Vício

Kandimba Onirê Kumola Yakô Òkòtó
revistaokoto
Published in
7 min readJun 24, 2022

(Só mais hoje…)

O histórico de vícios do povo preto é preocupante. Homens pretos, inteligentes pra caralho, fortes e confiantes, o vício sempre foi nossa bengala pra não nos sentirmos menores nesse mundo que quer nos matar. Alcoolismo, cigarro, jogo, nossa história desde a falsa abolição. Nosss falsa liberdade sempre nos leva a afundarmos esses vícios. E até hoje eles nos perseguem e nos limitam. Todo dia é só mais hoje, e só mais hoje eu sigo errado todo dia.

Ilustração: Diego Alberto

O vício tem um detalhe que é foda. Você sempre acredita que não vai acontecer com você. Que você tá brincando, que não tem consequência. Essa é a pior merda do vício. O viciado sempre tem uma desculpa pra se drogar. Sempre está no controle até perder o controle. Aquele papo que pra parar, o primeiro passo é assumir. E só assumir também serve de nada. Assumir o vício e seguir viciado é um passo em falso.

Mas esse papo é sobre nosso vício em branco. A droga é uma dessas faces. A academia, a esquerda, o feminismo, a vida de mirar na classe média, no bairro e no emprego de branco, são vícios. Eu to fazendo isso porque agora é bom, é fácil, mascara muito problema. Logo vira abstinência. O imediatismo vira problema a longo prazo. O agora vira dia a dia. O só hoje vira todo dia. Porra quero parar mas to na merda, to caçado, da abstinência pelo menos eu saio. Do problema de todo dia agora eu saio. Esqueço os problemas rapidinho com um papo zuado, um cargo branco, um proceder cristão, amizades brancas, máscaras, mentiras, um cigarro e uma cerveja. É só hoje, mas quando o prazer passar, quando os problemas voltarem, eu faço de novo. Ciclo eterno, VICIOSO que chama né?

Ai chega o amanhã. E tudo que se plantou ta na sua frente fazendo floresta na sua vida. Você sem espaço com os galhos desse matagal. Plantar demanda cuidado e tempo, mas se planta árvore ruim que te atrapalha, trepadeira parasita, cortar demora muito e cobra muito braço tbm. Deixar o lote sem capinar também é cultivar grama e erva daninha. Cortar seus vícios em branco é mais difícil que sair da droga até. Só ver o tanto de drogado reabilitado e o tanto de preto negresco sem nem noção que ta viciado em branco… o alcoólatra colhe o que planta com força. O noiado sofre pra carai e nem sente por causa da droga, ta doidão demais pra ver. O negresco nem sofre mais de ser capitão do mato, quem sofre é a margem que não tem o embranquecimento dele. Quem sofre é quem leva a bala por que não estudou, não se enquadrou, se fosse igual o negresco tava mais protegido. E nem muito não. Olha Mariele.

Uma coisa a vida me ensinou com tapa na cara, com vivência, aquele preto da rua com vício em droga muitas vezes, ou quase todas as vezes, tem mais caráter que o pretinho da casa que tá viciado em branco. O maluco sujo e maltrapilho da rua tem mais pra somar que o playboy engomado. Os malucos de rua fazem o corre, conseguem grana, comida, são autônomos. Tem dia que ele faz nada de grana, passa necessidade. Tem dia que ele racha tbm. Lá em Brasília tem maluco de rua que vende desenho, faz caricatura, faz malabarismo, tinha até um mano que dançava break no semáforo (finado Buiu, descanse em paz). Rachavam o do dia rapidão. Comida, bebida, cigarro e droga. Selado. O maluco noiado faz coisa que o playboy não faz, faz arte foda que os artistas playboys não fazem, e principalmente, na autonomia, na necessidade. Até o que rouba e mata na noia. Até os que não fazem arte. Faz barraco, mangueia, vigia carro, carrega coisa pras lojas, cata latinha e papelão, rouba se precisar, mata se precisar, ele se vira. Parado só pra noiar depois do corre. É a âncora. Mas a âncora sobe pra correnteza do vício e da vida se manter. Em movimento eles são fodas demais.

Os negrescos são os covardes. Os noiados tão matando pelo motivo errado, mas vacila na frente dele pra ver. É Exu 24hs por dia. Ele melhora se quiser, ele não quer, ele quer a noia. Ele tem escolha e o sistema não é o que ele quer. Ele tem tanta informação na cabeça que prefere noiar e esquecer que viver alienado igual os negresco po. Não to negando que muita gente tá na rua por falta de opção. Mas é a falta de opção que faz as pessoas se moverem. É o fundo do poço que faz a escalada ter sentido. É o role de boa parte dos maluco, os cara foda, faz coisa que os boy não faz, podia trabalhar tranquilo, e tá na rua. É falta de espaço pra seguir seu Ori no sistema que cria tanto dependente químico na margem do sistema. Pra além da economia, é um massacre espiritual. É um plano de extermínio lento. A droga tá disponível pra ocupar a mente de quem não pode seguir seu Ori em paz, pra acelerar o processo de morte de quem não se enquadrou. Encontra a si mesmo na lombra.

Mas o vício em branco mata muito mais que a droga hoje em dia. Os dois dizem “eu não to arrumando problema” e se matam, e prejudicam os outros. Mas o noiado prejudica seus arredores, seu corpo, sua família, o negresco do sistema prejudica todos os pretos da margem, a maioria. A droga pro sistema é exterminar preto no individual, o vício em branco é recrutar meia dúzia pra matar meio milhão sem dó e com motivo. Negresco morre pouco. Negresco não morre pra margem morrer por não ser negresca. E se apontar o vício em branco, ele diz “eu não. Eu não sou viciado”. O da rua ainda grita que é noiado mesmo e se achar ruim ele leva teu celular pra noiar mais. O negresco é o exemplo. Se os pretos fossem tudo negresco, não morriam. É mentira esse papo, mas é o papo do sistema. Estuda, trabalha, fica quieto e se enbranquece, que se a bala cantar no seu couro preto foi confundido e vira mais um na lista dos nomes de mortos nas manifestações da esquerda. Se for autônomo, morre anônimo e ouvindo “bem feito”.

Quando eu tava quase 100% autônomo na rua, trabalhando pra mim, eu nem lembrava do vício. Eu bebia socialmente, fumava pouco. Eu tenho casa, família, e meu auge foi na autonomia, no mangueio, na rua. Foi minha época menos depressiva, menos doente. Voltei a trabalhar pra branco, recaí na bebida e no cigarro com força. Depressão pesada. Porque onde eu sou jurado de morte, eu sou o primeiro a me matar pra não morrer na frente deles. Eu me mato no vício pra aguentar eles querendo me matar. Pra esquecer o alvo na testa. Num vai me matar se eu tiver me matando primeiro. Não é maior que eu se eu for melhor em me matar que ele. Esqueço da realidade pra viver essa mentira branca.

E é sempre só mais hoje, só mais esse ano, só até estabilizar. O vício em branco tá me matando mais que a bebida e o cigarro. Eu me mato com vício pra dizer pra mim mesmo que essa morte obrigada de servir o branco é o menor problema, eu tenho mais poder que eles. E se o poder deles é me matar, eu mesmo me mato antes mais rápido sem sofrer tanto, alienado, quando eles vem com a arma eu já to com o peito furado. Eu esqueço que querem me matar e me torno meu maior risco. Eles são coisa pouca. O problema sou eu. Mas só sou problema pra mim mesmo.

Autonomia econômica e cultural é o único remédio pra vida do povo preto. A gente tem que ser problema pra eles e solução pro nosso povo. E pra isso tem que lembrar todo dia do alvo na testa. Não pode se alienar nem na droga nem na negresquisse, nem servindo o sistema. O alvo é a resposta. A dor e a perseguição são a raiz da melhora. Num é pra esquecer. É pra resolver. É o que você precisa driblar. E saber o caminho a seguir pra tirar esse alvo da testa. Só sair de perto dos brancos. Autonomia. Nacionalismo. Exu. Plantar nação pra colher um lugar sem alvo na testa. Se não plantou, não merece ter. Se não cultivou sombra, não pode reclamar do Sol. Tem que plantar antes de reclamar e cuidar pra crescer antes de reclamar.

Autonomia é a vida. Autonomia é honrar os ancestrais que o sistema matou, que não tinham nada do branco além de medo por serem escravizados, estuprados, espancados e mortos. Autonomia é honrar os ancestrais que se jogavam dos navios negreiros pra renascer no continente mãe. Quer me matar por dentro com a escravidão? Olha o problema aqui mané. Eu me mato antes. Autonomia é difícil. Vai ter altos e baixos, vai retroceder várias vezes antes do corre virar, vai doer e vai sangrar, vai ser tratado como louco, mais que antes. Vai ser o problema do sistema sempre. O maluco. É amargo. É remédio. Tem abstinência tbm, mas não é vício. É ritual. É o único remédio pro vício em branco. É a luta contra a morte em vida. É a única saída pra vida.

Abrir o peito pra quem quer te matar porque ja sabe que tá na mira da bala é mais vida que viver escondido se alienando com o salário do sistema que quer te matar. Bater de frente e arriscar a vida é mais vida que viver se matando com comida podre, sedentarismo, matando seu Ori com programa de branco, rede social e TV de branco, embranquecido, alienado, e ainda criticando os viciados em droga. Você é viciado. O noia pelo menos sabe que precisa parar. Ele tem caminho pra seguir, mesmo que leve a morte, ele vive de peito aberto pra morte por que é essa coragem que nos mantém vivos. A autonomia é viver do lado da morte e dizer “Você não me assusta mais”. O negresco é o preto que eles dizem “se os da favela e da rua fossem assim, não morriam”. Se Malcolm X, Lumumba, Sankara, Tupac, Garvey e Zumbi fossem negrescos, não morriam… O negresco causa mais morte de preto que a droga e a autonomia. E é melhor morrer pela autonomia que viver morto dependendo deles… A real é que é melhor viver noiado na rua que viver enquadrado no sistema deles. Pro povo preto, causa menos estrago. Soma mais. O viciado em droga é menos perigoso pro povo preto que o negresco.

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