Só vai perder quem tem

Zezi Masomakali
revistaokoto
Published in
8 min readDec 5, 2021

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Uma vez dessas aí, o senhor que criou meu pai teve a bela ideia de vacinar uns animais lá da terrinha que ele tinha. Pra cada tipo de bicho tinha uma medida diferente de remédio, que não deveria ser ultrapassada, a fim de não causar efeitos irreversíveis e até mesmo a morte do animal. O grande porém nessa presepada toda é que, seu Leão, não sabe ler e fez tudo na medida do olho.

Juntou os bichos e um a um foi vacinando, os ajudantes só ajudaram e a coisa toda seguiu.

Uns três dias depois houve um total de três mortes e uns cinco baquiamentos. Ninguém entendeu nada, daí procuraram saber da história toda e ele contou o que tinha feito. Geral disse que ele tinha que ter pedido ajuda e tudo mais, que os bichos morreram a toa e ele mandou logo um:

“Quem tem pra perder, perde. Só morreu porque nasceu e eu só perdi porque eu tinha. Os animais que viveram tão tudo bonito aí, oh!”

Vendo esse desespero recente com o falecimento da moça sertaneja, fiquei pensando nisso. Yurugus não tem reservas. Quando eles tem algo que chega próximo ao bom, eles logo tratam de exaltar, logo tratam de enaltecer e colocar no patamar mais alto.
Dizem que aquilo ou aquela pessoa tem qualidades, tem potencial, que é um talento bruto e que nem de lapidação vai precisar porque ele é tão brabo, tão foda, que ele vai se lapidar sozinho durante sua trajetória.

E repara bem, se não é esse o ciclo das pessoas deles. Uma pessoa fodida, com passado triste, poucas oportunidades e muito talento, carisma e a caralhada toda, esperando dia após dia o pedaço dela de sol, a luz que iria virar seu holofote pra que ela mostrasse seu talento embaixo desse brilho.

A comoção não vem de lugar nenhum e as vezes tenho a sensação que ela não acontece de uma hora pra outra. Comoção, como qualquer outra emoção é plantada aos pouquinhos. Começa das coisas que a gente opta por ignorar.

É exatamente, lá na história que começa triste e depois vira superação, é o plot twist que ninguém esperava, tipo coisa de filme. A comoção já existe ali.

Quando eles perdem eles precisam chorar e chorar muito. Não duvide que quando eles dizem que nunca vai existir alguém igual ao que se foi.

Eles não tem tudo que dizem ter, eles nunca vem pro jogo com a mão boa. O que eles tem é um marketing bom, tecnologia, a sedução. Tem cada coisa que eles dizem ser música/arte/obra rolando por aí que dá pra repensar se é melhor mesmo ouvir e ver do que ser surdo ou cego.

Eles não choram apenas a perda ou por quem ficou e tá desamparado ou as coisas que ficaram e não vão mais ser feitas, mas pelo retrabalho que terá que ser executado. Eles vão ter que achar uma nova pessoa, com um talento mínimo, que vai ter que percorrer todo o caminho do reconhecimento fajuto deles até chegar naquele pedestal e tomar aquela posição de adoração.

Fico pensando no que meu avô postiço falou, só vai perder quem tem. Recorro também ao que sempre é falado e épretagogia nossa, de que talento não é iluminação divina momentânea.É repetição, é treino, é constância.

Ainda mais quando se trata de arte, de representação ou expressão cultural. E é esquisito vê como eles tratam isso de forma pequena. Uma pessoa que tinha acesso a sua casa todos os dias, que tava na boca de todo mundo, que tava fazendo parte da vida de quem escutava (já que segundo eles mesmos relatavam, as músicas eram tão profundas que parecia que ela estava os espionando) para receber no fim de tudo isso, apenas comoção.

“Mas como assim tu falou que comoção é mais profundo do que a gente pensa, que ela começa já no princípio das coisas e agora tá diminuindo o babado?”

Vamo pensar na comoção como um siso, ok?

Ele é um dente igual, dói igual, você vai escova-lo igual mas ele é o único dente que você tem certeza que um dia que vai te causar problemas.

Comoção é o siso das emoções. Ela tá ali, adormecida, tá pairando no ambiente, flutuando ali quietinha só esperando o momento de te lembrar que ela foi plantada e a hora de colher vem. Ela pode ser uma emoção potente e transformadora mas nunca é usada de forma correta. É a emoção preferida dos emocionados.

Cês acham que eles estão pensando em prevenção de acidentes e formas mais seguras de viajar, diminuir o ritmo de trabalho para que o artista possa ter tempo de averiguar os meios de transporte que vai usar, e que as empresas vão usar esse tempo pra fazer as vistorias?
OU
Tá geral pensando que foi uma fatalidade e que pra morrer basta tá vivo, que a vida é um sopro, pensando em homenagens de um mês/um ano/ dez anos e pápápá?

Não se pode dar apenas comoção a quem foi tão significativo assim na sua história mas isso é só mais uma parte de uma série de coisas que eles não sabem fazer, mas vão meter que sabem, pra que quem tá de fora não destoe da mentira.

O revés de comoção é organização. E isso é papo velho já.

Eles não podem e não vão admitir isso porque essa única mudança jogaria todo mundo no chão. A subida seria mais difícil e cansativa e eles são preguiçosos (as músicas com mais de quatro minutos não são deixadas de lado a toa). Organização exige tempo, empenho, atenção.

Ela revela o que há de aproveitável ou não no seu processo.

Geral ia subir, mas ninguém ia passar no vão, porque a porta seria estreita demais. Se eles trabalhassem mesmo o “quem subir leva o outro” eles não estariam nesse sofrimento todo aí. Já estavam capacitando mais artistas, estariam utilizando a morte dessa pra por a próxima. Eles são o povo do descartável e substituível, logo se tivessem a fórmula de formar artistas reais na mão, eles não estariam assim tão preocupados com o falecimento de quem quer que seja.
Eles só tem o padrão, eles tem as ferramentas e controlam a engrenagem, então logo mais alguém acende e eles começam de novo.

Além disso eles sabem roubar, copiar e reproduzir, sem eu garanto que eles não vão ficar.

Dane- se a criança que ficou, a família, os amigos… Eles já estão preparados pra daqui vinte anos lançar esse garoto nos palcos. Vão ter os amigos da mãe dele que estarão mais velhos, a história triste, o passado difícil e o talento que eles insistiram em dizer que é de berço. Cata os lances da plantação de comoção já acontecendo.

Não chorar essa morte e qualquer outra morte deles não é falta de coração, não é falta de afeto. Os esforços do nosso povo tem que estar onde é viável pra gente, assim como é pra eles.
É meter aquela lá de todo mundo em Pânico:
“40 negros foram baleados mas tão passando a branquela que caiu no poço na TV”.
As pessoas que acendem aqui tem que iluminar a comunidade e não um lugar ao qual nunca pertenceram.
Essa galera chega tirando o que tem de maior valor aqui pra se esbaldar em casa e quando alguém daqui morre antes das lágrimas é um carregamento gigante de especulação.
“Qual crime esse artista (neigros) cometeu para falecer? Rezando não tava!”
Enquanto eles estão longe e acima de qualquer suspeita. Morreu “santou” como diz meu pai.
Racismo não cometeu, nunca foi cabra cega, nunca se aproveitou de ninguém, sempre foi reta e correta e ajudava quem precisava tinha um ótimo coração e tal. Eu nunca vi coração bom combater racismo nem ajudar os nossos.
Não fazer nada, não decidir fazer nada também é ação. Graças a Deus que nunca meteu antirracismo, fazer isso é crime sujeito a pauladas. Mas também nunca vi educar um branco.
Numa terra que fazer o mínimo é o máximo, muito ajuda quem não atrapalha né?! É assim que eles vão passar a ficha dela.

Se você quer chorar uma pessoa que nada fez por você, não olhar as pessoas da sua comunidade que tão aí fazendo a alegria da galera desde de antes de você nascer, com talento real e histórias difíceis de fato, que é seu espelho, fica a vontade, mas faz escondido ou longe da nossa distância.

Como disseram na página no “fatídico” dia, se vocês chorassem isso tudo pelos seus não teriam lágrimas pra chorar pelos deles.

Organização é melhor que comoção, é maior, é mais digno. Ao mesmo tempo que é mais caro e exigente. E que bom que é assim.
Desorganizados desse jeito eles conseguiram a atenção de geral, imagina se fosse uma fábrica de talentos, trabalhando toda pessoa com potencial pra ser de fato boa?

Pois é.

Geral dos nossos morrem todos os dias e não somos descartáveis. Mas somos igualmente desorganizados e nem pra comoção servimos. Esquecemos fácil das coisas e das pessoas. Mal mal lembramos quando faz um ou dois anos de morte, enquanto a Billboard, Oscar, Grammy nós usam pra ganhar mais dinheiro e views, fazendo homenagem póstuma e lucrando seus royalties.

Talento talvez venha só de berço, talvez de fato seja uma diferença genética mesmo. Qualquer pessoa preta na quebrada tem um, aquela coisa na qual se destaca que geral acha foda. Pode nunca ser descoberto porque caímos na bobeira de nunca explorar. Eles não tem isso.

Eles tem que vir fazer imersão aquiz aprender aqui e com os daqui pra saber reproduzir e copiar. Não a toa as redes sociais ganham seu espaço como mídia de divulgação e todo mundo que se preze tem que mostrar o que faz por lá. Cês caem fácil, bandibesta.

Nós sempre achamos que tem o momento certo, que a pessoa X é que tem que ver pra dar certo. Aceitamos que só se chega lá se for pela companhia de viagens do sucesso que eles criaram. Poxa nenhuma vã clandestina aí não?

Aceitamos ir pelo caminho seguro e acompanhar aqueles que chegaram no lugar onde acham que a glória reside.

E daí ficamos.

No resumo de tudo, só quem tem pra perder é que vai de fator perder. Há quem produz e há quem compre pronto. Há ainda quem engana pra dizer que produziu e que o produto é bom.

Afinal se eu comer algo ruim e caro eu não vou dizer que foi ruim, e a vergonha? Vou tratar logo de dizer que é bom, se pá eu até pago pra alguém comer e também fizer que é bom, ou posso esperar que mais algum bobo caia no meu papo pra eu não passar vergonha sozinha.

Quem faz e faz bem, tá fazendo desde sempre, sem estrutura, sem suporte, dentro do molde que a gente acredita que é o certo pra quem a gente realmente quer atingir e quer manter por perto. Não nos interessa ultrapassar um limite e chegar lá onde judas perdeu as meias pra quem sempre cagou pra gente.

Tem que ser importante pra dentro antes de querer ir ver o mundo lá fora. Ser pra comunidade, pros nossos antes de ser pros deles e talvez nunca pra eles. Quem faz mesmo talvez nunca nem queira mostrar o que fez pra oymbo e é nesse ponto aqui que a gente sente que entendeu tudo.

Vai passar muita gente, gente preta então nem se fala. E vamos perder sim, sentar, chorar… Mas os que que ficarem vão ser bonitos demais.

Festival É Coisa de Preto já tá aí na porta né?

É! Pois é!

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Zezi Masomakali
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Pretinha, Okotoshica, filhota mais velha do KZP, a sede caçulado Okoto que fica em BH- MG.