Um Corpo Fora do Eixo

Dessalín Òkòtó
revistaokoto
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6 min readFeb 2, 2021

A capoeira tem me ensinado muita coisa! É cada lombra que uns treinos dão! Um dos mais importantes deles têm sido aprender a jogar com meu corpo. A parada parece óbvia, mas não é não.

Papo que desde que eu entrei Táíwò vive repetindo: a gente precisa lembrar que quem é negro é criado pra viver como um não-negro. Na capoeira, do treino até a roda, você vê essa desconexão explodir na nossa cara quando a gente vê nitidamente a pessoa jogando como se o corpo dela tivesse uma dimensão e disposição física completamente diferente da real. E eu vou me lembrando de vários outros rolês, tipo o circo, a dança e o teatro, e nesses lugares era a mesma coisa. Tinha esse lance de querer fazer "que nem" fulano, como uma referência. Mas tinha muito de desconexão entre o corpo dela e o daquele que ela se esmerava. Até porque, fazer "que nem" não é o mesmo que fazer "o que" fulano tá faz.

No meu caso, tem essa relação entre o meu corpo e corpos bem mais compridos como os do Táíwò, do Ângelo e do Lisimba, por exemplo. A perna deles é comprida, a minha é curta. O passo deles facilita eles entrarem e saírem de qualquer jogo entrelaçado. Mas o mais importante, qualquer movimento que eles façam, mesmo que recolham e encurtem as pernas e braços, eles conseguem alcançar/acertar quem joga com eles. Já corpos mais compactos (como a Argolo chamou o meu outro dia) tipo o meu, da Magrinha, e Balogum, por exemplo, a gente precisa entrar no corpo do outro para alcançá-lo. A perna tem que dobrar, às vezes triplicar o esticamento, a lonjura do movimento pra fazer ela encaixar. Da meia-lua ao rabo de arraia, cada centímetro de perna vale ouro.

Lá em São Paulo eu venho investigando nos treinos formas de aumentar a extensão do raio da pernada com o corpo que eu tenho. Aí fui observando o meu e da galera que tem um corpo com dimensões parecidas com as do meu. E a parada que fui experimentando com a orientação de colar o tronco na perna e depois fui observando neles é que quanto mais os movimentos tinham sua base no eixo, mais expandidos ficavam seu raio de ação.

Você pega aí o rabo de arraia, onde isso fica mais evidente. A gente tende a se preocupar mais com a perna que faz o compasso do que com o tronco e a posição das mãos. Aí a gente vai lá e até faz o giro com a perna esticada, o calcanhar inclinado e olhando por debaixo da perna de base. Mas as mãos que estão realizando o apoio estão lonjão da perna de base. O peito está quase que perpendicular ao chão de tão afastado da perna de base e o corpo, se paralisadas no meio do movimento, estaria fazendo um triângulo. O eixo do corpo está compartilhado entre a perna de base e as mãos que coordenam o movimento.

Se você trouxer as mãos e o peito para junto da perna de base enquanto realiza o giro, o peso fica totalmente sobre esta perna e tu realiza o giro com mais precisão e leveza. Isso sempre foi papo dado pelo Táíwò, também, para dar mais segurança ao golpe. Junto disso, como efeito colateral, você ganha raio de expansão pois à medida que o tronco avança sobre a perna de base, você leva a perna que está esticada adiante.

A mesma parada acontece no martelo, na chapa, na meia lua e armada. E este mesmo princípio serve a movimentos menos expansivos como rolê e auzinho. Quanto mais ao centro a base de apoio, maior controle, leveza e precisão sobre o movimento. No caso do auzinho, as coisas ficam mais fáceis ainda se aliadas a um abdômen fortalecido que vai permitir voltar o movimento do meio dele ou retardar o pouso do outro lado. Isso eu fui treinando para evitar uma rasteira safada que o Táíwò me deu quando eu fui terminar o aú do outro lado. E por isso também vivo pegando no pé da galera aqui em Niterói para não fazer o au com tudo. Mas ouvem? Hahaha!!!

O deslocamento do eixo e desequilíbrio não são duas coisas necessariamente associadas. Você até consegue jogar desequilibrado em seu eixo, embora jamais vai conseguir jogar equilibrado e fora do próprio eixo. O equilíbrio não existe sem o eixo, pois ele tem a ver com a compensação que você realiza de um movimento prum lado após ter feito um movimento pro outro. Pende pra um lado, pende de volta para outro. Pende para o outro, pende de volta para um. Não precisa ir da maneira que veio, não precisa voltar da maneira que foi. E por isso a ginga, o balanço e o jogo de capoeira se estruturam no equilíbrio dinâmico que, aos olhos do equilíbrio estático, parece um desequilíbrio.

Já o eixo depende da distribuição de massa que você faz no corpo, sendo isso o que vai determinar qual o centro de gravidade e grau de estabilidade do suporte desse corpo na superfície. Quando em pé, nosso centro de gravidade tende a estar na parte inferior do abdômen. Mas, se a gente agachar ou se sentar, a gente joga o centro de gravidade lá para o sacro. Mesmo em pé, se seus pés estão juntinhos, você está mais vulnerável a um desequilíbrio do que se estiver com eles espaçados. Isso é porque você aumentou a área de base de sustentação na superfície, além de ter descido seu centro de gravidade. Mas o eixo não se mantém no desequilíbrio porque ele é o resultado da relação entre a base de sustentação e o centro de gravidade do corpo. Ele parte do estático para o dinâmico, e não do dinâmico para o estático. Por isso não dá pra jogar equilibrado sem eixo, mas desequilibrado dá.

Entender essas paradas me fala muito da nossa vida. Pois alguém que pretende fazer mudanças com o corpo fora do eixo vai fazer essas mudanças de maneira abrupta, descoordenada e muito vulnerável a qualquer imprevisto. Se estou com o eixo deslocado, faço um rabo de arraia e meu parceiro de jogo me puxa uma rasteira e eu não tenho base para transferir meu peso da perna para as mãos tirando a perna de base do raio da pernada, eu caio. Agora, se eu estou com meu eixo sobre a perna de base, essa transferência acontece ligeira, leve e coordenada. Dali fica fácil até armar e fazer um contragolpe. A mesma coisa com relação a troca de base para rolê. Se minhas mãos estão distantes do corpo, meu tronco está erguido ou até inclinado para trás e as pernas mal esticada e dobrada, qualquer deslocamento para rolê, negativa, rabo de arraia, martelo ou au ficará prejudicada. E base de rolê é base para tudo na capoeira.

Como eu tinha falado ali em cima, o eixo também aumenta a expansão assim como Exu Òkòtó que foi espalhando terra no mundo girando em torno de um pé só. Seja a expansão a partir de uma base estreita, como são o caso da meia-lua ou armada, seja a expansão a partir de uma base larga como o rabo de arraia ou aú. O eixo é fundamental para essa expansão, seja ela equilibrada ou desequilibrada. O alcance da perna que você quer dar à meia-lua dá a medida da inclinação do tronco para trás. Uma meia-lua com o tronco colado ao centro do corpo fica atrofiada. O mesmo para benção e armada. Mas nos movimentos de chão isso é ao contrário. O alcance da perna que você quer dar ao rabo de arraia, martelo ou chapa dá a medida do quanto o seu tronco deve estar junto ao eixo do corpo.

Assim como a gente sabe na física, as leis que governam macrocosmo são em geral invertidas no microcosmo. Assim como a gente sabe na economia, as normas de gestão na macroeconomia funcionam de maneira completamente diferente na microeconomia. Assim como a gente sabe na política, as formas de governo globais não se aplicam da mesma maneira nas locais. Assim como a gente sabe na espiritualidade, o ebó para grandes cultos obedece a outros procedimentos em relação aos feitos para assuntos pessoais.

Mas entender que o alto expande para expandir enquanto o baixo contrai para expandir é conhecimento. Saber quando é para expandir e quando é para contrair, isso é sabedoria.

A capoeira tem me colocado nos eixos. No eixo aéreo ou terreno. No eixo estático e no dinâmico. No eixo que contrai para explodir. No eixo que se espalha para expandir mais ainda. A capoeira também tem me desequilibrado à beça. Ela tem me feito bailar bêbado à beira do precipício só pra rir na cara do perigo enquanto eu reorganizo toda a minha estrutura de pessoa. Estrutura de negro. Estrutura de africano.

João Grande e João Pequeno (fonte: Pinterest)

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Dessalín Òkòtó
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Querendo ser educador para melhorar minha comunidade, sentei para aprender e agora levanto para também ensinar.