Todo compromisso é uma encruzilhada.

Fiu Carvalho
revistaokoto
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4 min readApr 9, 2021

Decidido a por fim nas confusões e a castigar a índole maliciosa de Exu, o rei decretou sua prisão.

A notícia correu o reino e até chegar em Ogun e Odé, dois dos irmãos mais velhos de Exú, que o aconselharam a deixar o reino para evitar a prisão. E assim Exu fez.

Com o tempo ninguém mais tinha notícias de Exu e as pessoas deixaram de lado as celebrações ao jovem orixá, continuando os festejos e louvações dos seus irmãos.

Na verdade Exu nunca se afastou muito do reino. Usando toda sorte de disfarces, ele sempre voltava nos dias de festas e rondava as portas dos velhos santuários, mas ninguém o reconhecia e ninguém lhe oferecia nenhum alimento.

Vingativo, passou então a causar confusão em tudo que é canto do reino. Um desassossego tamanho que o rei ordenou que todas as atividades religiosas fossem interrompidas até que descobrissem o que estava causando tanto tumulto.

Uma comitiva de babalorixás seguiu para consultar um babalaô que vivia as portas do reino. O babalaô jogou os búzios e foi Exu quem falou no jogo e lembrou a todos que deveria receber sua parte nos sacrifícios, cantigas e celebrações antes dos seus irmãos. O babalaô orientou então que oferecessem um bode e sete galos a Exu.

Os babalorixás riram muito e fizeram piadas da recomendação do babalaô. Mas, quando decidiram levantar-se para ir embora, perceberam que estavam grudados nos seus assentos.

Exu não ia deixar aquelas gargalhadas passarem batido, né!?

Só quando babalaô tocou o ombro de um por um eles puderam se levantar. O sábio então os aconselhou a fazer como ele, que o primeiro sacrifício fosse para acalmar Exú.

E assim é feito desde então.

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Dos itans que nos contam sobre Exu, muitos deles nos lembram de que ele deve ser alimentado, o sacrifício e a celebração devem ser dele, antes dos demais. Ainda assim, com a ausência do orixá, os babalorixás acabaram por não cumprir esse compromisso. Só voltando a seguir o combinado quando novamente quando Exu voltou a fazer suas exuzisses.

Assim como os babalorixás, nós estamos acostumados a só fazer algo se cobrados. Quando sabemos que há um custo ou até mesmo um benefício direto, ignorando que muitas vezes esse custo/benefício não recai sobre nós diretamente ou imediatamente.

Imagina um combinado em família em que cada um tem um papel ali nas tarefas da casa. Se quem tinha que cozinhar não cumpre o combinado, os outros ou ficam com fome ou tem que fazer a sua tarefa e mais a comida. Pode não dar problema nenhum pra quem deixou de cumprir o combinado, afinal tá tudo em família, mas pesa pra quem teve que fazer a mais e fica aquela má vontade braba pro lado de quem vacilou.

Em uma empresa, num ambiente de trabalho, o risco de algo assim acontecer diminuem muito e não é — só — porque as pessoas são profissionais e dedicadas, mas porque o custo ali naquele espaço é alto demais pra muitos. Gente sem compromisso não dura em emprego. E mesmo no caso dos autônomos, ser displicente com o que precisa ser feito é prejuízo.

Pensa em perspectiva mais ampla, como essa negligencia tem refletido no povo preto?

O tanto gente ai se dizendo ativista do movimento negro, mas que o “Nós por Nós” só funciona quando é pra chamar atenção de branc’o, conseguir aquele engajamento bacana na rede social ou cavar uma cadeira em alguma comissão de diversidade racial pra limpar a imagem de alguém ou alguma empresa.

Gente que se diz compromissada com o povo preto, mas colocam o benefício pessoal a frente do coletivo. Só fazem algo se tiver envolvimento de branc’o, quando a gente sabe que o branc’o só se interessa por algo se não confrontar seus interessem. Que nós por nós é esse?

Isso tudo não é coisa de quem batendo cabeça, perdido, é por escolha mesmo. Do combinado em casa, passando pelo profissionalismo no trabalho, chegando até o compromisso com a nossa gente, tudo é escolha e ai a gente volta pra Exu.

Ilustração: Izaias Oliveira

“Ninguém pode passar na encruzilhada sem pagar alguma coisa a Exu”

Todo compromisso é uma encruzilhada. Não dá pra achar que só porque não estamos sendo cobrados não há custos. A escolha é entre ser responsável com o compromisso — um custo até pequeno se parar pra pensar — ou assumir as consequências, sejam elas quais forem. É pagar agora pra não pagar mais tarde. Porque quanto mais à gente enrola, maior a conta fica.

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