O Que Há por Trás da Bandeira?

Sobre nosso evento “Menos Marx, Mais Garvey: O Novo Negro Não Tem Medo!” do Kilûmbu Òkòtó.

Dessalín Òkòtó
revistaokoto
7 min readAug 17, 2021

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O 17 DE AGOSTO.

O Mês de Agosto é marcado por uma série de datas e eventos importantes para os povos negros do mundo. Temos as declarações de independência do Benin, Jamaica, Níger, Costa do Marfim, Congo e Gabão; no dia treze foi declarada a Declaração dos Direitos dos Povos Negros do Mundo, no dia quatorze se deu início o ritual de Bwá Cayiman onde se deu início à incomparável Revolução do Haiti. Mas com todo o devido respeito e reverência à todos os outros marcos históricos, nenhum me parece mais importante para nós que o dia dezessete, quando nasce Marcus Morsiah Garvey e é apresentada a bandeira panafricanista vermelha-preta-verda (red-black-green, por isso RBG).

O dia 17 de agosto deve ser uma data cívica para toda pessoa negra que se engaje na luta pela emancipação do nosso povo. E, como o Kilûmbu Òkòtó busca sempre botar na prática o que entendeu na teoria, pelo segundo ano consecutivo, apesar dos pesares, não deixamos de celebrar esta data.

Mas por que uma data de nascimento e bandeira seria tão importante?

“Mostre-me a raça ou nação sem uma bandeira, e eu lhe mostrarei uma raça de pessoas sem qualquer orgulho.” (Honorável Marcus Garvey).

Arte: Izaias Oliveira

Toda bandeira simboliza uma história, uma cultura, um propósito. Um povo sem um símbolo que lhe diga qual sua origem e destino está fadado a vagar a ermo sob as determinações de outros povos. Quando Marcus Garvey criou a bandeira RBG e a instituiu como a bandeira do povo negro, ele não apenas criou um símbolo, mas uma filosofia de nação. Pois o vermelho é nossa história de glórias, resistências e revoluções; o preto é a cultura do povo mais antigo sobre a face da terra e aquele que desenvolveu as melhores práticas de vida entre si, com os outros e a natureza; e o verde mira nosso propósito em reerguer nossas nações, civilizações e prosperidades pelos nossos próprios meios, esforços e termos.

A bandeira RBG não foi um ato isolado, mas um entre tantos atos de reconstrução da autodeterminação africana. O ano era 1920, a África estava de joelhos para os impérios coloniais europeus e a UNIA reuniu milhares de representantes dos quatro cantos do mundo no Liberty Hall, em Nova York e realizou uma convenção onde foi proclamado o Governo Provisório da África sob a Presidência Provisória do Honorável Marcus Garvey, legitimada pelos princípios da Declaração dos Direitos do Povo Negro do Mundo, tendo como símbolos nacionais a bandeira panafricanista e o hino nacional da Etiópia, assim como o dia 31 de agosto como feriado internacional.

Celebrar a bandeira RBG, então, não é apenas cultuar um símbolo. Muito além, trata-se de se comprometer com uma agenda que passa por cada um de nós, mas não se resume a nenhum de nós. Trata-se de se comprometer em dar nosso sangue para que a cor da nossa pele seja um fator de vida, liberdade e felicidade. Se não estivermos dispostos a isso, estamos mortos!

o 17AGO20

Apesar das condições desfavoráveis para se realizar um ato público na rua, o Òkòtó organizou o seu primeiro ato de celebração do 17 de agosto em dezenas de cidades ao redor do Brasil. Nós confeccionamos bandeiras RBGs, fizemos uma série de lives, textos e promovemos várias discussões para que o conhecimento dela fosse massificado, assim como envidamos todos os nossos esforços para que cada bandeira encomendada chegasse ao seu local de destino antes do grande dia para que todos pudessem flamular a gloriosa que, ano passado, fazia cem anos!

O ato consistiu em uma marcha por lugares significativos para a história negra no Brasil e atravessada por discursos cantigas e intervenções que exaltaram a autonomia do povo negro como único meio de voltarmos a ser livres e prósperos. Se não for por todos os meios possíveis, se não for por nossos próprios meios possíveis, não vai ser!

O panafricanismo e a filosofia do nacionalismo negro não eram coisas inéditas no Brasil. Já desde meados do século passado há militantes, grupos e coletivos panafricanistas pelo país. Entretanto, em sua extensa maioria, ficaram presos a redutos acadêmicos ou ranços partidários, sem conexão com a comunidade e capilaridade entre a população negra do país. O Kilûmbu Òkòtó não se diz uma organização panafricanista, como fazemos questão de ressaltar. Negamos essa peja, seja para não nos confundirmos com teóricos de autonomia que vivem de dependência, seja para mantermos nossa coerência frente às teorias e ideologias. O Kilûmbu Òkòtó não é panafricanista pois não compreendemos o panafricanismo como um princípio de compreensão a partir da nossa condição negra nesse mundo, mas não é um sistema fechado inquestionável ou engessado. O princípio do Òkòtó é a espiritualidade, e tudo aquilo que estiver de acordo com ela será aproveitado. Aquilo que a contradiga, será vomitado, seja o que e de onde venha.

Por essas razões, o ATO 17AGO20 foi um marco para isto que chamamos de militância negra no Brasil pois foi o primeiro movimento de massa realizado sem a dependência de partidos, empresas ou órgãos públicos. Nós promovemos nossas próprios instrumentos de realização, nossos próprios símbolos de celebração, nossa própria mídia e narrativa sobre o significado do que estávamos fazendo. Quem quer que queira tecer qualquer comentário sobre nosso ato terá, antes, que passar pelo nosso entendimento.

E este ano tem mais!

ATO 17AGO21

A cada nova geração, novas formas de cooptação, apropriação e deturpação da nossa história, dos nossos heróis e dos nossos propósitos são promovidas por brancos oportunistas e mucamos auto-proclamados militantes. Entre todas as máquinas brancas de apropriação da história, cultura e espiritualidade alheia, nenhuma tem sido mais eficaz que a esquerda. A esquerda sequestrou a pauta racial quando a ditou como social; sequestrou nossos líderes da independência africana quando os declarou marxistas; sequestrou nossa cultura quando declara o samba de esquerda e negras lavadeiras como feministas; sequestrou nossa espiritualidade com toda forma de sincretismo e cristianização das nossas divindades e cultos. Junto à Academia e o Feminismo, a esquerda é a maior máquina de genocídio à nível simbólico do povo negro.

Diante desse cenário, o Kilûmbu Òkòtó traz o “Menos Marx, Mais Garvey” como título para chamar a atenção para o menos eles, mais nós; menos por eles, mais por nós; menos através deles, mais através de nós. Pois é um tolo ou capitão-do-mato o negro que acha a esquerda “menos racista” que a direita, quando seu racismo velado é muito mais danoso que a o explícito. Pois é um tolo quem tirou Cristo do altar e o substituiu por um busto de Marx. Pois é um tolo que abriu mão de sua espiritualidade para abraçar o materialismo alheio, abriu mão da sua cultura para virar subproduto da cultura alheia. “Marx é o ópio do bobo!”

E se engana que acha que a esquerda nos é maléfica só como teoria. Na prática, a teoria fica pior ainda! Pois basta observar que enquanto as esquerda se orgulhava de aumentar em quatro vezes a quantidade de negros nas universidades públicas graças às políticas de cotas, ela escondeu que ela foi responsável por aumentar em quatro vezes o número de negros assassinados e oito vezes a quantidade de negros encarcerados: o custo de quatro negros universiotários foram outros seis mortos e oito enjaulados. Grande avanço!

Além disso, nesses mesmos governos de esquerda que operações como a Minustah no Haiti lideradas pelo governo brasileiro cuja experiência serviu nas ocupações das favelas do Rio de Janeiro para a Copa e Olimpíadas fizeram com que uma nova tecnologia de massacre fosse desenvolvida: o massacre deixou de ser monopólio da polícia e passou a ser compartilhada com as forças armadas. E isso só prova que nunca foi sobre vivermos em um período de colônia ou independência, monarquia ou república, democracia ou ditatudra, esquerda ou direita, o povo negro sempre esteve sob abate no Brasil.

O NOVO NEGRO NÃO TEM MEDO

Sendo assim, “Menos Marx, Mais Garvey” é acima de tudo uma ruptura com qualquer militância integracionista aos sistema político-partidário, estatal, corporativo ou midiático branco. “Menos Marx, Mais Garvey” é uma flecha que atiramos no horizonte de nosso reerguimento enquanto povo de maneira organizada, engajada e debochada. Pois fora do deboche, não há salvação!

Este ano voltaremos ao pixtãum em várias cidades. Quem ainda não tá ligado, só catar o evento e brotar. Se não estiver por perto de um dos locais da marcha, sem viagem perdida. Cola nas nossas redes e acompanhe de qualquer lugar. Aproveita e escoe a informação, assim outros negros e negras do mundo possam celebrar conosco este grande dia!

“Queimá, queimô

Pode botá fogo

Que o rei mandô!”

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Dessalín Òkòtó
revistaokoto

Querendo ser educador para melhorar minha comunidade, sentei para aprender e agora levanto para também ensinar.