Onde está o seu agora?

Akínwálé Òkòtó
revistaokoto
Published in
5 min readJun 7, 2022

Entre os muitos sequestros que interromperam o curso da história Afrikana, um que é fundamental é o da noção própria de tempo.

Joseph Ki-Zerbo

A imposição violenta da imagem do tempo-dinheiro e a consequente destruição das organizações culturais, econômicas, espirituais e políticos que sustentam o tempo Afrikano condicionou o sequestro da nossa condição de agente histórico. Agente histórico é uma pessoa própria de seu tempo, consciente de seu tempo, capaz de responder nele e a ele. Não tem tempo bom ou tempo ruim, e já ouvimos isso diversas vezes.

Do sequestro do tempo Afrikano segue que muitos de nós permanecemos hoje perdidos no tempo, incapazes hoje de responder ao massacre permanente. Nessa conta entra a persistente confusão entre dinheiro e poder. Entra aí também a confusão entre o que é repetição de humilhações e traumas já vistos e o que são, de fato, caminhos e frequências de cura. Está tudo fora de tempo.

Foi debaixo do símbolo do dinheiro, esse signo — ou o próprio deus deles — motor de uma história pintada de universal e incolor, que os agentes, as agências, as cúmplices e as marionetes da dominação racial branc’a buscaram muito mal encobrir os rastros de ruína e os rios de sangue deixados por uma história que, concretamente, é história de terror racial de escala planetária.

Nesse quadro, nossa condição de agentes demanda de nós mais esse resgate: o regaste do tempo Afrikano. E por resgate, aqui, entendemos uma apropriação consciente e ampla do seu valor e do seu significado profundo, prático e comunitário.

Boubou Hama

É nesse espírito que os Mestres Boubou Hama e Joseph Ki-Zerbo oferecem duas imagens, como duas cartas indissociáveis, que eles jogam para descartar as imagens racistas com as quais buscaram nos varrer para fora do curso da história humana e, assim, nos fixar em um tempo mítico, estático, primitivo. Um tempo de morte. Numa face, temos com a imagem de um tempo mítico, na outra, a do tempo social.

Já embaralhando as cartas e bagunçando as cabeças mais cartesianas, embranquecidas, eles nos ensinam que o tempo mítico incorpora tanto o elemento de intemporalidade que marca os mitos, em geral, quanto a dimensão social. Na contramão da linearidade do ‘progresso’ e do ‘desenvolvimento’ de berço cultural branc’o, com seus mitos fundadores, eles nos lembram: “tempo não é a duração capaz de dar ritmo a um destino individual; é o ritmo respiratório da coletividade. Não se trata de um rio que corre num sentido único a partir de uma fonte conhecida até uma foz conhecida.”

Extrapolando a visão simplória dos esquemas cristãos e cristianizados (afinal a história de todos os povos se deita sobre as esteiras de histórias míticas — está aí a era cristã organizando o tempo do ocidente), eles explicam: “em geral o tempo africano tradicional engloba e integra a eternidade em todos os sentidos. As gerações passadas não estão perdidas para o tempo presente. À sua maneira, elas permanecem sempre contemporâneas e tão influentes, se não mais, quanto o eram durante a época em que viviam. Assim sendo, a causalidade atua em todas as direções: o passado sobre o presente e o presente sobre o futuro, não apenas pela interpretação dos fatos e pelo peso dos acontecimentos passados, mas por uma irrupção direta que pode se exercer em todos os sentidos.”

Concretamente falando, os exemplos vão das consultas ao oráculo, das interpretações de sonhos, ao culto aos ancestrais e às várias formas de cuidado e atenção consagrados aos ancestrais por meio de ações realizadas no dia a dia da coletividade. Há em tudo isso um fluxo e um refluxo entre passado, presente e futuro. É comunicação, é corrente, são linhas de continuidade que seguem em múltiplas direções, refazendo e influindo no nosso tempo, contemporaneamente.

Em muitos reinos e sociedades Afrikanos, o soberano ou a soberana tornavam-se depositários mortais de um poder imortal e coletivo sobre o tempo. Encarnando heróis fundadores e fazendo-se sustentáculo do tempo da coletividade — um tempo que expressa a vitalidade da comunidade — a soberania das lideranças Afrikanas se vinculava às dimensões mítica e sociais do tempo. Tanto é assim que os momentos de mudança de regente, Rei ou Rainha ou ainda de lideranças políticas e espirituais, se tornam momentos de suspensão do tempo. É como se o tempo parasse, e ele para.

Distantes de noções de tempo de dimensão única e de uma visão curta, mesquinha de individualidade, os mestres nos relembram que “na tradição, o tempo perceptível pelos sentidos não passa de um aspecto de um outro tempo vivido por outras dimensões da pessoa”. Nosso duplo corre mundos nas horas do nosso sono. É esse um corre-mundo fundamental para manter os passos firmes nas horas de atividade e da vigília, de olhos abertos. Entre Àiyé e Ọ̀run, não faltam trabalhos e corres para fazer, mesmo no tempo de uma vida.

Como nos falam os mestres, “o tempo é o lugar onde o homem pode, sem cessar, lutar pelo desenvolvimento de sua energia vital. O tempo é o campo fechado e o mercado, no qual se confrontam e negociam as forças que habitam o mundo.” É isso, eles nos dizem, sobre “defender‑se contra qualquer diminuição de seu ser, desenvolver a saúde, a forma física, a extensão de seus campos, a grandeza de seus rebanhos, o número de filhos, de mulheres, de aldeias, este é o ideal dos indivíduos e das coletividades.” O desenvolvimento dessa energia vital individual e coletiva compreende tanto uma dimensão social quanto sua dimensão mítica, onde passado, futuro e presente se sentam à mesma mesa de negociação, de forma constante e dinâmica.

Afinal, assim nos ensinou nossa grandiosa ancestral Ìyá Stella de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì, “o tempo é como uma família de três irmãos: passado, presente e futuro”. Em família eles convivem, se comunicam, negociam, cobram-se uns aos outros, de forma a poder nos orientar no nosso tempo, que é agora. Resgatar, vivenciar nossa noção própria de tempo exige esse retorno à casa, à família, à terra Afrikanas. Agora.

Ìyá Ọdẹ Káyọ̀dé

(Re)fazer-se agente da sua história demanda centrar-se em um tempo próprio, íntimo e comunitário. Para tanto, é preciso, em comunidade, aprender como pisar sobre a terra, aprender a cuidar da terra, essa Grande Mãe Preta que é para nós a terra. Conhecê-la é conhecer a si mesmo, seu tempo próprio, o tempo do seu propósito e os tempos do seu povo. Pois, a terra, assim nos ensinou nossa Sábia, nossa Grandiosa Ìyá ancestral, “a terra é uma energia poderosa, é sintetizadora de quem fomos, somos e seremos.” E, então, pra quando Afrika?

Referências:

Boubou Hama e Joseph Ki-Zerbo. Lugar da História na Sociedade Africana. História Geral da África, Vol. 1.

Ìyá Ọdẹ Káyọ̀dé em Documentário Mãe Stella de Oxossi.

--

--