Um bonito jumento, uma preta nagô e uma mãe sem nome

Miguel Maribondo
revistaokoto
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4 min readFeb 26, 2018
Ilustração: Izaias Oliveira

A mulher sem nome.

Santo Amaro.

Santa Cruz.

Ela era uma peça e não era uma peça.

Ela tinha proprietário e não tinha proprietário.

Ela era mãe e não era mãe.

Era gente e não era gente.

Certamente os seus filhos a chamavam pelo nome. Qual seria? Ela tinha um nome e não tinha nome. Como ela chamava a seus filhos?

Vivia como se fosse alforriada há mais de 25 anos e nesse período teve cinco filhos.

Parece que sonhou jamais voltar a ser propriedade de alguém. Parece que sonhou não submeter suas crias à escravidão.

Um jornalista baiano se referiu a ela como “preta”, “mulher”, “mãe”, “forra”, “ela”.

Os historiadores a chamam de “escrava”, “preta”, “forra”, “peça”, “mulher”, “ela”.

Pelas investigações e escritos do delegado de polícia, “ela” trabalhava e vivia sob a proteção de um fazendeiro. Mas este morreu. O antigo proprietário não se esqueceu dela. Acionou a polícia para reaver sua propriedade desgarrada. E a “preta” valia muito, pois retornaria com cinco filhos. Por volta de 1860 o tráfico interprovincial de escravizados estava em alta. Seria bom negócio vender os filhos desta “preta” que se achava dona de seus próprios passos e de seus filhos.

Se retornassem para a senzala do antigo senhor, provavelmente os filhos dela seriam anunciados assim: Jornal Correio Mercantil, 14–04–1841,

“Quem quiser comprar um bonito jumento, e uma preta nagô, moça e parideira, ja foi do trabalho de enchada, e sem vício nenhum, procure no aljube, c — 29, que achará com quem tractar.”

Jornal Correio Mercantil, 25–05–1841:

“Vende-se uma negra de nação gége, que terá de idade 18 annos, com uma filha de três, tem o préstimo de lavar, e vender/ e vende-se um moleque nagô, que terá de idade 15 annos mais ou menos; quem pretender procure na rua d’Ajuda, (…); e tambem se dirá quem vende 4 sendeiros de sella, gordos, e 13 rezes crioulas, entre vaccas, vitellas, e bizerros.”

Jornal Correio Mercantil, 23–04–1841:

“Joaquim da Silva Rocha, ainda tem uma porção de dúzias de taboas de pinho da Suecia, de differentes grossuras e até 30 palmos de comprido, e vende pelo menor preço que he possivel… O mesmo vende um moleque africano quem precisar de algum destes objetos procure o annunciante por baixo do Henrique Marcineiro, ou na loja do mesmo.”

Ela e os cinco filhos são capturados pela polícia e trancafiados na cadeia. Um juiz determina, tempos depois, que sejam soltos.

Ela foge para outro engenho.

O senhor a persegue.

Irrefreavelmente o cativeiro se aproxima como o nascer do sol.

Ela decide se tornar incapturável.

Em 27–06–1862 o jornal Diário da Bahia descreve o ocorrido em Santo Amaro:

“Recebemos do Libador de St° Amaro de 21 do corrente.

Lê-se nesta folha: Que barbaridade! em um desses últimos dias apareceram em um tanque do engenho Preguiça, propriedade do sr. Comendador Paranhos seis cadáveres, cinco dos quais se achavam amarrados. Referem-nos que eram mãe e filhos, e contam-nos o fato pela maneira seguinte: essa preta homiziara-se no engenho Brejo, quando propriedade do capitão José Francisco de Pinho, aí passando sempre por forra, tivera esses filhos. Agora, porém, chegando ao seu conhecimento, que o senhor fora sabedor de acharse (sic) ela ali, e que de certo a viria buscar, não querendo mais sujeitar-se ao cativeiro, manietara os filhos e os lançara a afogar no tanque, e depois se atirara também. Acrescentam que a preta tivera cúmplice no seu horrível atentado, visto como os filhos já tinham idade e forças para resistir a esse ato contra suas existências. A polícia tendo notícia de semelhante acontecimento, para lá seguiu a proceder a corpo de delito, cujo resultado ainda ignoramos!”

Os engenhos têm nome: Brejo e Preguiça.

Os proprietários de engenho têm nome: Sr. Comendador Paranhos, e capitão José Francisco de Pinho.

O delegado tem nome e sobrenome: Luiz Rocha Neves.

O historiador e a historiadora que pesquisaram os arquivos empoeirados têm nome: Jackson Ferreira e Isabel Ferreira Cristina dos Reis.

Não sabemos o nome dela, da mãe de Santo Amaro. Mas fica a imagem dela amarrando os filhos, um a um, todos bem apertados. Nenhuma força seria capaz de separá-los. Ela os lança no lençol d’água. Os seus antepassados vieram exilados sobre a água, pela água ela vai embora. Todos já estão na água, ela se atira em direção aos filhos. Jamais serão vendidos entre jumentos, tábuas e vacas.

Ao racismo colonial que reduzia mãe e filhos à condição de objeto e de animal, ela responde com um gesto demasiadamente humano, atitude que jamais um jumento, uma vaca ou uma tábua sueca poderiam fazer: politizar a própria morte.

Por conta do avançado estado de composição — esta foi a justificativa oficial — foram enterrados todos na beirada da lagoa onde morreram.

Não se sabe o nome dela nem de seus filhos.

No ano 2000, o cemitério de Santa Cruz, localizado na zona oste da cidade do Rio, possuía 28.000 covas de um metro de profundidade por dois de comprimento. Todas reservadas para indi-gentes.

pintura do artista nigeriano Oresegun Olumide

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