Reflexões sobre a alienação entre o homem preto e a mulher preta

Priscila Argolo
revistaokoto
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5 min readMay 25, 2022
MVBill e Kmila CDD

Faz um tempo que estou olhando para a tela, pensando sobre tudo o que tem pra falar, mas não sei por onde começar. Não tem coisa melhor do que música preta e conforme eu ouço o novo álbum do Kendrick Lamar, as ideias não param de rodear. Acho que é melhor focar.

Tá tocando We Cry Together. Lembrei na hora de Estilo Vagabundo do MV Bill com a Kmila CDD. Primeiro achei a voz da mina foda, porque eu me amarro numa voz de mulher grossa e rouca. Quem não ama um vozeirão? Depois lembrei de Estilo Cachorro do Racionais, mas também lembrei do duelo da Fiel X Amante.

Ilustração: Diego Alberto

Sempre gostei de histórias de amor, mas percebi depois de um tempo que não era só pela paixão avassaladora. Na maioria dos casos tinha a ver com as tretas e o drama. Pessoas dispedaçadas e quebradas, porém, convictas de que o amor estava ali, sem se importar com o que fosse acontecer no meio do caminho.

Hoje, vivendo em companhia com meu baby, convivendo com meus parceros do Òkòtó, observando meus irmãos e escutando muito, mas muito homem preto por aí, percebi que mal sabia sobre eles. Nunca me interessei por saber e ainda me deparo com incoerências que eu acho errado, mas ainda reproduzo.

Como o Lucão disse mais cedo “muita gente enche a boca pra falar que homem preto não tem sentimento, não tem afeto ou “sensibilidade”, mas nunca repararam na quantidade de sentimento que, nós, homens pretos expressamos através das músicas” e isso me fez pensar no tanto de histórias que foram contadas por homens pretos ao longo do tempo.

Quantas histórias de amor, mesmo que despedaçadas, não foram contadas por homens pretos? Amor por suas parceiras, seus amigos, a desesperança de um traição ou até mesmo a alegria de estar na quebrada fazendo um som com seus chegados. A gente não conta em duas mãos, nem em duas vidas. É muita história e muito sentimento que muita gente nem se interessa sem citar “machista”, “escroto” ou “agressivo”.

Pra ilustrar isso, tem um álbum do Offset que eu gosto muito do início ao fim, mas o que eu mais amo nesse álbum é a capa, no qual, representa o Offset em seu trono, rodeado por seus 4 filhos: Jordan, Kalea, Kody e Kulture. Ao fundo, há uma parede lotada de hieroglifos. Pensa num álbum envolvente e que conta uma história foda.

Capa do álbum Father of 4, do Offset.

Só que, hoje, quando vi a capa do novo álbum do Kendrick, tive a mesma sensação que tive quando vi a capa do Offset, porque era, mais uma vez, um homem preto junto com sua família. Agora já tá acabando o Disco 2 e não consigo parar de pensar em como há uma alienação sinistra entre o homem preto e a mulher preta.

No livro Os Papéis de Isis, da Dra Frances Cress Welsing, tem um trecho que exemplifica comportamentos comuns nas comunidades pretas que diz o seguinte:

“Desilusão com o casamento. Desarmonia. Desrespeito. Separação. Divórcio. Mães solteiras que chefiam suas famílias. Ausência de homens pretos modelo que desenvolvam meninos e jovens pretos. Níveis epidêmicos de gravidez na adolescência. Milhares de crianças abandonadas em orfanatos. (…) Dificilmente qualquer pessoa preta conhece 5 casais pretos felizes.”

Se parar pra lembrar, a maioria das músicas que homens pretos fizeram em relação a suas histórias de amor tinha a ver com relacionamentos conturbados. Em muitas, os pretão só tão dando um papo sincero, de coração, mas a gente desconhece tanto o homem preto, que não damos atenção ao que eles sentem, como se não tivessem vontade própria.

No dueto Estilo Vagabundo, a Kmila já começa esculachando e o MV Bill responde “eu só quero saber porque você tá gritando, chamando atenção de quem passa, me envergonhando, mulher que não respeita, meu coração não aceita, eu tento te agradar e você sempre faz desfeita,” e a discussão vai até cair no carinho, rs.

Ela tava acusando ele de vagabundagem, trairagem e irresponsabilidade, mas ele rebateu dizendo que tudo o que ela pensava dele não passava de fofoca. Pra dizer que é mais comum do que a gente pensa, na We Cry Together do Kendrick — que é um discussão no mesmo esquema de Estilo Vagabundo — tem um trecho que Lamar diz “você quer deixar um pretão pra baixo, até mesmo quando eu tento fazer certo.”

Capa do álbum Mr. Morale & the Big Steppers Out, do Kendrick Lamar.

Todos os dias tenho conhecido e ouvido homens pretos com olhos que nunca tive antes, porque a perspectiva mais vendida sobre homens pretos é que são bandidos, que não criam seus filhos, que só querem vadiar e que não têm amor pra dar, mas quando a gente se abre pra conhecer e respeitá-los, muito do que não entendíamos vem a tona.

Como comunidade, temos que conhecer um ao outro ao invés de carregarmos as fofocas que os brancos e as feministas — principalmente as negras — criaram sobre o homem preto, inclusive, boatos sobre os homens pretos são capazes de destruir famílias pretas e vidas. Os boatos que carregamos durante nossa caminhada sobre o homem preto também é um dos motivos pela alienação entre homens e mulheres pretas.

Por isso, nada de falar do homem preto sem o homem preto, porque eles sentem mais do que a gente costuma escutar e se expressam mais do que a gente gostaria de acreditar. Vê se reflete aí com o seu dedinho apontado com Father of 4 do Offset: eu sou o que você vê, o que você ouve é parte de mim, mas tem muito mais de mim, muito mais pra ser do que apenas vivo: um filho, um irmão, um marido, um pai.

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Priscila Argolo
revistaokoto

Ninguém me deu permissão pra sonhar, mas eu já sabia o quanto era bom. Mãe do Jota, companheira do Marquinhos e a humana da Akira.