha ancestral direta através de seus pais/avós. Perguntem como eram os avós deles, como foram suas infâncias e como era a vida deles quando tinham sua idade. Você pode perceber que seus ancestrais estão presentes na sua forma de se relacionar com o mundo de maneira muito mais intensa do que imagina, e isso é um processo orgânico. Uma excelente forma de sabermos para onde vamos, é situar bem de onde viemos.

Da mesma forma, zele pelas crianças. Sabemos o quanto pode ser difícil a realidade de uma criança preta no processo de formação de identidade, principalmente no processo de escolarização. Conte sua história para ela. Conte como eram as coisas quando tinha a idade dela (se você se lembrar, claro rs), mas procure colocar informações sobre sua infância e sobre pessoas ligadas a ela. Tenho feito isso com as crianças de minha família, principalmente com minha irmã mais nova, de 9 anos. Tenho feito o exercício de sempre contar histórias sobre minha infância, o bairro que eu cresci, sobre a infância de minha mãe e tudo aquilo que sei sobre a história de meus ancestrais a ela. Isso me faz sentir alguém responsável pela continuidade de meus ancestrais e recebo cada feedback dela que me faz repensar muitas coisas a respeito de mim. Ver na prática a transmissão de energia que a oralidade perpassa ligada à ancestralidade é inexplicável.

É claro que, não vim aqui dar a Fórmula Mágica da Paz a ninguém. Todos nós sabemos de nossos problemas e temos nossas particularidades para enfrenta-los. Esse texto é apenas uma pequena sugestão/reflexão sobre o quanto aquilo que falamos e ouvimos tem o poder de nos derrubar e erguer, seja individual ou coletivamente. Pense nisso. Ou melhor, fale sobre o que tratamos aqui pra alguém e o mais importante: dê o devido valor ao que sai da sua boca.

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Anlenvu

Homem negro, candomblecista, marido, psicólogo, 28.