O olhar, as lentes e as escolhas.

Marcos Andrade
revistaokoto
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5 min readDec 29, 2021

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Se tem uma parada que tenho aprendido na casa e principalmente nessa responsa de falar sobre Negus Rei, é observar e reconhecer os homens pretos da minha família e seus papéis. De alguma forma, esses papéis acabam sendo processados pela lente pela qual eu observo o mundo e essas por sua vez, as lentes, são forjadas pela cultura a qual eu comungo na prática, independente das ideias que eu defenda. E ideias e práticas são encruzilhadas que a gente precisa tá muito atendo pra não cair nas armadilhas postas ao nosso povo.

Quem convive comigo sabe que atenção é algo pela qual eu preciso cuidar mais por que não é um bagulho da minha natureza não, ou pelo menos não vinha sendo e aquilo né, visão de mundo e proceder acabam por te dar um certo cacoete ou sequelas para o bem e para o mal, muito mais do que ser bom ou ruim, rsrsrs, tá ligado?

O papo é que tô aí numa reflexão e reaprendizado sobre como olhar os homens pretos que me cercaram a vida toda, isso depois de estar com os olhares todos voltados pra mim mesmo. Os olhos de fora e os meus mesmos. É um aprendizado e tanto, se a gente aprende a equilibrar, mas também catar os olhares que me são úteis e úteis à minha comunidade. Então sempre se trata de escolha. Um olhar é uma escolha que determinará todas as outras.

Olhar para esses caras tem sido uma importante fonte de reconhecimento de mim e dos outros. E isso me tem sido útil para saber bem quem sou, minhas habilidades e minhas dificuldades, o que é, absolutamente indispensável enquanto estratégia para fazer escolhas e saber com quem posso ou não contar e com o que contar para me organizar na vida, diante da comunidade e seguindo seu propósito.

Aliás comungar em comunidade é uma escolha né não fi?! Tipo, qual comunidade eu tô investindo energia de fazer acontecer, com quem divido meus planos, de quem e do que sou cumplicidade. Quais são as pessoas que mesmo no ranço ou nas diferenças individuais, eu me coloco a disposição pra meter as caras pra somar e pra tá junto em torno de uma coisa que é maior que cada um de noixxx individualmente, mas que só existe com o que cada um de noixxxxxxxxxx (reclama aí alguém, mas vem tranquilo kkkk) constrói de modo organizado na mesma pegada e direção?

Um bom exemplo e talvez o mais emblemático seja do meu avô materno, um homem preto que eu não conheci e fui formando a imagem a partir dos relatos e das lentes de mundo que não me eram as mais adequadas. Tomava ele como um ignorante, bruto e cujos feitos eram de pouca valia e/ou nada mais que sua obrigação.

Fui ensinado a ver assim, ao mesmo tempo que escolhi até então a vê-lo dessa maneira. Queria me ver de uma maneira diferente dessa imagem e tentava me distanciar dela usando essas lentes embaçadas por sujeiras de outra cultura que formam uma crosta que nos impede de ver o mundo a nosso modo, um modo africano.

E aí camaradinho que se você está no mundo com lentes que não lhe prestam a sua evolução e conexão com seu propósito, que não lhe serve a buscar sua defesa, da sua família e comunidade e ao passo, ao desenvolvimento da soberania e autonomia dela, você estará em prática contribuindo para a supremacia e defesa de uma cultura que não é a sua e aí por consequência estará em desacordo e desserviço, enfraquecendo a sua cultura e comunidade na prática.

A história do meu avô é um bom exemplo disso. Um homem preto que saiu da casa dos pais no sertão da Bahia aos 17 anos de idade, foi caminhoneiro, veio ao Rio de Janeiro e ganhou a vida sendo torneio mecânico.

Não tinha nada que ele não conseguisse construir e na casa de minha mãe e talvez de algumas irmãs tem utensílios que ele construiu a mais de 50 anos atrás. Ele tem 55 anos de falecido e essas coisas tipo espremedor de frutas pra fazer suco, escumadeira pinça, espremedor de alho estão funcionando ainda hoje mais do que muitos novos comprados em loja.

Ele também construía, concertava peças de avião e os colocava pra voar novamente depois de serem considerados sucata.

Ele também era autodidata e um palestrante ouvido por diversos intelectuais de tudo que é área pela espiritualidade que professava. Sabia esperanto (uma língua criada com a pretensão de ser universal, mas que já é morta se pá), ajudava os filhos que estavam na escola a aprender o que a escola não conseguia ensinar. Mais do que conhecimento escolástico e acadêmico, o que ele não tinha, ele tinha sabedoria e conhecimentos que adquiriu ao longo da vida de forma autônoma

Era rígido, mas ensinou todos seus 10 filhos a se virarem. Aí de alguém que entrassem em casa chorando porque não resolveu os BO na rua. Tomava uma coça. Se caguetasse o irmão dava ruim pro x9. E essa era a forma que ele tinha para ensinar os filhos a se cuidarem e a cuidar um do outro. E com todos os caôs que tem entre meus tios, tias e minha mãe, todos ou quase se ajudam e são muito presentes na vida um do outro.

Minha mãe sempre fala que meu avô ensinava que filha dele não trabalharia na casa de ninguém. Que ele não criou ninguém pra ser empregada de madame. E nem seus filhos homens seriam vagabundos, deitões e cheios de vícios. Um dia ele pegou meu tio com cigarro na boca e o fez fumar um charuto inteiro tragando, meu tio se sentindo mal e ele lançou: quer mais? fuma mais!

Ele fez sua passagem muito jovem ainda, mas deixou os objetos que fez, ensinamentos, exemplos e uma propriedade para sua mulher e filhos. Seu legado até hoje tem sio útil para os seus filhos, netos, bisnetos… um tanto de gente que ele nem conheceu e que como eu também não o conheceram, mas que continuará sendo passado adiante, geração após geração e que será útil a todos, independente das lentes e olhares que se lance sobre ele e a despeito de algumas que ele mesmo usava, ele foi além e deixou as bases para irmos além

Pegou a visão?

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