Sobre o caminhar.

Renata Bastos
revistaokoto
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3 min readFeb 2, 2021

Pensar na importância da Capoeira em minha vida é uma tarefa traiçoeira. Ao mesmo tempo que a Capoeira move múltiplos aspectos da existência, ela é puro gesto. Então, escrever sobre, acaba reduzindo possibilidades e significados, é como querer segurar água com as mãos sem esperar que ela escape eventualmente.

Observo como os mais velhos, os mestres, se apropriam de recursos poéticos quando discorrem sobre seu ofício e isso faz cada vez mais sentido pra mim. Fazer poesia é colocar palavras onde não há definição exata, criar combinações inesperadas, é também um jogo.

A forma possível de traduzir o que os gestos da Capoeira representam pra mim (e o faço sem nenhuma pretensão de que funcione de maneira parecida para um outro) seria dizer que ela trata de honestidade consigo mesmo, de espontaneidade e atenção. Nunca uma atenção rígida de soldado em forma, mas sim consciência e domínio do próprio corpo que sabe seus limites, mas não deixa de buscar novos.

Vejo a Capoeira como fluxo. E o truque está bem aí. Quando você pensa sobre o fluxo ele já foi e te deixou vendido na roda. Jogar com o fluxo é foda. Estamos sempre buscando o máximo de controle das coisas, mesmo sabendo, por experiência, que o mínimo é o que vamos conseguir, a gente se esforça, reflete, estabelece contratos, tenta programar o futuro e quanto mais tenta, mais falha. Porque tentamos prever possibilidades, mas o rio não para de correr enquanto fazemos nossos planos. Então jogar com o fluxo é tentar estar sempre na menor fração de tempo antes de agora. Como quem caminha e descobre o caminho um milésimo de segundo antes do pé tocar o chão. E, claro, faz isso com beleza (é mandinga, é malícia!).

Sextô Ed. Nov/20 (acervo Òkòtó)

O aprendizado dos movimentos, dos golpes, dos toques, das músicas, são parte fundamental do processo de aproximação da Capoeira, sem isso não se vai a lugar nenhum. Mas não se trata somente disso.

Esse aprendizado seria o vocabulário e a gramática na vida do poeta. É importante ter repertório para manipular a matéria em que se deseja trabalhar. Mas o que movimenta a vida é a energia colocada nas coisas, não as coisas em si. Palavras são muito pouco sem as combinações entre elas, a relação cria o fluxo e o fluxo está na Roda, o fluxo é a Roda, o ritual.

As metáforas com linguagem e poesia se acabam por aqui, elas nunca vão ser o suficiente para explicar o que se mobiliza dentro deste ritual, mesmo porque ele não é solitário, como o de um escritor. Na Roda eu entendi o que é coletividade, comunidade e, fundamentalmente, axé. Entendi o que é estar entregue à “força que permite a realização da vida; que assegura a existência dinâmica; que possibilita os acontecimentos e transformações. Em resumo, é a energia que constitui e movimenta os seres e todo o Universo, além de ser a capacidade dos corpos e sistemas de realizar qualquer ação ou atuar sobre qualquer coisa ou pessoa”¹.

Acredito que aqui chego no máximo do que pude compreender do que é a Capoeira. Estar leve e atenta, presente. Abraçar a transformação.

A lição é espiritual. Axé!

1- Citação retirada do livro Ifá Lucumi: o resgate da Tradição. De Nei Lopes.

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