O colonizador é meu pastor e doutrina não me faltará

Lisimba Dafari
6 min readAug 10, 2020

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O Brasil — através de seus aparatos (in)formativos –, quando o assunto é os séculos de escravização africana, tem por hábito resumir a violência desse período ao pelourinho e à chibata. Quando, no muito, somos lembrados da condição atroz dos tumbeiros e das senzalas. Um esforço tão bem calculado de minimizar os danos legitimados pelas instituições coloniais — hoje nacionais –, que muitos brasileiros acreditam que uma pena dourada, empunhada pela maior sinhá do país, foi o suficiente para remediar qualquer “eventual” malefício cometido até então. Uma consequência desse lapso se faz notável quando percebemos que tanto conservadores quanto “progressistas” nem piscam ao comparar quase quatro séculos de lágrimas, suor e sangue com a chegada de seus antepassados imigrantes — contratados para substituir a mão-de-obra negra que fora entregue a própria falta de sorte. Sem falar na galera que ignora que ser negro(a) vai muito além de tom de pele, traços físicos e carga genética.

Montagem própria

O que fica de fora dessa abordagem histórica, reduzida às cruéis relações de trabalho, é que a perversidade da escravidão começou muito antes disso. Bem antes, inclusive, do embarque nos insalubres porões das caravelas. Teve início nos discursos morais e legais que tornaram aceitáveis a condenação hereditária de povos não-europeus/pagãos ao trabalho forçado. Sendo assim, a perversidade passa não apenas pelo arrancar dos escravizados de sua raízes, sobretudo culturais e familiares, como também pelo seu batismo/renascimento na fé e nomenclaturas cristãs/ocidentais. O que inclui dizer: na generalização que simplificou haussás, benguelas, jejês, iorubás, bantus, nagôs e tantos outros povos em negros/”escravos”. Os que os narradores oficiais da história deixam de nos contar é que a violência simbólica foi tão constante e corrosiva quanto as torturas físicas que povoam o nosso imaginário sobre o período colonial.

“E o que que a esquerda tem a ver com isso?! Perguntará algum “progressista”/ antifascista/ antirracista/ “desconstruíde” de plantão. Ao que responderei: o interesse, compartilhado com os mais conservadores, em solapar o impacto simbólico-cultural que fundamentou todo esse processo de desumanização. Se, por uma lado, a direita se refugia na canetada da iaiá Isabel para redimir o passado negro do país; por outro, a esquerda sintetiza todas as desigualdades decorrentes disso, convenientemente, nos termos trabalhistas que lhes são de praxe. Isso porque o que sustenta a viabilidade de ambos os espectros políticos é a noção de que, fora da compreensão europeia das relações sociais, não há nada além de desnecessária “radicalidade”, quando não primitivismo ou mitificação de povos originários. Afinal, se ambos herdaram seus (dogmáticos) valores do berço da civilização ocidental(izada), não há porque nós, negros-amancebados, nos engraçarmos pras bandas de referenciais não-credenciados por seus saberes e práticas, pretensamente, “universais”. A nenhum desses dois projetos políticos interessa uma terceira via na disputa pelos cargos de poder e prestígio coloniais. Não só porque isso ameaçaria a “ordem” das coisas que seus antepassados naturalizaram por aqui, mas porque isso significaria abrir mão dos séculos de acúmulo intelectual que justificam a supremacia de seus ideais. Ou será preciso lembrar alguém que a explicação moderna/”científica” para a subjugação de não-brancos — que substituiu a moral/religiosa que nos desalmou — foi o refinamento evolutivo do cérebro dos europeus? #BrancoPraPensarPretoPraExecutar

Ao projeto colonial, sempre foi importante a sugestão de que, por mais cruel que o homem branco pudesse ser, seria somente através de mentes europeias, como a sua, que o mundo alcançaria o ápice da “civilização”. Assim, as soluções para qualquer questão social/humana estaria irremediavelmente atrelada a Europa. Aquela visão sobre veneno e remédio dependerem apenas da dosagem. Por isso os grilhões nos chegavam acompanhados da Bíblia, pois o inferno na Terra, ao qual eram submetidos nossos ancestrais, seria recompensado divinamente algum dia. Ou seja, mesmo durante o período mais descaradamente cruel da colonização, oferecia-se no mesmo pacote, a promessa de dias melhores possibilitados, unicamente, via o contato com o sistema senhorial. Tal como, hoje, a truculência da direita precisa ser contrabalanceada pelo sinhá-mocismo da esquerda a fim de manter vivo o mito de uma democracia racial cujos únicos dilemas só podem ser de ordem econômica/social.

A “diferença” entre esses dois pólos, entretanto, fica por conta de suas táticas de autopromoção . Enquanto um leiloa a promessa de exercer o poder visando a segurança e a prosperidade “universais”, o outro se fia no compromisso em promover a igualdade submetendo as diferenças a inclusivos “recortes”. Enquanto um não esconde de ninguém que recorrerá a força sempre que julgar me-re-ci-do, o outro se vale da crença de que “melhores” argumentos — sobretudo científicos — são as únicas ferramentas transformadoras o suficiente na luta contra o baixo astral das opressões. Enquanto um ostenta o saudosismo de um passado mais “simples”, o outro projeta sobre si a única alternativa legítima de um futuro sem o retrocesso e o autoritarismo de seu yang. Ou seja, ambos brotaram da mesma raiz, bebem das mesmas fontes, disputam os mesmos mecanismos, mas juram de pé juntim que darão frutos completamente diferentes porque a maneira de gerir e distribuir recursos tem focos “inconciliáveis”. Como se o que nos tornasse humanos fosse, unicamente, as nossas condições materiais. Como se ambos não se utilizassem da mesma, suposta, superioridade moral e intelectual que os saqueadores do “Novo Mundo” protocolaram para incumbir europeus da tutela do mundo. Como se ambos não dependessem da co-existência para passar a impressão de uma competição de ideais amplos delimitados pelo mesma origem colonial.

Caso ainda não tenha ficado suficientemente nítido o racismo que dá liga a essa disputa ideológica siamesa, principalmente para os mais devotos de uma de suas correntes, pergunto: qual a probabilidade de povos africanos e ameríndios terem conhecido o testemunho de Jeomarx ou a parábola do “livre” mercado se não fosse pela brutal colonização que nos obrigou a abandonar todos os sistemas de referenciais próprios? Ou vocês realmente estão compromissados a não enxergar nada que extrapole as definições “universais” batizadas na língua dos colonizadores? Caso sim, saiba que é, no mínimo, complicado isso de acreditar que as soluções para todas as questões do mundo estão disponíveis exclusivamente no arcabouço teórico da casa grande, viu?! Seria até um pouco trágico isso de refutar qualquer possibilidade de haver mais entre o céu e a Terra que a vã filosofia dos caras-pálida, se não fosse pelo maquiavelismo por trás disso tudo.

Sinceramente, quando me deparo com alguém mais doutrinado fico sem saber que tipo de postura-típica é pior: limitar a complexidade das experiências humanas aos escritos de um único continente; acreditar que o máximo que povos colonizados podemos galgar no mundo é uma posição de serventia e lealdade aos descendentes daqueles que barbaramente nos civilizaram/catequizaram; rotular como antirracista quem desqualifica todo protagonismo negro — africano ou ameríndio — que não bata cabeça pras suas categorias incolores/“universais”; se contentar com a opção menos pior por medo de praticar os custos da autodeterminação; chamar de massa manobra quem se guia pela vertente vizinha; ou ter fé na pós-modernidade de quem alega disposição para transformar a estrutura colonial sem abrir mão de nenhum de seus dispositivos, principalmente daqueles que garantem sua porção do pirão (há gerações). Vou deixar essa na conta dos pesquisadores-doutores em estudos de(s)coloniais que “rompem” com o estereótipo de primitividade se credenciando em instituições coloniais de produção do saber. #FéÉPraQuemTem

Como comecei dizendo, os efeitos colaterais dos ataques simbólicos do processo de colonização são tão, ou mais, perversos que a violência física. Uma vez introjetada a ordem colonial, o sujeito subalternizado não precisará ter seus passos restringidos por correntes ou grades. Basta cultivar a sementinha da escassez de alternativas para que os antolhos ajustem a plural realidade às concepções, frequentemente binaristas, da doutrina. Produzindo, assim, a sensação de escolha, culpa e/ou conquista. Basta que o repertório de perspectivas originais/autogestionadas seja podado para que o(a) convertido(a) busque, de bom grado, se adaptar a tudo que lhe for oferecido e defender a cultura do catequizador como a Palavra, a Verdade e a Vida. Ainda que o retorno seja abusivamente desproporcional ao dízimo sacrificado— seja em termos de capital eleitoral/ econômico/ intelectual/ braçal /e o que mais lhe for exigido. Pois o regozijo daqueles que creem virá das semelhanças logradas segundo os parâmetros do difusor de sua crença. Aquele ditado: quando a formação é colonizadora, o sonho do colonizado é ocupar os mesmos postos de poder e prestígio de iaiá e ioiô.

Ilustração: Joon Ahn

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