O Rio Haiti

O Rio da Revolução Haitiana jamais cessou seu curso. Nós que, às vezes, esquecemos de mergulhar nele.

Dessalín Òkòtó
revistaokoto
5 min readJan 19, 2021

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Ilustração: Izaias Oliveira

A revolução é um rio caudaloso formado por muitos afluentes. E assim como um rio, uma revolução jamais termina quando chega à sua foz. Pois as águas doces que encontram o mar, mais cedo ou mais tarde, voltarão às suas nascentes levadas pelas chuvas para, em um novo desenho, junto de outras águas, saciar a sede de populações e ser berço de novos peixes em seu estuário.

A Revolução do Haiti é o Nilo da Diáspora. E suas águas jamais encontraram termo na foz do dia 01 de janeiro de 1804, quando foi declarada a independência do Haiti sob o comando de Jean Jacques Dessalines. Elas continuam a rolar e descer e seguir seu curso pelos mangues, cidades, favelas e florestas mundo afora. E assim continuarão até que o último Africano conquiste a sua plena humanidade. Não há recuo para a liberdade a não ser a morte.

Makandal pode ser considerado o primeiro grande precursor da Revolução do Haiti por ter arado o terreno das lutas que viriam com seus conhecimentos das ervas. Antes do Haiti, Makandal já tinha se metido em uma revolta escrava na ilha da Jamaica, uma colônia inglesa à época. Revolta controlada e líderes detidos ou mortos, Makandal foi revendido para a colônia açucareira do Haiti. Lá continuou seu trabalho: ensinou os saberes das ervas e, cada haitiano que conheceu Makandal, aprendeu a envenenar seus senhores e curar os cativos adoecidos. Graças a Makandal, os Senhores de Escravos haitianos conheceram a primeira grande revolta escrava na ilha com um envenenamento em massa que os africanos da casa realizaram. Quem manda na cozinha tem poder sobre o estômago da casa. Quem não usa esse poder, desperdiça uma grande oportunidade.

Foto de autoria desconhecida da estátua “Le Marron Inconnu” de Albert Mangonès

Daí adiante, os fatos se desenrolam em episódios épicos e dramáticos que vão desde a noite de Boïs Cayman até a Batalha de Vertiéres, onde os haitianos definitivamente venceram os franceses e fundaram a Primeira República Negra do mundo, para o medo e terror dos brancos.

O que eu quero catar aqui são alguns meandros pós-revolução que tornam o Haiti quase que uma cosmogonia do Africano da Diáspora. Com todo o respeito às incontáveis lutas de resistência, rebeldia e tentativas revolucionárias que aconteceram nas três Américas, nenhuma delas conseguiu ser tão bem sucedida quanto a Haitiana.

Percebam que da Jamaica saiu Makandal que deu as condições para a revolução haitiana. Revolução essa que começou com Makandal e culmina em Dessalines. Da Jamaica também saiu Marcus Garvey, menos de cem anos depois para construir aquela que seria a maior empreitada política, econômica e cultural da Diáspora Africana pós-escravidão. E Garvey era um herdeiro direto da Revolução Haitiana. Tanto que seu traje presidencial é diretamente inspirado nos trajes imperiais de Jean Jacques Dessalines I.

Marcus Garvey. Foto de ames Van Der Zee colorizada por Luiz Henrique Evaristo (instagram)

Embora Garvey tivesse sido perseguido e exilado, o seu legado não foi aniquilado. Assim como a Revolução Haitiana jamais cessou com os sucessivos assassinatos das lideranças revolucionárias, a conquista da liberdade africana na diáspora jamais cedeu aos vários baques e interrupções que nossa luta pela liberdade tiveram. Entre os empreendimentos de Garvey, a Black Star Lines foi sua principal empreitada na realização do retorno dos africanos à África e construção do Nacionalismo Negro para além de mera filosofia. A Black Star Lines não vingou com tanto boicote e ingerências, nem por isso ela deixou de cumprir seu propósito e fazer com que regressássemos à África e continuássemos no Continente a revolução iniciada na Diáspora.

Kwame Nkrumah sempre dizia que nenhum dos inumeráveis livros que ele leu o impactou tão profundamente e o fez se reorientar para a sua africanidade quanto o “Filosofias e Opiniões” de Marcus Garvey. Gana teve sua independência liderada por Nkrumah, cuja orientação política e estratégica seguia os passos de Marcus Garvey. Tanto que Gana foi a primeira nação independente da África Negra e sua descolonização deu início à derrocada das metrópoles europeias. Num duro e sangrento processo que levou mais de trinta anos para se consolidar, a África se via oficialmente independente da Europa e com o ambicioso projeto de instaurar a União Africana. A Black Star Lines de Garvey impressa na bandeira ganense passou a orientar a descolonização do continente. E até hoje Gana é a nação africana ponta de lança pela integração continental.

O que vemos com isso é que a Revolução pela Liberdade e soerguimento dos Africanos, assim como um rio, tem suas cheias e estios. Mas o rio caudaloso da revolução negra jamais cessou de seguir seu curso, ainda que por margens difíceis, com quedas d’água e paisagens hostis no caminho.

O que nos resta como questão é qual será nossa contribuição para que esse Rio siga seu curso até banhar toda a comunidade africana do mundo? Qual nossas contribuições para que esse rio tenha cada vez menos sangue e cada vez menos húmus? Qual nossa contribuição para que às suas margens nós voltemos a erguer civilizações e não cemitérios? Qual nossa contribuição para que o curso do rio africano iniciado no Caribe, maturado pela Diáspora Norte-Americana, posto à prova com sucesso no Continente Africano ganhe uma nova vida na Diáspora Africana no Brasil e nós, confinados na América do Sul, assumamos nosso potencial revolucionário de uma vez por todas?

O Rio da Revolução Haitiana jamais cessou seu curso. Nós que às vezes esquecemos de mergulhar nele.

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Dessalín Òkòtó
revistaokoto

Querendo ser educador para melhorar minha comunidade, sentei para aprender e agora levanto para também ensinar.