O racismo como anti-òkòtó

Kandimba Onirê Kumola Yakô Òkòtó
revistaokoto
Published in
5 min readJan 5, 2021
imagem retirada da internet

A figura da espiral ou do caracol representa a expansão, e é vista em alguns itãs como a forma original de Exu. Toda a espiritualidade africana se baseia no movimento de espiral como o movimento da vida. É interessante perceber como as estrelas, os planetas, os raios solares e buracos negros, as correntes marítimas e correntes de ar, quase tudo na natureza se organiza pelo movimento espiral. A espiral significa a expansão. Diferente do círculo fechado, onde o ciclo sempre passará pelos mesmos lugares, a espiral leva o mesmo elemento a passar por lugares diferentes, cada vez mais distante do centro, criando a expansão. Dentro do espiral, você nunca voltará exatamente ao mesmo lugar, mesmo que passe perto dos lugares que já passou. A expansão não permite a repetição.

Pensando nesse princípio tão antigo da espiritualidade africana, dá pra entender o racismo como a anulação dessa expansão que é tão básica para a história do povo preto. As primeiras e mais importantes descobertas das grandes civilizações africanas se baseavam no princípio espiritual da expansão, no propósito consciente de buscar se manter em movimento, nunca se contentar com o que já possui para não ser surpreendido. Quem está em movimento, está sempre preparado para o novo. Quem está em expansão, está procurando a mudança e o aperfeiçoamento.

O que se percebe da colonização europeia do mundo foi um ataque direto ao princípio de expansão que sempre foi a base do desenvolvimento do povo preto. Quando se retira o propósito da expansão da nossa organização enquanto povo, todos os limites que o branco criar para nosso povo serão limites de fato. Quando se retira a expansão, a espiral vira um círculo, e ficamos rodando nos mesmos lugares determinados por quem desenhou o círculo. Com certeza, não é um círculo que vai passar por lugares que vão levar à nossa emancipação. Sem a expansão, perdemos nosso propósito enquanto povo, e ficamos obrigados a seguir o propósito de outras pessoas.

Essa trava tem muitos efeitos práticos na nossa cabeça. A primeira é a necessidade de agradar ao outro. O povo preto tem muita dificuldade de fazer o que é preciso ser feito, independente de quem vá magoar. A carência do povo branco, violento e sempre em guerra consigo mesmo, se materializa na destruição da independência dos outros povos e culturas. Eles precisam do mundo seguindo suas regras e obedecendo seus desejos. A carência que o branco tem se tornou um modo de nos impedir de progredir. Pessoas carentes se colocam em situações de auto-destruição só pra poder receber tapinhas nas costas. E pessoas carentes também evitam sair do lugar para não perder os tapinhas nas costas que já recebem. Gente carente não constrói autonomia. Gente carente fica com pena de atacar as ideologias brancas e negrescas do dia a dia e ainda vão reclamar de quem tentar avisar do vacilo. Gente carente fala o que o outro quer ouvir, e assim deixa de existir. Boneco ventríloquo.

Nessa posição de objeto dentro do sistema do mundo branco, o racismo pode ser entendido como uma clara tentativa de frear especificamente o princípio da expansão do povo preto. Todos os ataques sofridos por todas as pessoas que falam das contradições da colonização e dos negrescos desde que o branco saiu do seu continente gelado apenas confirmam isso. Pretos que lutam por autonomia e que não aceitam qualquer tratamento displicente e embranquecido sempre serão chatos antes de se tornarem criminosos e terroristas por ameaçarem a ideologia branca. O movimento de Garvey é um exemplo nítido da organização do racismo como o anti-òkòtó. Os pretos não estão proibidos de existirem, estão proibidos de existirem nos seus próprios termos. Estão proibidos de existirem sem serem “Maria vai com as outras”. A autonomia e a expansão do povo preto são o único motivo para a existência do racismo. É um ataque à nossa grandeza, para que sejamos tão podres quanto o povo invejoso e limitado que nos escravizou.

Quantos espaços você conhece que trabalham a expansão do povo preto sem seguir as regras dos brancos? Quantos espaços você conhece onde as pessoas pretas podem manifestar sua grandeza original e espiritual sem serem considerados chatos, arrogantes, e principalmente criminosos? Pense na represália que existe até hoje ao Haiti e à Etiópia, nações em que os pretos recusaram a se deixar entregar para o sistema branco, se recusaram a abandonar a expansão. Pense no movimento “Garvey must go”, e os negrescos que se incomodavam tanto com o discurso de autonomia que ele propunha. É por isso que precisamos de movimentos como o Kilûmbu Òkòtó. Espaços de desenvolvimento de autonomia preta, sem se render a politicagem e a carência que os brancos não vivem sem. Gente carente não constrói autonomia.

Responsabilidade e compromisso só existem se houver propósito. Ao mesmo tempo, só existe propósito se houver responsabilidade e compromisso. Eles dependem uns dos outros para existirem. Por isso precisamos de pretos que estão dispostos a perder amizades, cargos, esmolas e falsos afetos pela ideologia do povo preto. Se a primeira idiotice branca que jogam na sua frente já te deixa emocionado, você nunca vai sair do cercadinho que o povo branco criou para nosso povo. Você nunca vai deixar de ser gado esperando abate. Se você não sabe pra onde ir nem tem compromisso com esse caminho, você está apenas mentindo para si mesmo que é livre. Como já disse Malcolm X, “o preço da liberdade é a morte.”

Quantos pretos estão dispostos a morrer pela ideologia que arrotam? Quantos pretos deixam morrer nossa cultura e nossa ideologia por qualquer trocado e qualquer esmola afetiva? Quantos de nós estão dispostos a matar relacionamentos e escolhas ruins pra manter viva nossa espiritualidade de expansão? Se o mundo branco está tramando nossa morte, a única coisa digna a fazer é escolher pelo que você vai morrer, e principalmente o que você vai matar pra adiar a própria morte. Você mata pra se manter em expansão ou você mata pra se manter andando em círculos? Você mata pra arrumar soluções ou você mata para arrumar problemas? Você morre pra buscar autonomia ou você morre pra imitar branco egoísta? Tua vida tá servindo de escudo pra quais ideologias na prática?

Não é a toa que o cristianismo colocou Exu como se fosse o diabo cristão. Reciprocidade e expansão aterrorizam o povo branco. Quem assume a própria espiritualidade fez um pacto de viver no inferno mesmo. Quem ta disposto a morrer pra manter viva a nossa espiritualidade africana, já se colocou em guerra contra o sistema branco, e todos seus tentáculos, que muitas vezes estão escondidos no meio dos negrescos carentes, individualistas e invejosos. Nessa encruzilhada, o caminho bom para nosso povo não é o caminho mais prazeroso e mais cheio de afetos temporários. Precisamos ter compromisso com nosso propósito para alcançar nossos objetivos.

Laroyê.

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