Quem não aguenta com besouro não atiça Mangangá.

Dessalín Òkòtó
revistaokoto
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5 min readApr 13, 2021
Ilustração Izaias Oliveira

Tem uma parada daquela treta entre os zoados made in Africa banhados no rio de Angola com o Òkòtó, que é o quanto a gente rende discussão, rende treta, rende assunto até esgotar quem falou fazendo bananeira e defecou pela boca.

Véi, quem não orçou o que disse não reclama do custo de ouvir. Quem não tem orelha grande não faz pacto com língua larga. E tem uma parada que é discutir a o caô até as últimas consequências e botar todos os pingos nos is. Senão fica uma coisa de dito pelo não dito jamais desdito e, no fim, a corda arrebenta pra quem não tinha que tá com a mão presa.

Mas essa parada é uma coisa que a gente cultiva aqui dentro do grupo. Falou uma parada equivocada, fez um comportamento zoado, a gente vai lá e aponta. Às vezes mais debochado, às vezes mais pocazideia, às vezes mais compreensivo. Mas não passa liso, não. Depois de um tempo entendi que até o que, supostamente, tá passando liso, na verdade é a corda que a gente tá dando pra malandro se enforcar. Mais cedo ou mais tarde, o que tá em falta vai ser cobrado.

E tem uma outra parada, também, e que a gente sempre fala aqui na casa: o que não queima pra fora, queima pra dentro. Xangô precisa de três esposas-água pra reinar equilibradamente. E, mesmo assim, três esposas-água que atuam em estados diferentes: uma esposa água que também é vento; outra que é água e mel e uma terceira que é água e metal. Três esposas de água que também assumem a forma gasosa, líquida e sólida. E tá Xangô lá, reinando com suas esposas-água para que o seu fogo seja o combustível do seu reino sem deixar que ele queime além da conta.

Um fogo, depois de aceso, só deixa duas alternativas para se lidar com ele: ou você engole o fogo com um incêndio, ou você deixa queimar até todo o combustível dele ser consumido. Depois de acender um fogo, não adianta fechar os olhos ou rezar pra deus fazer chover. Mas vagabundo chega com gasolina pra apagar o fogo! Ixi, só vai fazer render mais!

E muita gente ainda reclama da gente supostamente remoer treta. Mas já observaram quanto tempo um fogo demora pra queimar tudo e a fumaça acabar de vez? O que vocês chamam de remoer é essa fumaça residual. Mas saibam que onde há fumaça, há fogo, e se estamos remoendo é porque ainda tem questões a tratar na treta. E essa chama residual é fundamental pras cinzas que o fogo deixou atrás de si seja nutriente para adubar toda a vida que vai brotar daquele solo. O fogo transforma matéria orgânica em carbono, em terra preta. Matéria carbonizada essa que vai servir de adubo pro solo e fertilizar o chão da onde vai brotar um novo ecossistema na próxima chuva.

Eu dei o papo sobre o que não queima pra fora, queima pra dentro. E vocês sabem que só há um orixá-fogo com quem Xangô não se mete, saca? Obaluaê é o único que Xangô evita bater de frente. Não por temor, mas por respeito. Xangô queima pra fora, lambe cidades e reinos inteiros com suas labaredas. Mas tem um fogo mais poderoso que esse, que é o fogo de dentro da terra, da febre delirante, da coceira torturante que faz brotar bolhas e chagas pelo corpo todo e fazer até o mais são enlouquecer: fogo de Obaluaê. Xangô queima pra fora, Obaluaê queima pra dentro. Xangô queima na superfície, Obaluaê queima no subterrâneo. E, quando o fogo da terra está à ponto de explodir pela alta pressão e temperatura, ele transborda em erupção vulcânica que faz o dia virar noite com suas colunas de cinzas e fuligens, bolas de fogo arremessadas pelos ares, territórios afundados e ilhas brotarem em meio ao oceano. Dizem por aí que a explosão do Krakatoa, na Indonésia, foi ouvida até na Austrália e suas cinzas chegaram na Itália.

“Pisa ligeiro, pisa ligeiro

mexeu com capoeira

atiçou o formigueiro”

Aí, mano meu, se não vai ter língua comprida, deixa o formigueiro fazer seu corre em paz. Porque assim como um vulcão em erupção, quem mexe num monte cônico de formigueiro vai ver uma erupção de formigas mordendo quem se meteu a besta de cutucar com galho curto. Se você não tiver língua de tamanduá, melhor deixar sua fuça de fora. Não atice o que você não vai ter língua pra lamber. Não se meta em uma discussão que você não vai ter papo pra sustentar. Deixa quieto quem está em paz pra não ter que atravessar o inferno.

O Òkòtó também é conhecido — muitas vezes confundido — pela página do Dissecando o Racismo; mas bem que poderia se chamar “Discutindo Relação”, também. E não por acaso as duas podem ter a sigla de DR. (hahaha!) Pois dissecar o racismo é mais do que uma análise dessa desgraça que o branco inventou, mas um comportamento espiritual. E um comportamento espiritual (coisa redundante em dizer) que é também Discutir Relação, já que o racismo é algo relacional entre pessoas e atitudes. A gente disseca o racismo vendo tanto como os brancos e negros se comportam uns com os outros, como também os seus análogos no comportamento dos negros entre os negros. Pois uma boa forma de mapear os traços de embranquecimento em alguém é ver se o que ela está fazendo é algo que o branco faria em situação parecida. A famosa dentadura rebolando, o recheio estourando que nem espinha.

Mas, o que poucas pessoas percebem é que a gente só discute com aquilo que é importante. Se não importa, a gente passa reto. Então discutir, dissecar, debater, debochar é tudo uma forma de amor. Ninguém liga praquilo que não estima. E a gente só gasta tanta energia com algumas coisas que pra alguns parece ser coisa boba porque a gente estima a nossa família e quer melhorar nossa comunidade. Uma mãe repete tantas vezes quanto preciso aquilo que os filhos tem ou não que aprender. Um pai vai lá e já chega rasgando pra endireitar o comportamento dos filhos que estão no erro. Tanto um quanto o outro estão dando a prova do seu amor aos filhos ao fazer o que tem que ser feito para os filhos serem criados.

Uma parada que eu demorei a entender é por quê se explica tanto no Òkòtó. Aqui a gente explica exaustivamente as regras da casa, como se lida com as situações, os conselhos aos que estão chegando e os avisos aos mais que já estão e tão deixando a peteca cair. Demorei um bom tempo pra entender por quê se gasta tanta energia nisso. Mas depois que fui compreendendo que educação é isso e, antes de mais nada, o Òkòtó é uma Escola de Educação em Dinâmica Racial, aí a conta foi fechando.

E o princípio lá de Heru segue no esteio da casa: “assim na terra como no céu”. O princípio que está nas relações da casa com a comunidade é a relação da gente entre nós. Pois, no fim das contas, é tudo relação de comunidade, é sobre política. É o mesmo princípio entre o Òkòtó com outras organizações, de nós entre nós, de nós com nossas relações pessoais, de nós conosco mesmos. O que não queima pra fora, queima pra dentro. E é melhor deixar o fogo lamber a paisagem do que esperar a erupção.

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Dessalín Òkòtó
revistaokoto

Querendo ser educador para melhorar minha comunidade, sentei para aprender e agora levanto para também ensinar.