Sendo o brabo para o brabo que te ensinou.

OMOWALETTU
revistaokoto
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6 min readAug 13, 2021

(Malcolm X discursando e promovendo a celebração do “Dia de Garvey , África para os Africanos — Harlem ,Nova York 1958)

Que cada vez mais nós nos preocupemos em demonstrar nosso respeito, a quem admiramos através dos nossos feitos, através da nossa prática. Que procuremos nos fazer referência para aqueles com quem aprendemos em nossa trajetória para a organização do povo preto. Que estejamos preocupados em termos uma boa base para nossa memória coletiva partindo de grandes feitos autodeterminados, e que tenhamos critério em nossas inspirações e ambições também a partir disso. Assim como Malcolm um dia reverenciou e construiu feitos baseados na influência e eloquência de Garvey, dando continuidade através de uma dinâmica de luta proposta por um irmão da diáspora que influenciou tanto em sua educação desde sempre, começando dentro de seu próprio lar na infância, na educação que seus pais lhe passavam, desde a integridade que ele enxergava em seu pai quando pregava e se posicionava, até o orgulho com que sua mãe edificou o lar sem abrir mão de seus princípios enquanto pôde.

Garvey afirmou:

“Como uma raça, nós estamos agora desprovidos daquelas coisas que são moralmente e legalmente nossas, cremos que é certo que todas essas coisas devam ser adquiridas e detidas por qualquer meio possível”

Malcolm confirmou:

"Por qualquer meio necessário"

Por mais recente e até contemporânea que seja a relação que temos com as nossas referências, é necessário que entendamos elas partindo da ancestralidade e, tendo o entendimento disso, podemos chegar na conclusão de que sempre será melhor nos enxergarmos também dentro dos feitos de africanos que outrora lutaram para que tivéssemos muito do que temos hoje, e que nós somos mais um canal de progresso nessa caminhada. Não começamos nada, somos continuidade, nos relacionamos de forma direta e indireta com tudo, colhemos muitos frutos desses corres e devemos também depositar nossos recursos e esforços para que sejamos também referências e para que outros africanos consigam colher e continuar esse plantio de tâmaras que geraram tanto frutos sadios para nós ao longo do tempo, e que nos fizeram existir e resistir a todo esse tempo em meio a tantos atentados a nossa humanidade. Direto é refletido aqui no Kilumbu Òkòtó que devemos trazer mais que repetir o discurso, conseguir exercer as posturas que edificam a nossa organização por parte Taiwó, Dessalin, Apokan, Nicole, Balogun...

E o que se ilustrou na relação de Garvey e Malcolm ao longo de suas vidas foi exatamente essa compreensão: tal como Garvey elegeu e formou Barões, Malcolm elegeu e formou ministros; tal como Garvey tinha recursos pedagógicos diretos e desconsertantes para os inertes, Malcolm tinha sua pedagogia que causava incômodo com o requinte de um sorriso debochado; tal como Garvey identificou a construção de um exército, de uma indústria, de um mercado controlado pelos pretos em África um processo necessário para nossa soberania, Malcolm entendia que os processos de luta pela libertação e independência do continente africano seriam vitais para a autodeterminação do povo preto no mundo inteiro. Ambos sabiam do poder da propaganda para nos desarticular e despotencializar, mas também souberam construir narrativas próprias para construir bases sólidas de poder. Mesmo com a mídia de massa tentando descredibilizar seus trabalhos, eles obtiveram sucesso em medidas gigantescas em seus contextos e figuram como nossas principais referências até hoje. Inclusive quando foi necessário, ou quando eles definiram que seria conveniente se fazer presente na mídia de massa em programas com repórteres, jornalistas e entrevistadores ordinários tal como Garvey fez questão de se colocar a frente do Grão mestre da KKK como Malcolm deu entrevistas a nosso querido Mr Wallace.

Garvey afirmou:

“Até que a África seja livre, nenhum africano em qualquer parte do mundo será respeitado”

Malcolm confirmou:

“Onde quer que o homem negro esteja, ele nunca será respeitado até que a África seja uma grande potência mundial”

E tudo o que fizeram, toda imagem que procuraram passar para a nossa comunidade nos fez e faz acreditar que podemos fazer tudo por nós mesmos, porém através desse entendimento comum de coletividade e conexão (liga aí seu Wi-Fi à comunidade, vacilão) com o todo, seguindo um propósito que não necessariamente será colhido por eles, afinal não eram extrativistas, eram guerreiros. Seguiram e deram exemplos, colheram e deram novas bases.

Mesmo antes de Malcolm estar presente de forma íntegra à organização, ele já entendia e identificava as nuances de um bairro como o Harlem, por onde Garvey passou, e mais tarde entendeu que seria necessário deixar também uma estrutura, um local que possibilitasse esse ingresso de pessoas pretas na construção de sua comunidade de forma funcional, ele o fez com as mesquitas por onde passou mais tarde, como antes havia feito Garvey com os escritórios. Até mesmo o perfil de antagonistas pretos eles tiveram, e também contribuíram muito para o entendimento do papel do branco progressista e liberal dentro de nossa comunidade a partir dessas pessoas pretas.

Garvey afirmou:

"Um povo que não conhece sua história é como uma árvore sem raíz"

Malcolm confirmou:

“Assim como uma árvore sem raízes está morta, um povo sem história ou raízes culturais também se torna um povo morto”

O que te falta para poder dialogar com suas referências e dar continuidade ao trabalho de base e propaganda? Tá organizado? Tá se baseando em que? Quais erros e postura disfuncionais suas tu já identificou? Acha que você seria referência e dialogaria com as posturas delas tal como Malcolm dialogou e deu continuidade ao trabalho de Garvey a sua forma? Acha que você tem menos ferramentas que eles dispuseram? Vamos nos propor essa nova perspectiva, ou um resgate dela, de começar a respeitar e reverenciar nossas referências através das nossas posturas, através dos nossos feitos, não por citação ou mero conhecimento. Senão estaremos aqui apenas colhendo os frutos de trabalho dos outros e que uma hora vai acabar se não plantarmos nada, que por bem dizer já estamos em um débito gigante com muitas de nossas referências. Portanto, que eles se façam mais presentes pela nossa prática do que pela nossa fala.

Garvey afirma:

“Qual o melhor amigo, o que te diz ou o que guarda a informação de você mas quer dizer a mesma coisa?”

Malcolm Confirma:

“Os conservadores brancos não são amigos do negro, mas pelo menos não tentam esconder. Eles são como lobos; mostram os dentes num rosnado que mantém o negro sempre ciente de onde está com eles. Mas os liberais brancos são raposas, que também mostram os dentes ao negro, mas fingem que estão sorrindo. Os liberais brancos são mais perigosos que os conservadores”

Uma das consequências que nós teremos que lidar caso a nossa displicência com nossas referências impere é justamente a de que outras pessoas e comunidades passarão a usar a imagem de nossas referências conforme os seus interesses políticos através de uns malabares que muito irão acreditar porque vc se eximiu da responsabilidade de passar adiante a verdadeira lição que essas pessoas passaram. Vivemos tempos sombrios onde aparentemente estão resgatando a imagem de Malcolm para fazer e capitalizar uma agenda antirracista e não me passa pela cabeça que em mais 50 anos eles não iriam tentar o mesmo com a imagem de Garvey. Fica ligado se não colocaram a imagem de um brabo contra o outro sendo que a maior parte da vida e dos feitos é justamente complementar um ao outro e também complementar a nós nos dias de hoje. Não vai se surpreendendo se aparecerem com alguma fala de Malcolm descontextualizada e revisada de forma tendenciosa para combater ao seu trabalho nacionalista preto e autodeterminado hoje em dia. O diabo é ardiloso. Por fim mais uma frase que mostra a conexão um do outro tal como eu me reverencio hoje nos feitos e posturas diariamente de membros do Kilùmbu Òkòtó para me tornar o mais útil e funcional para a minha comunidade por qualquer meio necessário.

Garvey afirma:

"Sabemos que a África não pode ser liberta por meros discursos, por simples artigos editoriais. Sabemos que a África só pode ser livre pelo sacrifício de sangue humano, e estamos preparados para dar até a última gota de sangue para que, em um destes dias, o Vermelho, o Preto e o Verde flutuarão no pico mais alto da nossa pátria, África.

Você conhece o velho tipo depressivo. Ele não pensa na liberdade em termos de sangue, e é por isso que ele nunca foi livre. Qualquer homem são, ou raça, ou nação, que deseja a liberdade, deve primeiro pensar em termos de sangue. Ora, mesmo o Pai Celestial nos diz que sem o derramamento de sangue não pode haver remissão dos pecados. E como, em nome de Deus, com a história diante de vocês, vocês esperam libertar a África sem se preparar, e a alguns de nós, para a morte?"

Malcolm confirma:

"O preço da liberdade é a morte... e se não está pronto para morrer é melhor tirar a palavra liberdade do seu vocabulário."

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