O Capoeira e a Arte de Bailar na Encruzilhada

Das coisas mais importantes que a capoeira têm a nos ensinar é a malandragem de sambar na encruzilhada

Táíwò Òkòtó
revistaokoto
6 min readFeb 2, 2021

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O que é capoeira? Defina capoeira! E está aí a primeira encruzilhada. A capoeira é isso e aquilo; é aquilo e aquilo outro. É essa parada sem deixar de ser aquela parada. A capoeira está exatamente na encruzilhada. Uns tentam dizer que ela tá mais pra cá, outros juram que está mais lá, uns dizem que não está nem lá, nem cá. É difícil definir capoeira. Porque ninguém sabe bem onde ela está. Tá aqui, tá ali, tá em todo lugar.

Sextô Ed. Nov/20 (acervo Òkòtó)

É luta ou é dança? É brasileira ou africana? É ou não é religião? Para uns, sim. Para outros, não. É esporte? Vale ou não vale usar a mão? É uma competição? Admite competição? Enfim, o que é a capoeira? É sim, sim, sim? É não, não, não? Ora, é sim, sim, sim. Ora, é não, não, não. “Capoeira é tudo que a boca come” (Mestre Pastinha). É luta para bater nos inimigos. É brinquedo para brincar com os irmãos. A capoeira é a capoeira. O que mais? Depende da ocasião. A capoeira é. Apenas é.

A capoeira é múltipla sem deixar de ser uma. E esse é um princípio fundamental da nossa espiritualidade. Nos diversos sistemas espirituais africanos, vemos que o criador é aquele que sabe experimentar a unidade na diversidade, ser múltiplo sem deixar de ser um, de ser único. Voduns, Nkises, Orixás, Neterus não são exatamentes Deuses. São as múltiplas manifestações de Deus, ou de suas diversas facetas. Que também não é bem Deus, pois essa é uma palavra que até dá uma noção mas não dá precisão, não define bem, é mera aproximação. E uma coisa braba de se perceber é que o que é mesmo preto está nessas encruzilhadas, no cruzamento de definições, possibilidades. O português tem dificuldade de definir. Há complexidades no que é nosso que a língua outra não dá conta. O candomblé é só mais um exemplo. A definição como religião não dá conta. É muita limitação. Vai ser a eterna briga entre a cultura que limita e a cultura que expande.

Aprendi com a capoeira que o que é nosso, o que veio da gente, não é para gente ou para as mentes limitadas.

Pensa numa casa bem na esquina. Vai precisar de uma convenção para dizer que ela é nessa rua e não naquela. Sendo que ela está nessa rua e naquela. Mas pessoas limitadas vão precisar limitar. Não só para entender. Mas principalmente por motivo de controle, para controlar. E é daí o pavor da encruzilhada. Porque ali não se arruma nada. Você fecha daqui, ele pula para lá, você procura de cá e ele aparece lá. Você diz para procurar numa rua, mas num passo ele já está em outra. Pois a encruza é o epicentro das possibilidades. Oferece alternativas. E não fica encurralado quem tem possibilidades, quem tem alternativas. A quem tem possibilidades, quem tem alternativas, não se domina.

“Ah, quem é você?”

Quem quer saber? Quer saber por quê? Do que adianta eu te dizer que sou algo hoje, se amanhã ou daqui a alguns segundos eu posso não ser? A gente às vezes é não sendo e não é sendo… vai dependendo. Tudo depende do momento. Como o capoeira, que às vezes é brincalhão, é só brincadeira. Às vezes, é bem violento. Outras vezes, é brincalhão sem deixar de ser violento. Como violento sem deixar de ser brincalhão. Ser ou não ser… depende da ocasião. “Ah, quem é você?”, se quer saber mesmo me acompanhe para ver. Quem não é de me acompanhar, quer saber por quê? E para quem não sabe quem tu és, tu vai dizer pra quê? Vai dar o mapa da mina por quê?

Somos tanta coisa. Somos tantos dentro de uma só pessoa.

Para ser pai não precisa deixar de ser amigo, ou de ser filho. Para ser amigo não precisa deixar de ser irmão. Para ser dança não precisa deixar de ser luta. Para ser sério não precisa deixar de ser, ou de proporcionar, diversão. Ser profano não nega ser sagrado e nem o contrário. Um camarada bacana não está eximido de fazer papel de otário, de ser otário. Um malandro, tem que estar sempre ligado, não pode ser displicente, porque também pode ficar de otário. Porque o mundo é movimento, não dá pra vacilar, não dá pra ficar parado. Displicente, e quem é demais confiante ou confiado, acaba pagando caro. Tem que tá sempre ligado.

Nesse mundo, a pior coisa é a gente ter posições enrijecidas, não ser flexível, maleável. Foi por excesso de confiança que o malandro se fez otário, mergulhou de cabeça no raso. Viver é estar sempre ligado.

Sextô Ed. Nov/20 (acervo Òkòtó)

A coisa que mais dá rasteira no capoeira é a “certeza”. É por considerar certo que você não se prepara para o “se der errado”, e quando percebe que não foi como esperava já se viu deitado. Porque é assim no jogo de capoeira, é questão de segundos que Exú testa sua fé brincando com suas certezas. É assim, no fogo de Exú, que se forjam os capoeiras. No jogo de quem adora uma gaiatice, umas brincadeiras, é melhor não vacilar. É melhor não dar bobeira. É bom duvidar do que tá vendo, não tomar nada por certo. É pensar em termos de encruzilhada, em termos de possibilidades. É não achar que é ou tem que ser isso ou aquilo. É sobre deixar de encarar a natureza volátil da vida como uma surpresa.

Quem tem poder na encruzilhada, quem tem poder sobre as possibilidades, pode qualquer parada

Aprendi tanta coisa com a capoeira… mas a mais preciosa sem dúvidas foi sobre bailar na encruzilhada. Aprendi que perigoso mesmo é quem ali baila. Quem tem tanta facilidade para estar ali quanto para estar cá. Você precisa entender a força, o poder, de quem domina esse lugar. Sabe aquele Orixá que está justamente na encruza entre o Orum e o Ayê? É ele que guarda o axé, que é o poder de fazer acontecer. Quem baila na encruzilhada tem o poder de fazer acontecer. É quem cuida do que vai se realizar, o que passa no portal entre o mundo material e imaterial. Quem tem poder na encruzilhada, quem tem poder sobre as possibilidades, pode qualquer parada. Quem não enxerga o mundo em termos de certeza, mas, sim, de possibilidades.

A pessoa que vê o mundo como um capoeira nunca se sentirá encurralada, porque está acostumada a enxergar tudo como uma encruzilhada, para a qual está sempre se preparando, está sempre preparada. Vai sempre ter saída quem manja das encruzilhadas. E vai ter extrema facilidade de dar perdido em gente mal intencionada. Viver é sobre manjar das encruzilhadas.

Para quem leva a vida curtido na ciência da encruzilhada, pega é nada! Não pega nada! Resolve qualquer parada. Porque a vida é sobre achar saída. E a encruzilhada é cheia de saídas… que também são entradas. As definições ficam indefinidas nas encruzilhadas. E a vida se faz na encruzilhada. Sua vida é tão boa ou tão ruim quanto as decisões, os caminhos, que resolveu seguir em suas encruzilhadas. O capoeira vive bem porque é amigo, porque é íntimo das encruzilhadas. Ele samba na encruzilhada. A capoeira ensina a viver e a tirar o melhor da vida. É isso que a capoeira (me) ensina.

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