O que a continuidade da escravização tem a nos ensinar sobre o brasil e sua matriz político-cultural?

Akínwálé Òkòtó
revistaokoto
Published in
4 min readSep 23, 2022
Escravizados em serviço de colheita, resgatados em operação federal em Julho de 2022

Estava refletindo sobre as mais de 300 pessoas resgatadas em 22 estados brasileiros e no distrito federal, daquilo que, em termos jurídicos, denominam condições análogas à escravidão. Apenas nesse ano, somam-se mais de 1000 pessoas resgatadas dessas condições de um cativeiro permanentemente reinventado nessas bandas do Atlântico.

Na atualização de um regime que atravessa milênios, estão homens, mulheres, crianças e adolescente continuamente submetidos ao trabalho forçado, sem salário, sem o mínimo de condições de higiene, saúde e alimentação. Pessoas adoecidas, dormindo em meio a sujeira e ratos, entre outros bichos, sem água, sem comida, forçadas ao trabalho.

Senzalas reinventadas / registro do Ministério Público do Trabalho em operação de julho de 2022

As principais atividades registradas nessa operação remetem ao período da colonização desse continente: cultivo de café, colheitas em geral e criação de bovinos de corte. Foram também registrados, no mesmo regime de escravização, trabalho doméstico, como ainda trabalho em clínica de reabilitação. Isso mesmo: trabalho escravo em espaços de atenção e ‘acolhimento’ psicossocial, clínicas de reabilitação.

É um quadro que me fez pensar no que nos ensinam os mestres Cheikh Anta Diop e Joseph Ki-Zerbo, a partir de seus estudos históricos, especialmente quando afirmam que a escravidão e a escravização são fundamento cultural, (in)civilizacional, dos povos caucasianos, dos povos eurasiáticos (os de matriz abraâmica, cristãos, cristianizados e islâmicos, islamizados) e do ocidente.

À luz da história antiga e da história moderna, a escravidão se fez fundamento tanto na política quanto na economia desses grupos. Diop nos diz: “Da comparação entre a sociedade greco-romana, de um lado, e a sociedade egípcia antiga, de outro, é evidente que, apesar da sua longa história, o Egito não praticou sistemas de produção capitalistas, feudais (no sentido ocidental) ou escravistas.” A escravização não era um modo de produção em si, como foi para os romanos. No terreno da política, diz Diop, Kemet permaneceu uma monarquia onde o Habeas Corpus era um instrumento plenamente reconhecido e nenhum cidadão poderia ser feito escravo.

É preciso desconhecer a história da Áfrika para projetar essa figura do escravo, como um modo de produção ou como grau zero de humanidade para dentro da Áfrika pré-colonial. Essa instituição do ‘escravo’ são criações históricas greco-romanas, arabo-islâmicas e euro-cristãs. Ki-Zerbo nos ensina que a figura do “escravo”, ou cativo, na Áfrika pré-colonial nunca assumiu maior importância econômica nem política.

Nunca houve um modelo de produção escravista muito menos uma figura reduzida de humanidade por raça, cor ou etnia, ou feita objeto ou instrumento dos desejos de seus senhores e suas senhoras, como tipificado nos códigos negros dos árabes e dos cristãos.

Os cativos em Afrika eram, sim, desdobramentos de conflitos e guerras. Em muitos contextos, poderiam ingressar na sociedade estrangeira, com direito à propriedade e proteção jurídica e cidadania plena. No Reino de Kayor, por exemplo, nos ensina mestre Ki-Zerbo, esses “prisioneiros” contavam com representação no governo. Não se trata, aqui, de pintar de rosa a vida de um Afrikano ou estrangeiro cativo de guerra. Sem dúvida, estar em tal posição não era um mar de rosas. O ponto é sobre não existir caminho honesto para projetar pra trás, Afrika pré-colonial adentro, uma invenção histórica dos povos caucasianos (brancos e brancos-mestiços).

Já quando se olha para a antiguidade greco-romana, um modelo de produção de base escravista, muito cedo, se fez motor da economia. Os escravos, nesse período, eram majoritariamente outros povos brancos do norte e do nordeste da europa. O modelo de organização cultural, política, social e econômica tinha escravização como pilar. Esse modelo que seria reivindicado por europeus e eurasiáticos, como sabemos, viria a tomar um outro rumo, quando reduziram o Africano a um negro, e o negro a um escravo.

Pessoas escravizadas resgatadas em operação na Bahia em julho de 2022

A escravização é uma das marcas fundamentais dos povos eurasiáticos, do ocidente e o brasil é um núcleo duro do ocidente. Esse brasil que registra, ano após ano, um número cada vez maior de pessoas em regime análogo à escravidão é parte fundamental do que se conhece como europa. Culturalmente, o brasil é uma europa, muito embora o brasileiro — aquele que veio para essas terras construir uma europa e seus descedentes — lamente profundamente não ter os traços, o tipo e o jeito reconhecidos como europeus como tem uma argentina, por exemplo. Pois um europeu ocidental que desembarca na capital argentina, facilmente, se reconhece em casa. Ali, em buenos aires ele se reconhece em uma europa d’além-mar. Dificilmente, esse europeu ocidental terá o mesmo sentimento ao chegar a qualquer capital brasileira, para tristeza dos brasileiros, os legítimos.

É porque ao brasil foi reservado o lugar de quarto de despejo da europa — aquele tipo de porão onde se esconde muito daquilo que é baixo, imundo, indigno, mais ainda assim essencial para o bom andamento das casas grandes daqui e de lá. É um quarto de despejo percebido como tão essencial, aos euramericanos, quanto é por eles mesmos desprezado. É o espelho deles. Nesse espelho, vêem seu passado refletido no presente, de forma permanente.

Arte: Diego Alberto

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