O poder da distração

Nicole Reis
revistaokoto
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3 min readJan 21, 2021

Educar uma criança não é fácil, ainda mais se for de um jeito engessado, sem a malemolência e a ludicidade.

Kwanza Ayo estava com a mania de não aceitar a palavra ‘não’. Ele batia, esperneava, fazia uma cena de teatro. Percebi que precisava tomar as rédeas da situação. Ele continua não aceitando “de boas”, mas agora eu canto para ele de forma engraçada “não pode bater, não pode bater”, ele começa a rir e a dançar. Foi uma forma de distrair ele. Desde que descobri o poder da música com ele, Kwanza tem ficado mais calmo e obedecendo mais aos comandos. E isso me fez pensar em como educar é desafiador e sobre o poder da distração.

É algo natural nosso, mas que quando somos crianças, é mais ativo, é a parada da ilusão, da mágica. A gente se distrai fácil, se diverte e tudo vira festa.

Ilustração: Izaias Oliveira

Quando a gente cresce também nos distraímos, as redes sociais estão aí para não me deixar mentir. A gente desbloqueia o celular para mandar uma mensagem e quando vê, já está curtindo uma foto. É a parada de perder o controle de fato. É bem parecido com a questão da criança, a diferença é que quando os pequenos querem algo de fato, eles vão tentar de novo e de novo. Então, quando Kwanza vai na tomada, eu tento distrair ele, passa um tempo, ele tenta ir na tomada de novo, a vontade continua e a ação vai juntinho. Eles não se cansam, é a parada de fazer até conseguir.

Malcolm X em sua biografia fala de muitas situações que usou a distração para se dar bem. Vou citar algumas: No livro ele conta sobre um branco bêbado que queria brigar com ele, ele falou que o cara estava com roupa demais, o cara foi tirando a roupa até os amigos terem que ajudar ele a fugir cheio de vergonha. E com isso evitou brigar com o cara. Teve o episódio de quando ele distraiu a polícia depois de um assalto, antes da polícia parar ele, ele já perguntou aos policiais onde era tal endereço. Assim, a polícia achou que ele não era um suspeito. Teve também quando ele foi fazer a inscrição para o alistamento militar, se fingiu de maluco justamente para não ser convocado.

A parada da distração é a pessoa que está sendo distraída não perceber, ser tudo natural, e ela ainda achar que está no comando da situação.

É só olha pra questão racial, a gente vai ficando burro velho e totalmente desconectado, aí cai em qualquer armadilha, a gente aceita qualquer migalha. “É preto na TV que vocês querem? Então, bora de representatividade, bora de gente preta no BBB”. E nisso a vontade de mudar o mundo vai se perdendo, a gente não tenta de novo e de novo. A gente senta e fica contente.

Isso me lembra muito a capoeira também. A brincadeira de fazer a chamada, dá um golpe quando o outro não está esperando. Você não sabe quando e como o capoeira vai dar um golpe, é tudo no lúdico, não é engessado. E isso é muito criança, é muito brincadeira. Porque capoeira também é sobre espiritualidade, sobre conexão e ação, assim como as crianças.

Cada dia compreendo o poder e a importância de se ter uma criança por perto. A gente pensa que temos que educá-las, mas o processo é muito mais bilateral que unilateral.

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