Sobre essa tal “arte neigra”

Lisimba Dafari
revistaokoto
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14 min readMar 2, 2021

Desde que escrevi um texto sobre cinema “negro”, no qual cheguei a conclusão de que não é suficiente o protagonismo de figuras negras para que eu considere uma obra de arte negra, mas sim de questões próprias a nossa vivência como o “outro” num mundo que procura nos embranquecer/emoldurar, venho matutando bastante sobre o significado de “arte” pra nós. Não que nunca tenha divagado sobre isso antes, mas dessa vez procurei repensar o meu entendimento de arte a partir das produções tradicionais da “arte” africana nas quais tenho me referenciado, mais especificamente no legado kemita — de Kemet, antigo Egito na língua própria.

Ilustração: Lisimba Dafari

“Arte”?!

Pra início de conversa considero necessário pontuar que a definição de “arte” é bastante nebulosa até mesmo entre estudiosos da área. Contudo, apesar de todas a problemática envolvendo o que pode/deve ser considerado arte, para os não-leigos no assunto é consenso a ideia de que arte é tudo aquilo produzido com a intenção de sê-lo e/ou inserido no circuito artístico — museus, galerias, escolas, ateliês, coleções, leilões, revistas etc. Outro pressuposto compartilhado pelos iniciados no tema é que a arte não tem obrigação de ser bonita/agradável nem autoevidente ou comprometida em reproduzir o “real” por se tratar da manifestação simbólica do(s) indivíduo(s) que a produz(em). Ou seja, tudo e qualquer coisa pode ser apresentado como obra de arte desde que: “embalada” de acordo, principalmente em termos conceituais; aceita como tal por outros produtores/críticos/entendedores; e/ou circule nos espaços instituídos com tal

propósito. O que implica dizer que o não-pertencimento a esse contexto mais-que-específico será o fator que classificará outras produções como “artesanato”, “vandalismo”, “cultura popular”, “arte naif” e outros recortes do que uma determinada sociedade vai considerar válido para espelhar seus valores e o que não serve.

Um ótimo exemplo dessa arbitrariedade é o fato de que o que hoje chamamos de “arte egípcia” ou até mesmo “arte clássica (greco-romana)” trata-se apenas de uma sistematização historiográfica dos processos “evolutivos” através dos quais a humanidade manifestou sua criatividade e as técnicas que desembocaram na Pintura, na Escultura, na Música, na Dança etc. tal qual concebemos hoje. No entanto, de um ponto de vista puramente histórico é incorreta, sobretudo ao que se refere a produção kemita sua classificação dentro dos parâmetros de “arte”. E não sou só eu que digo isso. Os próprios historiadores da arte são os primeiros a ressaltar que o conceito de arte, tal qual conhecemos é recente demais diante de todos os artefatos enriquecidos com hieróglifos que conhecemos. O que havia era um grupo de artesãos preparados e incumbidos de produzir os materiais fundamentais para os complexos rituais fúnebres responsáveis, dentre outras tantas coisas, pelas pirâmides e estatuária. Isso porque, entre os kemitas não havia a ideia de um(a) produtor(a) singular cuja destreza merecesse autoria individual, mas sim um sistema de códigos e técnicas compartilhado pelas equipes encarregadas de sacralizar o legado dos líderes de seu povo. Um feito que levava bem mais de uma vida/geração e que, portanto, obedecia a uma tradição ritualística e não a livre expressão dos indivíduos incumbidos desse registro. O mesmo vale para “arte rupestre” do paleolítico. Os próprios historiadores reconhecem que as figuras de animais eram desenhadas nas cavernas não para apreciação estética ou para expressar a subjetividade de seus desenhistas, mas para referência nos momentos da caça ou fuga. Da mesma forma que a figuras femininas esculpidas em pedra do período tinham mais efeito de adoração que valor estético comparável ao de uma Mona Lisa. Ou seja, o termo “arte” ultrapassa seus limites históricos e incorpora/apropria-se de muita coisa que jamais seria entendida como tal no presente. Ou seja, objetividade não é o maior crivo para definir “arte”, pois até mesmo o que é muito anterior a ideia de autoria e a prática de comercialização de peças devido ao seu valor apreciativo — e não o funcional — acabam sendo incorporadas pela narrativa histórica que a arte ocidental(izada) faz de si. O que reforça a afirmação de que qualquer coisa pode ser arte desde que assim defendida e aceita pelos guardiões desse universo a parte — pero no mucho.

#Aquenda: um dos motivos que me forçaram a questionar a ideia de arte negra foi a minha dificuldade, compartilhada com uma amiga de vida e de curso, em nos taxarmos de “artistas” porque o que a gente mais via na faculdade de artes eram pessoas brancas de classe média se autodeclarando Picassos sem demonstrar nada além da soberba de comparável. Por diversas vezes a gente comentava a nudez do rei enquanto todos aplaudiam entusiasmados o traje novo do imperador. E, mesmo não tendo tanto aprofundamento na discussão racial na época, pra nós sempre foi muito berrante a facilidade com que todas aquelas pessoas brancas definiam a si mesmas e aos outros conforme suas próprias vontades e critérios. Um descaradamente que, hoje, muito me lembra a empáfia com que um dia pessoas igualmente brancas nos removeram a alma, a humanidade, a dignidade e até mesmo a sensibilidade. Uma “coincidência” que em grande parte desanuvia o meu desconforto em me situar com membros desse clubinho e em muito contribui para o meu questionamento acerca da validade de sermos reconhecidos como produtores de arte por quem sempre enxergou mais serventia que criatividade ou integridade em nossa existência.

Do Mercado

Sempre que alguém me pergunta a diferença entre o que produzo atualmente em design, principalmente com ilustrações, e o que eu produzia enquanto estudante de artes visuais sou bastante categórico em responder: cliente. Enquanto o(a) “artista” é o único responsável por dar a palavra final sobre o fruto de seu processo criativo, o trabalho do(a) designer só termina quando a satisfação de um supervisor ou contratante(s) é obtida. Obviamente, alguns designers desfrutam de um poder de veto maior sobre sua obra devido a sua notoriedade entre o público-consumidor contudo, o que costuma passar batido nessa explicação é que, por mais liberdade artística e licença poética que se atribua a figura do artista, ela está tão confinada à opinião dos interlocutores que lhe permitem continuar produzindo, alimentado e tudo do que qualquer prestador de serviço. Bom exemplo disso foi o van Gogh que só teve suas pretensões artísticas reconhecidas e remunerada após seu suicídio. Em vida pode até ter sido só um pintor holandês ruivo loucão que foi morar no interior da França sem gentileza alguma no manuseio do pincel, mas depois de morto quebrou recorde em leilões especializados. Outro exemplo foi a trajetória da Nina Simone. Rejeitada enquanto exímia pianista clássica e duplamente celebrada e perseguida por usar sua arte para dar voz a questões que contrariam os interesses da indústria fonográfica. O que costuma passar despercebido é que ninguém que dependa do valor em moeda corrente conferido ao produto de seu suor para viver dignamente é tão livre de vetos para se expressar quanto poderia ou gostaria. Caso ainda não tenha ficado escuro, a maior semelhança entre profissionais das artes ou do design é que ambos dependem de terceiros para ter abrigo, comida e alento.

Tudo isso pra dizer que: quem paga o cachê, narra o rolê. Pique “A roupa nova do imperador”. Se tu quer fazer parte da patota “diferenciada”, tu tem que agir nos conformes. Afinal, igual define igual. Total “imparcialidade objetiva” jurada por Deus. Jogo de compadre, no vocabulário da casa. O critério maior fica sendo o interesse e o retorno do mercado sobre as produções individuais. Se por um lado, hoje, qualquer um pode produzir e comercializar imagens, peças e narrativas impregnadas de intenção artística e subjetividade, por outro, as chaves e carimbos que legitimam o mérito de tais intenções continua bastante restrito. Isso porque a noção que temos de arte atualmente se deve muito a noção de “artista” cultivada no renascimento italiano e semeada no romantismo europeu que floresceu nos Oitocentos. Concepção essa que elevou o indivíduo produtor de “Arte” a um patamar destacado do “resto” da sociedade, posicionando-o como um ser mais influenciado por uma inspiração divina que pela estrutura histórica, cultural e, principalmente, socioeconômica, da qual surgiu. Concepção essa que, apesar de bastante refutada atualmente, ainda mantém viva a percepção de artistas como sujeitos dotados de uma “licença poética” indisponível a qualquer reles mortal uma vez que apenas os pinçados pelo circuito têm a chance de ter sua obra e memória devidamente valorizada$. Concepção essa que me faz questionar a pertinência de uma ideia de “arte negra” que nos mantém refém do aval de instituições “sem cor” e de indivíduos alçados acima de qualquer coletividade por transitarem pelo mundo com passaporte de intervenção artística.

#Aquenda: às vezes acho que a galera não lembra que as fortunas que investiram nos pincéis de Michaelangelo, Caravaggio, Da Vinci foram as mesmas: que ainda mantém viva no imaginário global(izado) a associação entre figurões renascentistas e a fé cristã como poço de virtudes; que financiaram o racismo científico e tudo mais que serviu de argumento moral, legal e o que valhesse para difundir as autodeclaradas “superioridade” do homem europeu e “universalidade” de seus ideais; que ainda controla o mercado — seja o fonográfico, o editorial, o midiático, o de editais, leilões, concursos etc. — e que tanto lucrou com os saques, pilhagens e “mercadorias” traficadas de África. Outras vezes lembro que a galera gosta de se passar, que não é incomum se deparar com quem diz querer bater de frente com a engrenagem colonial para, no mesmo fôlego, manifestar gratidão pela brecha em fatia de queijo suíço de sinhá. Não é raro perceber que até mesmo quem diz entender a perversidade em chamar Oxum de feminista, discordar, emocionadamente, a mais remota possibilidade de estabelecermos alternativas aos parâmetros coloniais que tanto podam a maneira que podemos expressar nossas experiências e subjetividades.

Do artista

Como interpretação de texto falha a beça, ressalto que não estou negando a possibilidade de pessoas negras serem artistas; de produzirem arte ou de representar retratos da nossa trajetória. O que estou apontando é a incoerência em nos considerarmos dotados de criatividade ainda que sem perspectiva alguma de um horizonte autodesignado. Aquele ditado: se não cabe às mentes mais criativas conceber um futuro que ultrapasse as demarcações coloniais ou, ao menos, resignifique a realidade de forma a nos fazer semear um destino no qual sejamos mais independentes de chancelas senhoriais, só nos sobra requentar /reformar as receitas do feitor. Ou será que alguém realmente acredita que mecenas desconstruídos vão fertilizar abalos significativos a sua posição no mundo? Até concordo com a necessidade de formarmos o público consumidor da arte na qual botamos fé, no entanto, considero tão, ou mais, urgente artistas que sustentem o axé de toda luta que alegam representar, pois o que mais se vê por aí é artista que no palco levanta bandeira e nos bastidores arrasta a digníssima no chão para melhor catar as moedas oferecidas pela brecha ou bater cabeça pra apadrinhamentos sem cor.

Nesse sentido, a primeira distinção que faço entre o que acredito ser a arte/os(as) artistas das quais precisamos é a pedra que Nina Simone e James Baldwin cantaram em suas trajetórias. Nina ao assumir como papel do artista o “reflexo de seu tempo” — em termos mais políticos que de expectativas contratuais –; e Baldwin quando declarou se sentir uma testemunha dos efeitos devastadores do racismo sobre a nossa comunidade. Ao se pensarem como obstáculos à nossa alienação, Simone e Baldwin assumiram o compromisso de manter a chama que nutriu e preservou a identidade dos nossos ancestrais e recusaram aquele tapinha nas costas de ioiô/iaiá. Esse mesmo ímpeto de não se dobrar à cultura imposta se fez presente na origem da capoeira, do samba, da renascença do Harlem, da cultura hip hop, do cultura ballroom e todas as redes comunitárias que nossos mais velhos nos legaram. O que ferra a continuidade dessas iniciativas é que muita gente assimilou tão bem a balela de que os povos africanos traficados pra cá não possuíam cultura ou civilizações dignas de nota que consideram impraticável outras noções de cultura não previstas ou refinadas pelo paladar europeu. O que fode é que muita gente prefere garantir aquela vaguinha alugada no porão da casa grande a abrir mão de qualquer coisa em troca de autonomia.

#Aquenda: no início do texto lembrei dos artefatos kemitas catalogados e exibidos em museus pelos mesmos países que demonizaram qualquer resquício de cultura de berços não-europeus. Retomo esse exemplo não somente para reiterar que até mesmo produções milenares como a de Kemet foram submetidas aos conceitos sem cor mais mudernos como para evidenciar que até mesmo o que atende ao requisito básico da autoria é passível de ser enquadrado como arte, embora não se negue o seu valor e intuito religioso/funerário. Ou seja, quais a chances de contrariar a lógica colonial têm indivíduos que se prendem a definições e proposições coloniais? Que arte é verdadeiramente negra se a baliza e a peneira não nos pertencem ou contemplam? Que produção artística podemos denominar “negra” se todos os fundamentos arrotados ignoram os nossos mais velhos? Se por um lado a ideia de originalidade é cara na conjectura ocidental(izada), nas produções africanas anteriores às invasões europeias demonstram que a “arte” africana sempre teve muito mais relação com identidade e pertencimento social. Ainda assim, até mesmo uma galera que vive evocando a nossa ancestralidade demonstra não se atentar para o fato de que a cultura de qualquer povo se expressa e se mantém viva através dos hábitos e crenças repassados adiante. Galera pira tanto na marola do artista como alguém excêntrico e alheio ao senso comum que conseguem desconsiderar que, nem que seja pela negação, toda produção humana é indissociável de seu contexto histórico, geográfico, linguístico e outras tantas variáveis. Qual a relevância para a coletividade, de fato, na existência de artistas negros somente em termos biológicos e discursivos? Qual o retorno que a coletividade tem a receber quando os contratos são entre CPFs negros e CNPJs incolores? Qual o benefício em termos artistas negros mais empenhados em agradar o “grande público” de uma sociedade inegavelmente racista como a nossa? Quem de nós tem interesse em investir na criação de um repertório simbólico próprio às nossas questões, uma vez que não há espaço no mercado para fomentar uma demanda tão nossa?

Do propósito

Antes que alguém me acuse de ter esquecido no churrasco as diferentes culturas que nos legaram os orixás, vodunsi dentre outros tantos legados saliento nessa última parte como a arte e a cultura africanas, num geral, estão muito mais próximos de ser manifestações de suas cosmovisões do que dos processos mentais e subjetivos de indivíduos “extraordinários” — como prega o ocidente. Como bem diz o Taiwo, a cultura de um povo, nada mais é do que o seu sistema científico-espiritual moldando suas práticas, valores e hábitos. “A cultura de um povo nada mais é que a sua espiritualidade na prática”. O que implica dizer que até mesmo na mais laica das nações europeias e no mais ateu dos povos ocidentais não será difícil identificar os reflexos da fé cristã — nem que se seja por aversão — na maneira de se vestir, de lidar com a morte, de tratar a higiene pessoal, de dogmatizar textos “sagrados”, trato com a natureza etc. Então, como é impensável supor a existência de povos totalmente despidos de uma cosmovisão que lhe forneça entendimentos e direcionamentos acerca da vida, do mundo, das relações internas e externas e tudo o mais e qualquer tentativa de subtrair os sistemas de crenças e valores africanos corre o risco de reforçar a mentira de que povos africanos não produziam cultura digna de nota, destaco a extrema relevância que os sistemas espirituais africanos deveriam ter no nosso vocabulário simbólico.

Sendo assim, o segundo traço de distinção que aponto para uma pegada menos afeita aos requisitos do ioiô Mercado é a compreensão de que, antes das caravelas, cultura não era algo descrito e catalogado por antropólogos, mas a realidade encarnada em todo e qualquer gesto e fala de cada membro de cada comunidade humana. Sem pretensão alguma de ser “universal” nem ilusão de ser um oásis solitário num deserto de possibilidades outras de ser, existir e interagir no mundo como professa as cartilhas ocidentais. Enfim…, o outro direcionamento possível que percebo aos que pretendem se embrenhar na disputa simbólica/narrativa começa pela constatação de que precisamos não somente de testemunhas da nossa tortuosa caminhada, mas também de arranjos simbólicos que nos permitam uma visão de mundo na qual finalmente tomemos as rédeas de todos os meios que nos garantam uma vida na qual possamos ser fiéis a uma imagem positiva de nós mesmos e não meros reféns da velada ameaça de se estalar o chicote. Tão importante quanto um registro inspirado do nosso percurso até aqui são as mensagens inspiradoras de uma luta a ser vencida. Tão imprescindível quanto um bom dimensionamento histórico é um direcionamento que proporcione um propósito a ser cultuado e maquinado junto através de gerações.

#Aquenda: um dos principais motivos para que seja tão complicado, para tantos de nós, a simples menção a um futuro desatrelado de referenciais brancos — distópicos ou não — não é só porque as profecias ficcionais afrofuturistas não tomaram a propulsão dos apocalipses zumbis, mas, sobretudo, porque a farsa da autodenominada “superioridade” branca se vale mais da nossa descrença em nós mesmos do que de milícias neonazistas. Enquanto não recuperarmos ou recriarmos nossos próprios arcabouços culturais continuaremos sujeitos a confundir reformas na estrutura colonial com rupturas com esse mesmo sistema que interpreta como ameaça a menor sugestão de propósitos autodesignados por e para nós mesmos. Enquanto não cultivarmos nossa própria imagem como a terra fértil na qual cultivaremos a nossa própria beleza, grandeza e divindade continuaremos atados a narrativa que concede ao europeu o papel de tutor do único projeto civilizacional possível da Terra.

Do convite

Já formamos um bocado de gente que saca não ter sido a toa as deusas Hathor — na cosmovisão kemita a deusa da cabeça de vaca — e Oxum — na cosmovisão iorubá — terem sido associadas não só à beleza e ao amor como também à fertilidade, à alegria e à imaginação. Quem tá ligado sabe que o espelho da yalodê da água doce não é um símbolo narcísico como acabou, narcisamente, interpretando o europeu, mas sim um símbolo do poder que carregamos ao enxergarmos em nós mesmos o potencial para realização de nossa ambições e anseios. Sendo assim, tá mais do que na hora de cada vez mais de nós peitarmos o barulho de gerar, cultivar, colher e ficar adubando projeções positivas de nós mesmos e dos nossos. O que não necessariamente significa negar o sagrado do imaginário talhado pelos idealizadores renascentistas, mas que inevitavelmente nos encarrega da responsabilidade, compartilhada, de sermos desembocaduras por onde transbordarão tudo que possa garantir a abundância de nossa comunidade. Pois tão necessário quanto o preparo físico para guerra é a crença em nós mesmos e nos nossos.

Assim, nos cercarmos de pessoas empenhadas no mesmo propósito coletivo se faz fundamental, pois um espelho não reflete somente a nossa imagem, mas também tudo e todos que nos cercam. Se queremos realmente ir além de discursos inflamados, midiatizados e de alto engajamento na redes sociais temos que guiar o máximo possível de nossas ações no sentido de contribuir para o fim da seca de horizontes que nos levam a superestimar pódios brancos como a única fonte capaz de nos fazer perceber dignos de adoração, afeto e vida. Somente a profusão de um imaginário que nos leve a mergulhar na certeza de que não tem como a existência humana se limitar às concepções de curadoria eurocentrada. Somente a ousadia de redescobrirmos a magnitude de incluirmos uns aos outros no olhar sobre nós mesmos tem como contrabalancear todos esses séculos de estereótipos propagandeados a partir do olhar e dos interesses dos kkkolonizadores.

#Aquenda: teoricamente a diferença entre publicidade e propaganda é a de que, enquanto a primeira promove produtos e serviços, a segunda difunde doutrinas/ideologias. Uma distinção que sugere a ausência de perspectiva política na difusão de anunciantes de produtos e serviços quando conhecemos todos muito bem o efeito danoso de sermos historicamente representados mais como instrumentos e prestadores de serviços do que sujeitos a serem ouvidos e respeitados. Em outras palavras, não podemos continuar agindo como se o valor que os magnata estão dispostos a perder com nós é o melhor indicativo da nossa competência e validade artística, mas sim a capacidade que temos de contaminar os nossos com a representação da excelência a qual fomos individual, coletiva e historicamente afastados. A única coisa da qual não podemos esquecer nessa tentativa é de que entrar em rota de colisão com os poderes instituídos terá sempre como resultado uma força contrária. Afinal, caso estejamos realmente na disposição de dar luz a uma outra imagem de nós mesmos não podemos ignorar que toda nova forma de vida exige um parcela de suor e até mesmo sangue para vir ao mundo. Então, da mesma forma que se espera que os nossos apoiem as vindouras ressignificações artísticas da realidade, seus produtores precisam aprender a equilibrar o suporte mútuo que deve haver entre mensageiro, mensagem e receptores/interlocutores/espectadores. Entre o que nos inspira, o que expiramos e a quem inspiramos. Enfim, se o interesse é genuinamente produzir uma arte que dê conta dos nossos corres, antes de estabelecermos os limites e a finalidade da arte que gostaríamos, precisamos zelar pelas fontes das quais bebemos e pretendemos espelhar, pois como frisou Marimba Ani, “sua cultura é nosso sistema imunológico”. Portanto, tão importante quanto saber em quais fontes espelhar a nossa arte é prestar atenção em quem se vê refletido conosco nesse reflexo.

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