Sobre essa tal “Palmitagem”

Lisimba Dafari
15 min readApr 19, 2019

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Cena do filme: “Looking for Langston” (1989)

Originalmente publicado em 2017.

AVISO: Não sou vidente. Não sou sensitivo. Não sou onisciente. Quero deixar bem escuro que não estou interessado em debater sobre o relacionamento de ninguém. Não só porque não tenho o menor interesse em ser terapeuta de casais, como porque também acredito que eventuais carapuças devem ser discutidas entre os(as) pombinhos(as) envolvidos(as). #AtoFalhoÉQuaseBingo

Se tem um assunto que provoca alvoroço em grupos de discussão de negritude é o tema do preterimento, afetivo-sexual, de pessoas negras em benefício dos(as) habituais mocinhos(as) brancos(as). Dito isso, gostaria de me posicionar como alguém que sabe ser possível nos relacionarmos com “palmitos” de maneira saudável e construtiva. Meu primeiro namoro me permite acreditar nisso — somos grandes amigos até hoje, inclusive. O problema, porém, começa quando gente negra demais declara ter encontrado aquela pessoa branca desconstruída/exceção para chamar de seu/sua sem que isso se reflita em qualquer avanço na maneira com que a sociedade lida com racismo. A coisa complica quando boa parte dos argumentos em defesa de relações inter-raciais ou desqualificam a discussão ao levar tudo para o pessoal, ou culpabilizam outros indivíduos negros por seus investimentos emocionais. Por entender que, diferente das gerações anteriores, temos sim escolha e não somos mais laçados(as) por príncipes/princesas encantados(as) brancos(as) que resolvi desenterrar algumas problematizações que costumam ficar sem resposta. #GrandãoPraCrlh

“É só uma questão de gosto”

Por conta da perseguição online aos “palmiteiros”, atualmente há quem se pense subversor(a) por se relacionar com uma pessoa branca. Em parte porque há quem confunda as atuais críticas do movimento negro com as experiências segregacionistas dos EUA e do Apartheid sul-africano. Em suma por ignorarem a história nacional. Podemos ser um país que nunca segregou legalmente, mas ainda nos escondemos atrás da miscigenação para nos passar por uma democracia racial. Logo, “palmitar” não tem como ser um ato revolucionário por aqui. Não importa quantos textos condenando “palmitagem” estejam disponíveis por aí. Desde os grilhões esperam que direcionemos amor e gratidão aos mesmos corpos brancos que nos desumanizavam. Então larguem de passar vergonha porque falta pouco pra ter “palmito” se promovendo como prafrentex a nossa custa, pra variar.

Então senta que lá vem história… Apesar da gente aprender na escola que o o Brasil foi uma colônia de exploração e seus colonos vieram, não com o projeto de estabelecer família, mas de retornarem à Portugal numa situação mai$ favorável, no fim das contas o território colonial ainda precisava ser ocupado. Sendo assim, a Coroa Portuguesa, em 1755, encorajou súditos a “juntarem-se aos nativos” a fim de ocupar seus domínios. Como na época mulheres não tinham “querer” e ameríndias nem gente eram consideradas, dá pra imaginar que tipo de enlace era possível entre europeus armados e nativas cativas. Ou seja, nossa colônia de exploração foi povoada através dos estupros de mulheres negras — da terra e africanas. Prova disso temos quando, anos mais tarde, um conde francês, em visita ao Brasil, encontrou por aqui uma corte tão miscigenada quanto seus súditos com exceção do imperador D. Pedro II.

Desde descoberto invadido, o desenvolvimento do Brasil esteve atrelado à soberania (estética, intelectual e moral) dos brancos portugueses. Como pretendo abordar a nossa “mestiçagem” numa oportunidade futura, reforço apenas o quão leviano é comparar o histórico de relações inter-raciais na sociedade brasileira com exemplos gringos. Não só porque defendo que a busca por um(a) branco(a) pra chamar de seu(sua) deve ser encarada como a ação “afirmativa” (de mobilidade social) mais antiga e bem-sucedida das instituições nacionais, como, também, porque pouco após a falsa abolição, o branqueamento (social, intelectual e genético) da nação passou a ser um projeto urgente das elites dirigentes. Pois, enquanto a Europa via as misturas entre os brancos e o resto como uma degeneração, aqui no Brasil os nossos eugenistas — para não começarem derrotados — arquitetaram a diluição da negritude que assolava o povo brasileiro pela fusão com a genética “superior” dos eurodescendentes. Para tanto, o governo brasileiro não somente financiou a vinda de imigrantes europeus, como também tomou diversas medidas que demarcassem a brancura como provedora de melhorias/avanços/prestígio. Assim, ficou designado que pessoas brancas (e embranquecidas) possuíam as mais belas feições e teriam acesso às mais privilegiadas remunerações pois elas descendiam daqueles cujos feitos intelectuais e valores morais deveriam nortear o país. Afinal, um futuro melhor para a nação brasileira, segundo os eugenistas, dependia da superação do nosso passado (negro). O destino da família brasileira seria, portanto, clarear-se ao máximo para que, através da suposta predominância do sangue europeu, os seus ideais “civilizatórios” se disseminassem entre a população.

#Aquenda: Como pode o seu gosto ser algo genuinamente seu quando serve de confirmação de tudo que já estava previsto como ideal/desejável? Não seria sorte demais ter nascido com uma predileção tão parecida com o que costuma estampar revistas, propagandas, novelas, cartazes de cinema etc.?

“Amor/Caráter não tem cor”

Uns dos obstáculos mais persistentes gerados por séculos de socialização racista são os estereótipos. Desde muito cedo esbarro com inúmeras certezas que as pessoas têm sobre mim. Já na escola, além de esperarem de mim uma aptidão natural para o futebol — iécoutchi! –, também projetavam em mim a síndrome de Cirilo e cismavam que eu tinha uma queda pela garota mais sebosa do colégio pelo simples fato dela ser branca e loira do cabelão neopentecostal. Mais tarde descobri que a cor da minha pele, para muitos(as), ditava não apenas uma preferência por peles branquinhas, mas também o meu comportamento na cama e dimensões da minha anatomia. Não foram poucas as vezes que me deparei com pessoas que se mostraram decepcionadas pela convicção de que negros estamos sempre dispostos a realizar fantasias de garanhão pornô.

De maneira geral — seja em sala de aula, vernissages, escritórios de RH, eventos “diferenciados” ou até mesmo atravessando a rua num “bairro nobre” –, toda vez que uma pessoa negra adentramos ambientes nos quais predominam pessoas brancas, acabamos tendo que negociar com as suposições racistas enraizadas na nossa cultura. Muitas vezes já saímos de casa dispostos(as) a causar aquela boa impressão — leia-se: a mais embranquecida possível. Quando nos cercamos de pessoas brancas, dificilmente temos como evitar a desconfortável posição de confirmar/frustrar eventuais pré-conceitos, pois quando a gente se torna uma pessoa negra excepcional e ultrapassamos algumas barreiras que nos permitem transitar entre a elite (política, intelectual, artística, econômica etc.), acabamos por nos tornar diplomatas da negritude. Assim sendo, ser o pingo de diversidade boiando pela nata da sociedade costumar ser um sintoma tanto de status quanto de embaraços. Porém quando a gente entra nesses espaços com uma coalhada a tiracolo tem os como melhor evitar diversos constrangimentos, pois diploma/medalha/título/mérito nenhum legitima mais a presença de um cleiton que um(a) acompanhante com dupla cidadania — que, por sua vez, acaba carimbando seu passe livre vitalício contra acusações de racismo. A única exigência, porém, fica na promessa de não nos confirmarmos aquela pessoa barraqueira/irracional/intransigente que esperavam que fossemos por conta de qualquer comentário infeliz.

#Aquenda: Numa sociedade na qual sucesso, credibilidade e excelência têm cor, assim como marginalidade, miséria e vergonha têm outra, como poderia o amor ter nenhuma? Já não é sem tempo da gente começar a discutir “palmitagem” levando em conta capital cultural/econômico! A maioria das tretas fica no Fla Flu dos sexos sem que discutamos como a ascensão social nos afasta dos nossos e nos leva a crer títulos/riquezas têm o poder de nos por em pé de igualdade com a mediocridade branca.

Cena do filme: “Looking for Langston” (1989)

“Foi um(a) cara/mina branco(a) quem primeiro me deu valor”

O racismo, antes de tudo, é um sistema de hierarquização, uma estrutura estabelecida por europeus para legitimar seu domínio sobre os demais povos. O que implica acreditar não apenas que pessoas brancas seriam “predestinadas” aos mais altos pódios da sociedade, como também que seriam capazes de agregar valor a tudo e a todos ao seu redor. Por conta desse valor altíssimo que eurodescendentes atribuíram a si mesmos — e nos condicionam a concordar –, tenho mil pés atrás com qualquer noção de valor da nossa cultura. Como no atual mundo globalizado recolonizado somos todos levados a ter como parâmetro de normalidade a Europa e seus descendentes, é comum acabarmos depreciando tudo que ultrapassa essas fronteiras. Por essa hierarquia posicionar pessoas pretas — quando muito –, como última opção, muitos de nós acumulamos abalos graves a autoestima, pois mesmo quando elogiados — (principalmente) por uma pessoa branca –, a lisonja costuma vir enviesada por métricas brancas. Não é nada raro ouvir que se é uma pessoa bonita/inteligente/educada/trabalhadora/etc. “para uma pessoa negra”. Sem dúvidas há quem aceite, ou até mesmo persiga, essa posição de destaque dentre os excluídos, entretanto não é porque ela é mais cômoda que a rejeição completa que devemos nos contentar com isso. Satisfazer-se por, de alguma forma, ter conseguido recompensar os estigmas do racismo e conquistado o apreço de uma pessoa branca-exceção pode ter o seu apelo, mas quando a gente avalia bem não é lá essa Coca-Cola toda, né?!

Não pretendo com isso dizer que toda pessoa negra num relacionamento com brancos sofre de auto-ódio. Tanto pro bem quanto pro mal não tem nem como avaliar uma coisa dessas. O mundo nos leva a admirar e enaltecer um infinidade de características eurodescendentes: dos lábios finos a deficiência na melanina; das brutalidades da colonização a ganância que ainda lucra com isso; da rigidez dos quadris a desumanização de tudo que não lhes serve de espelho etc. Isso porque, por serem o molde da definição de “humanidade”, pessoas brancas não apenas erram, como tem todo direito de errar. Enquanto que quando um indivíduo afro/aso/americo-descendente toma um mau passo todos os seus iguais carregarão o fardo desse equívoco, quando uma pessoa branca pisa na bola/lua quem perde/ganha são todos os seres humanos. Sendo assim, acho intrigante como se dá o processo pelo qual “palmitos” descem do salto e passam do desdém a apreciação. Se ir contra a corrente e se desvencilhar dos clichés perpetuados ao longo de séculos do racismo não costuma ser moleza nem mesmo entre pessoas negras, que caminho das pedras os faz alcançar isso?

Se ainda hoje é banal tomarmos pessoas brancas como padrão de beleza, é porque foi a essa conclusão que os “desbravadores do Novo Mundo” chegaram quando se depararam com os traços dos negros ameríndios e africanos. Se ainda hoje as universidades ocidentalizadas têm como base a Europa, é porque os cientistas europeus há muito se autoproclamaram os únicos humanos dotados de inteligência e competência para produzir conhecimento do planeta. Se ainda hoje, mesmo depois de duas guerras “mundiais”, do holocausto judeu, do corrente genocídio negro pelo mundo, dentre outros tropeços são cartilhas europeias que fundamentam nosso conceito de justiça, a culpa é dessa sanha narcisista. Inclusive, todas as concepções ocidentais do que seria o belo, o verdadeiro e o bom/justo têm como berço a Grécia antiga. Como, então, “palmitos” encontram apreço por pessoas negras quando fazer bom juízo de nós mesmos costuma ser difícil até mesmo pra gente?

#Aquenda: Se as atribuições positivas da cultura ocidental são fruto do menosprezo às características encontradas entre os povos subjugados pelos europeus, como se dá a estima que pessoas brancas nutrem por seus/suas parceiros(as) negros(as) que não passa nem pela fetichização — “só curto/prefiro negros(as)” –, nem pela abstração — “você é um(a) negro(a) diferente dos(as) outros(as)” — da negritude? Acredito que nas respostas a esse questionamento, que não objetifiquem nem suspendam a negritude, pode se esconder algum possível “antídoto” ao ideário racista.

“Meu/minha namorado(a) branco(a) é desconstruído(a)”

Toda vez que leio/ouço alguma pessoa negra se vangloriando por seus/suas parceiros(as) brancos(as) darem ouvidos a seus relatos de racismo, fico encasquetado em como isso apazígua alguém. Pior, como isso já pode ter sido o suficiente pra mim. Contudo, o mais legal é como nessa postura de blindar o/a companheiro(a) branco(a) acabamos por certificar, involuntariamente, como é espinhoso conversar sobre racismo com a maioria das pessoas brancas com as quais nos relacionamos. Querendo ou não, confirma-se que a coisa é tão complicada que podemos nos considerar abençoados quando um deles, consegue nos ouvir sem ficar contestando cada vírgula. Todavia, me parece que ter no seu par um(a) confidente deveria ser requisito mínimo. A real é que a longa história de uniões (consensuais ou não) entre brancos e não-brancos nunca fez do Brasil um país menos racista. O marido/dono da Xica da Silva, por exemplo, poderia até acolher as queixas de sua amada com a situação de seus irmãos, mas nem por isso se tornou um abolicionista. Isso porque amar indivíduos negros não requer o menor apreço pela negritude. Por isso, se for pra ter ao meu lado alguém que no futuro poderá me usar como credencial para bloquear acusações de racismo, o mínimo que essa pessoa pode fazer é me ouvir. Desconstrução deveria envolver ação e não somente o ato passivo de acatar a denúncia alheia.

#Aquenda: Invés de cairmos na balela romântica de que o amor supera tudo, até mesmo opressões históricas, não seria melhor aceitarmos que ninguém é perfeito, sobretudo membros de grupos opressores? Não seria mais eficiente cobrarmos uma postura vigilante e interventora de nossos pares brancos em vez de sairmos isentando-os(as) de críticas? Ou melhor: quais critérios vocês utilizam para definir alguém como branco-exceção, pois de pouco adianta poder desabafar com o/a crush se ele(a) permanece passivo(a) diante do racismo de seus familiares, amigos, colegas de trabalho etc. — especialmente quando você não está por perto.

“Tive experiências péssimas com um(a) ex negro, então namoro quem quiser”

Infelizmente é recorrente presenciar quem justifique o atual envolvimento com uma pessoa branca pelo insucesso em relacionamentos anteriores com indivíduos negros. Sempre que me deparo com uma carteirada dessas fico sem saber se chego no inbox pra contar que generalizar e descartar pessoas negras — mesmo que num recorte (heteronormativo) de gênero — por conta de interações particulares é o que configura um ato de discriminação. Fico chocado com isso de sugerir que até os vacilos de pessoas brancas são mais aceitáveis. Lastimável perceber como tendemos a enxergar pessoas brancas com uma benevolência que nunca nos dirigiram. Aprendemos a lidar com elas como se fossem apartadas de todos os séculos de opressão cometidos por seus antepassados, enquanto que nunca nos poupam dos estigmas de sempre. Por conta disso, quando enegrecemos nosso afeto, passamos a esperar dos contatinhos negros nada menos que a perfeição — possivelmente porque nos cobramos isso também. Como já é difícil esperar um alto nível de consciência racial dos nossos, não é por acaso que tantos(as) encerrem suas primeiras tentativas com outras pessoas negras decepcionados(as). Aquele ditado: pessoas brancas merecem amor apesar dos precedentes, enquanto negras precisam fazer por merecer.

Ainda assim, não é porque uma pessoa negra busca se envolver com outra que ela está, necessariamente, antenada com discussões sobre racismo, machismo ou qualquer outra opressão. Idealizar parceiros(as) negros(as) e relacionamentos entre nós também nos desumaniza. Ter lidado a vida inteira com situações de racismo não torna ninguém um ser humano mais iluminado ou mais dotado(a) de empatia, o que costuma acontecer são traumas e cicatrizes que, de tanto tempo internalizados passamos a naturalizar. Não é porque a pessoa está num grupo de afetividade negra que ela não pode estar ali só pela pegação/carência/curiosidade. Relacionar-se com outra pessoa negra não é garantia de muita coisa além da companhia de alguém que terá vivências próprias de racismo. No fim do dia essa pessoa nasceu e se criou na mesma sociedade racista e heteronormativa que todo mundo e o fato dela também ser negra não nos obriga a sermos melhores/diferentes de ninguém e nem tampouco termos os mesmos objetivos num relacionamento. Pode até existir um senso comum de como relacionamentos deveriam ser, mas todos acabam funcionando na base da negociação. Duas pessoas que não se conhecem, quando passam a conviver estão fadadas a descobrir os limites um do outro — e até os próprios –, então o mais acertado é explorar como as coisas poderiam se desenvolver.

#Aquenda: Experiências infelizes com outros indivíduos negros não deveriam servir para generalizar o todo. Ter dado ruim com um/uns não torna impraticável se acertar com outro. A cor da pele de alguém não é determinante para o sucesso ou fracasso de um relacionamento. Não seria hora de repensarmos como algumas fantasias românticas introjetadas nos autossabotam a ponto de pintarmos sapos de negro para ornar o altar do/da tão sonhado(a) cavalo/carroagem branco(a)? Não há a menor necessidade de pedir licença da militância para suas escolhas afetivas, então o mínimo que se pode fazer caso se sinta compelido(a) a botar o seu namoro/casamento pra jogo é não compactuar com o estereótipo de que pessoas negras só temos como dar certo no amor quando conduzidas por uma pessoa branca.

Cena do filme: “Looking for Langston” (1989)

“Namorar alguém negro não te faz mais militante”

Um dia ainda ponho as mãos nessa cartilha de militância que todo mundo usa para avaliar o desempenho dos coleguinhas, mas por desconhecer esse gabarito de pontuação vou me ater a minha humilde opinião. De fato não faltam exemplos de grandes expoentes da luta antirracista que, por ironia do destino, se uniram a pessoas historicamente privilegiadas pelo racismo. Todavia, por mais que essas pessoas tenham construído importantes legados para a negritude, fica sempre aquela dúvida: é possível transformar o mundo sem revolucionar o próprio afeto? Obviamente uma coisa não anula outra. Nada impede alguém que se relaciona amorosamente com pessoas brancas de se engajar em prol da negritude. Ao menos não deveria. Não é porque algum de nós se compromete com o avanço da coletividade que ela fica resumida a isso, somos atravessados(as) por diversas demandas que nos fazem circular por múltiplos espaços que, as vezes, acabam podando nossas oportunidades de estarmos entre semelhantes, mas que viabilizam encontros inesperados. Como afetividade está mais para montanha russa do que pra carrinho de rolimã, não cabe a terceiros ficar dando pitaco.

#Aquenda: Ativismo não deve ser confundido com martírio. Não é porque uma pessoa se propõe a combater o racismo que ela é obrigada a fazer da própria vida um exemplo. Mais uma vez: endeusar pessoas negras não deixa de ser uma forma de nos desumanizar. Devemos nos permitir o direito de sermos incoerentes e falhos sem que isso vire argumento para nos desmoralizar. Será que o que você realmente queria não era um pretexto para desqualificar a/o irmã(o) ou uma licença para não priorizar afetivamente outras pessoas negras como gostaria de ser priorizado(a)?

“Afrocentrar é a solução”

Provavelmente não sou a melhor pessoa para comentar isso por simplesmente desacreditar em soluções mágicas. Apesar dessa constatação ser uma consequência lógica de várias das percepções acima, hesito em apoiar respostas únicas para toda uma coletividade tão plural quanto a nossa. Como disse anteriormente, meu primeiro e mais duradouro relacionamento foi com um branco. Nunca tive problema nenhum com ele sobre racismo e foi justamente por ter conseguido me abrir com ele logo no primeiro encontro que me interessei nele. Contudo, hoje tenho dúvidas demais para continuar nessa de procurar outro branco-exceção. Realmente acredito que dei sorte demais nesse namoro, mas depois que descobri a maravilha que é ter com que dividir experiências de racismo sem ter como retorno condescendência, não consigo mais me sujeitar a outra jornada pelo Desconstru-mon lendário. Até porque, já perdi tempo demais sendo invisível nos rolês. Ainda mais depois de ter começado a falar abertamente sobre racismo! É muito nítido pela reação de pessoas (brancas) próximas, como o meu silêncio é mais bem-vindo que minha franqueza e não estou a fim de voltar a ficar medindo palavras para não perturbar a fragilidade de ninguém.

Já parou pra contar quantos “felizes para sempre” formados por casais negros — hétero/ficcionais ou não — você conhece? Assim como a sociedade me levou a acreditar que havia algo de desviante na minha sexualidade, ela também me ensinou a rejeitar tudo que tivesse raízes em África, incluindo eu mesmo. Logo, amar outro corpo negro não tem como ser uma tarefa tranquilinha. Como poderia também?! Somos constantemente informados que homens negros estamos mais para atos de selvageria do que para demonstrações de carinho; que servimos mais para o trabalho e pro sexo do que fonte/objeto de afeição. No meio GGGay então… Afrocentrar requer ruptura com valores/verdades/tradições que nos chegaram prontos do “velho continente” e buscar refúgio em modos de se pensar/sentir/agir que foram tirados dos nossos ancestrais. Encontrar um afrodengo, portanto, seria mais uma trajeto possível que uma linha de chegada. Na minha caminha acabei somando com mais pessoas negras na mesma pegada de resgatar e reinserir sentidos africanos na minha vida. De vez em quando complica porque nem todo mundo entende que unidade não é o mesmo que uniformidade, mas melhora quando conseguimos nos aquilombar com mais pessoas dispostas a repensar as variadas formas de vivenciar a margem. No meu caso, ressignificar o ser além de um homem preto, bixa.

#Aquenda: Já parou para pensar que o romantismo nasceu na Europa na mesma época que nossos ancestrais estavam privados de liberdade? Já atentou pra como essa parada de “correr atrás de alguém, inalcançável, na esperança de que sua afeição nos redima da dureza do mundo” pode ter uma interpretação racista a vera? Entrar em relacionamentos intra-raciais nos obriga a imaginar “finais felizes” sem os protagonistas usuais: a desaprender que sexo não precisa ser o especial da casa; a lidar com alguém que terá suas próprias cicatrizes e tiques causados pelo racismo que podem tanto se parecer com as nossas quanto ser ainda mais profundas; além de outras tramoias bem pouco românticas. Por essas e outras que prefiro pensar no amor negro — afrocentrado ou não — como um desafio, até porque essa coisa de solução soa demais como salvação. E isso de “só um caminho presta” me remete mais aos binarismos individualizantes europeus — homem:mulher; preto:branco; hétero:homo etc. — do que a uma perspectiva centrada no comunitário.

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