Para Participar, Antes Saiba o Seu Lugar

Táíwò Òkòtó
6 min readFeb 15, 2018

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A escala que a apropriação cultural tomou em algumas manifestações negras é uma coisa revoltante. Mas quando abusam da falta de noção e começam a chamar espaços de capoeira quase que inteiramente brancos de quilombo, aí a coisa fica bem pior. Sério isso?! Real?! Sei lá, talvez achem pouco se apropriar da capoeira e querem também se apropriar do discurso de resistência, da ideia de quilombo. Por isso, não me surpreenderia se, em breve, como fazem em relação à própria capoeira, surgissem com a onda de que o quilombo não era de fato um espaço de resistência negra, mas, sim, um espaço de resistência multiétnica. “Ah porque a história diz que havia índios e brancos nos quilombos também”. “Tá bom, Cláudia. Senta lá”. Deixa passar essa brisa e volta pra gente conversar.

Eu não duvido que essa história de brancos nos quilombos seja invenção de brancos ou invenção para se fazer uma média com brancos. Temos sempre que ficar com um pé atrás com essa historiografia oficial que é uma ode à branquitude. Mas, ainda que consideremos verdade, pera lá né… Como na capoeira, a presença de brancos nos seus primórdios seria exceção da exceção da exceção. Ah, outra coisa: também temos que tomar cuidado com o tempo que eles pegam para relatar a presença do branco e tomam por primórdio. De qualquer forma, se tivesse e o que tivesse de branco, certamente, era não mais que exceção mesmo. Só que esse povo não perde essa mania de a gente vir com um livro inteiro, eles contribuírem com uma vírgula, para depois reclamar parceria na obra. Pára que tá feio! A capoeira é negra! Pronto! Ponto! Como eram os quilombos. Não existe quilombo branco. E capoeira branca — espaços brancos de capoeira — já deveria ser motivo suficiente para nos perguntarmos se isso se trata mesmo de capoeira.

É muito louco pensar uma resistência negra por meio de brancos. É muito estranho. Primeiro, porque carece de precedentes. Segundo, porque, sem as muitas devidas ressalvas, soa algo muito sem sentido. Sério que vocês não desconfiam de uma resistência negra de protagonismo branco? Sério que não entenderam que na questão racial — e os precedentes são inequívocos — brancos não são resistência, mas, sim, os motivos dessa nossa necessidade de resistir?

É melhor parar com essa síndrome do salvador branco por aqui. Porque, daqui a pouco, vocês me surgem com uns baratinos tipo aquele de enfiar o Keanu Reeves na história dos 47 ronins, ou a do Matt Damon liderando a defesa da muralha da China. Já pensarem se, assim como o Tom Cruise brotou no papel do Último Samurai, o Gagliasso nos surge como o Último Quilombola? Na moral, não vai dar pra ver um branco liderando a resistência de um quilombo, não. É um absurdo isso. E a desgraça da gente é que cometer absurdos na questão racial, para brancos, é como beber água. Brotar como “o salvador da nação” na história alheia lhes é a coisa mais normal do mundo. Uma patologia que tem até uma expressão própria: síndrome do white savior, ou síndrome de princesa isabel por aqui. Uma exemplar encarnação desse “arquétipo branco” nos é dada por Daenerys Targaryen de Game of Thrones, a white savior mor da atualidade.

Brancos amam a narrativa que os coloca como a salvação. É uma masturbação intelectual da porra, pra eles, ocupar o lugar de resistência, de desconstruidão mil maravilhas que vai enfrentar os seus pelos outros por empatia. Eles usam essa narrativa fantasiosa para se aliviar em relação a seus precedentes reais. Eles têm uma obsessão por se mostrarem bons. Tanto que passam por cima de coisas básicas. Por favor, parem com isso! O que é uma pessoa branca vestindo aquela camisa “a casa grande surta quando a senzala aprende a ler”?! Dá nervoso! Dá asco! Porque além da síndrome do salvador, vem com o arquétipo de sempre “espelhar”, rebater, as críticas racistas para outro. Aí as críticas ficam, como numa sala de espelhos, num tremendo bate e rebate e, no fim, não ficam com ninguém. Fazem de algo que é direto, uma coisa indireta e às vezes abusam de transformar a coisa em algo puramente metafórico. Para dizer a real, eu fico muito na dúvida se isso se deve mais à carência no processo cognitivo ou ao cinismo. Me vem à memória uma letra do Criolo em que diz “e se a maconha for da boa que se foda a ideologia”, que é uma puta crítica que a galera nos shows entoa altão com a maldita da maconha bem ali na mão. Isso é muito louco! Eles fazem parecer aquela tirada do sonso, na qual, quando alguém te aponta por algo, você imediatamente olha para trás ou para o lado para fazer de conta que não é contigo.

É importante perceber como tudo isso de forçar a imagem de um branco salvador, do branco como bom, descolado de seus precedentes e de sua coletividade, vai armando o cenário para que o problema passe a ser visto como solução, piorando as coisas ainda mais. Primeiro, porque nega a realidade e se a gente não tem possibilidade de se debruçar sobre a verdade, a gente não consegue empreender um combate consistente ao racismo e resolver os problemas que dele decorrem. Segundo, porque promove uma narrativa onde as pessoas negras são incapazes de governar seu próprio destino. Foi imbuído justamente dessa mentalidade que seu antepassado branco colonizou o mundo todo, para “ajudar”, para “ensinar”, os outros a tocarem suas vidas, a se libertarem de seus problemas, muitos dos quais não eram problemas ou só vieram a existir depois da intervenção branca. A verdade é que essa vocação para salvação de vocês de hoje e vocês de ontem se assenta nessas mesmas bases.

Há uma frase muito repetida por brancos que se inserem no universo das manifestações de matriz africana embranquecidas quando falamos de apropriação cultural que é subproduto de tudo isso, que sintetiza tudo que se disse sobre o complexo do branco como o salvador. Vira e mexe, aparece um para dizer: “Ah mas você não acha que, se não fossem os brancos, essa manifestação já não teria desaparecido, visto que os negros não mais se interessam por ela?”. Gente, essa frase é muito recorrente! Muito mesmo! Agora, pegue essa frequência da recorrência e eleve à nona potência. O resultado dá o tamanho da revolta que ela gera em nós. Porque, para começar, você quer saber o que eu “acho” do “se não fosse o branco”? Então, eu nem acho. O que eu tenho certeza é que se não fosse o branco… bem, eu não vou nem completar porque eu me recuso acreditar que vocês não saibam mesmo como tudo seria para a gente e para a nossa cultura num cenário hipotético do “se não fosse o branco”. Pensem um pouquinho mais. Vocês conseguem.

Infelizmente, cada vez mais, por parte de uma galera, vou percebendo que burrice e falta de conhecimento não são nada perto de tamanha dedicação ao não entendimento. Em outras palavras, nem é que sejam burros, são apenas esforçados. O que se encontra muito evidente nos comentários a um post feito no facebook com uma versão desse texto. Muitas pessoas vieram “arjumentar” que “então, se o branco não pode fazer capoeira”… Aí, não, né? Era só ler o título, gente. Tá lá: para participar, antes saiba seu lugar. Bastava entender o título. Só isso!

Então, para fechar, eu nem sei se deveria, mas… vou facilitar. Deixa eu resumir e dizer sobre o que o texto é. É sobre não passar por cima de tudo e de todos. É sobre saber seu lugar. Não é sobre não participar. Veja bem, eu posso chegar na sua casa e fazer o que eu quiser, me alocar onde quiser e como eu bem entender à revelia da sua vontade, o dono da casa?! É de bom tom? Eu não posso entrar na sua casa e querer pagar de dono do lugar. Pense se eu chego lá, passo a mão no controle remoto, me aloco onde eu quiser, mudo os móveis de lugar como bem entender, atendo o telefone, recebo a visita, defino o cardápio, etc. Enfim, na sua casa, quem diz como a bola rola? Então, porque na minha casa/causa não posso demandar o mesmo? Reflita aí, reflitão.

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