Cê já teve um sonho?

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12 min readJun 13, 2018

Um dos maiores incentivadores da cultura Hip Hop, Hélio Cavalckanti, promove festas, festivais, flashmob, showcases, envolvendo arte e cultura do gênero no Brasil

O hip-hop causa uma explosão de sentimentos nas pessoas que vivem o movimento. Em entrevista com Hélio Cavalckanti, ele nos conta como é fazer parte desse estilo, como foi seu primeiro contato com o gênero e como surgiu o projeto social do qual é líder “Hip-hop que vem de dentro”, além de falar da importância das pessoas. O carioca deslanchou do palco das ruas diretamente para o palco da vida e do mundo, fazendo parte da maior Companhia Francesa de dança contemporânea com o hip hop. Hélio já viajou por mais de 35 países e seu projeto é destinado à realização de atividades que envolvam a arte através da dança e da música. Ele nos conta os planos para esses 10 anos do “Hip hop que vem de dentro” e o que essa data representa para o cenário e para ele.

Entrevista

SENSA: Qual foi o primeiro contato que você teve com o mundo do Hip Hop?

Hélio Cavalckanti: Diferente de muita gente, que primeiro vê pela TV, eu não vi. O meu primeiro contato foi na época da escola, observando os meninos treinando na rua e eu quis aprender. Esse pessoal da escola também era o mesmo pessoal que frequentava as matinês que tinham na época. Existia uma roda e a galera ficava dançando break, fazendo movimentos de impacto e isso me chamou atenção. E eu nem sabia o que era de fato o hip hop, só as músicas, mas não sabia qual era aquela dança e nem o que eles estavam fazendo. Para mim era tudo hip hop.

S: Quais as pessoas que mais te influenciam ou que te inspiram?

H. C.: Tem muitos nomes, mas vou simplificar explicando que o pessoal da old school, e principalmente do Rio, são grandes referências para mim. É uma galera que veio antes e me ensinou muita coisa. A gente vê gringos muito bons no youtube e eu acho as formas diferentes de dançar muito maneiras, mas fui vendo que quem importa é quem está aqui, do seu lado. E essas pessoas das antigas são do mesmo nível desses gringos e comecei a me basear neles. Minhas referências são: B-boy Pitt, Filipi Ursão.

S: O que o hip hop mudou na sua vida?

H. C.: O hip-hop mudou minha vida completamente! Eu sou Analista de sistemas, mas eu sempre gostei de dançar! Por exemplo, eu vim do samba. Mas seja samba, hip hop, funk, o que for, eu gosto de dançar, gosto de arte. Porém, eu descobri a cultura hip hop e ela me ensinou valores que vão muito além da dança. No meu caso, por exemplo, a minha família não aceitava muito a dança. O pensamento que eles tinham era “Investimos na sua educação para você virar um médico, um advogado, virar alguma coisa que vai dar dinheiro e ter retorno desse investimento” e a arte no Brasil, como vocês sabem, é vista como algo ruim e sem valor. Eu trabalho na França e não tem comparação. Por conta disso, meus pais tinham medo de que eu fosse para a arte e morresse de fome, sendo bem sincero. Mas eu continuei na dança e a cultura hip-hop foi me ensinando que mesmo nas inúmeras vezes que fiquei muito chateado, não adiantava ficar dando “murro em ponta de faca”. Eles não gostavam, mas na minha primeira conquista eu resolvi não jogar na cara deles que eu consegui e que não precisava dos meus pais. O Hip Hop me ensinou a importância da família e cada conquista fez com que eles se aproximassem mais de mim. Fui produzindo e mostrando a eles o que eu conseguia fazer, criei um projeto, criei uma aula beneficente entre outras coisas e eles não falaram nada, mas quando fui pro Rock in Rio, Rio H2K viram que o negócio era sério e quando eu finalmente passei para Compagnie Käfig, que é onde eu trabalho, ao invés de ficarem contra, eles começaram a me apoiar. Então se eu não tivesse aprendido esses valores com o hip-hop e o pessoal da antiga, dar valor à família, à união, eu não os teria comigo nesse momento. Hoje eles são fãs de carteirinha, apoiam, participam e isso foi uma das coisas que mudou a minha vida.

S: Você acha que esse é um movimento fechado?

H. C.: Pelo contrário, o hip hop é um movimento que agrega. Costumo dizer o que me disseram uma vez: se você botar o hip hop no samba, ele deixa de ser samba, mas se você colocar o samba no hip hop, continua hip hop. O hip hop agrega culturas que não são do hip hop: Cultura do house music, vogue, dance hall. Tem muitas danças e movimentos culturais que o hip hop abraçou como o rap, a dança, o grafite e o DJ. Eles agregam tudo e daqui a pouco será a vez do funk. É um movimento muito aberto.

S: Qual sua visão desse mundo do hip-hop? Como você acha que a sociedade enxerga você e o seu grupo?

H. C.: No Brasil, no Rio de Janeiro, dançar é coisa de vagabundo. Então quando perguntam para mim “Qual é sua profissão?”, “Eu sou artista, eu danço”, “Não, mas o que você faz?” Para eles a dança é hobby, e é hobby também, mas para mim é profissão, é a minha vida, eu vivo disso. E aqui ainda não tem essa valorização! Porque a sociedade acha que não é possível viver com algo que seja divertido, que é necessário se matar no trabalho para ganhar dinheiro, como se eu não pudesse fazer o que eu gosto ganhando tanto quanto. A sociedade, principalmente aqui no Brasil, é criada para pensar que temos que trabalhar para ganhar dinheiro e lá fora não é assim, trabalha-se para ganhar qualidade vida. Você ganha pouco, mas vive muito mais e muito melhor do que aqui. Eu costumo falar sobre esses dois mundos porque eu morei lá fora, estou aqui por enquanto e realmente a sociedade aqui vê como um hobbyzinho qualquer, uma perca de tempo. As pessoas pronunciam frases como: “Isso não vai te dar futuro” ou “Quando você tiver 40 anos, você não vai dançar mais”. Eu sou maluco, não sou burro. Eu posso não dançar, mas posso abrir uma academia, criar outro projeto social, criar um festival, posso ganhar de outros jeitos dentro da dança, dentro da arte.

S: Você acha que o hip hop no geral está em um bom momento?

H. C.: Sim e não. Não porque, no Rio de Janeiro, que é o nosso cenário de convívio, o hip-hop está morrendo. Eu sei que a cultura do rap cresce muito, mas a cultura da dança, que é o meu foco, não desperta interesse nas novas gerações. Não há mais crianças que olhem a dança e falem “aquilo ali é maneiro, eu quero aprender”, o que eu vejo acontecer com o funk, por exemplo. Nós somos do Rio de Janeiro, então o que mais vemos são os “molequinhos” dançando passinho pra caramba e isso é o que deveria estar acontecendo no hip-hop, deveria existir uma nova geração para continuar a minha vertente. Eu conheço todos os treinos do Rio de Janeiro e devo dizer, tem criança sim dançando, mas são 5 ou 4 e são em pontos muito isolados, o que já é muito. Então, o hip-hop, para mim, sem a nova geração vai morrer. Nós vamos ser engolidos pelo funk e pelo samba. Já somos, né? O hip-hop já teve a sua era, eu sou nova geração, mas depois de mim não tem mais ninguém. É por isso que digo que vivemos uma péssima fase. Em contrapartida, o hip-hop ganhou força. Todo mundo que vê o hip-hop fica fascinado. Se não fosse assim, Anitta não copiava Beyoncé, a Tv não colocava os B-boys pra fazer movimentos espetaculares pra chamar atenção em um comercial, um mortal, um flare. O Rock in Rio não teria aberto portas para a cultura hip hop. A cultura hip hop tem uma energia que une e que também chama muita atenção. Há muito calor humano e a galera gosta disso quando vê. Antigamente não tinha essa abertura porque o Hip Hop era muito taxado como sendo do gueto, só bandido faz isso, só quem era mau elemento, tinham uma visão errada. Hoje em dia você vê em novelas, em filmes. Como exemplo no filme StepUp (Anne Fletcher, 2006), temos dançarinos de verdade, eu conheço a maioria daqueles caras, não são atores. O Hip Hop cresceu bastante e saiu realmente do gueto, está nas academias, nas ruas, está em todo o lugar. Isso para mim é uma fase boa, está crescendo.

S: Quando seu trabalho começou a ser reconhecido?

H. C.: Em 2011, foi quando eu passei a ser reconhecido como profissional, mesmo sendo nível 1. Eu entrei em uma companhia de rua de hip-hop avançado (Cia D’Fora). Quando você entra em uma companhia assim, mais avançada, você começa a entrar em outra fase da dança porque geralmente quem está no avançado é a galera que quer alguma coisa, então começam a te enxergar como profissional no meio da dança. Com a participação em competições de grupos, eu comecei a ser mais visto, comecei a ganhar destaque, começaram a me ver. E em 2013, foi quando eu passei para o trabalho mais renomado da minha vida, que foi a Companhia Francesa, e foi tudo de uma vez só, comecei a passar em tudo, na Deborah Colker, depois o Rock in Rio e depois foi a companhia de dança contemporânea de hip -hop francesa, o núcleo é Brasileiro, mas a companhia é francesa.

S.: O rock in rio é um festival de renome, como foi sua participação no Street dance?

H. C.: A minha participação no palco Street dance foi representando o break. Já nas audições eu me destacava dos outros b-boys por dançar não só o break, mas também o pop, o locking, eu fazia de tudo. Durante o evento tiveram muitas coreografias que não faziam parte do estilo hip-hop, como summer hits, trance, house, rock, metal e a gente tinha que unir todos os estilos, e isso foi um dos requisitos para participar do palco, ter a habilidade de reproduzir outras coreografias além de ser b-boy. Representar o break que é a essência de onde eu vim no Rock in Rio foi muito importante, pois eu pude conhecer outros profissionais e fazer amizades. E a sensação de ver umas 10 mil pessoas parando para te assistir, você que era do gueto, agora indo para o mundo, é sensacional. Era uma outra energia. Eu sentia todo o peso de representar algo muito importante, o pessoal do break, os meus amigos que muitas vezes não têm oportunidades. Havia muita gente, muitas opiniões diferentes. A galera podia não gostar e vaiar e não sei como eu lidaria com isso, normalmente acho que eu não iria me importar. Mas eu me diverti muito. Foi uma experiência inesquecível.

S: Qual foi sua melhor experiência?

H. C.: Foi a Companhia Francesa. Eu sempre acreditei, mas não sabia que ia ser tão rápido, que era mesmo possível. Sabe quando você acredita em um sonho, que nem sabe quando ele vai chegar? Foi a Käfig para mim. Eu dançava no chão da Lapa, sozinho, treinando o break, eu não conhecia nada e do nada estou dançando no teatro municipal da França, viajando, conhecendo outros países, linguagens, culturas e outros jeitos de se dançar por conta daquela dança que eu fazia sozinho, na rua com a mão no chão. Eu nunca ia acreditar que a dança ia me levar tão longe. E essa companhia hoje é a mais reconhecida na Europa e na França, que é o berço da Arte. Então eu vi, vivi e ainda vivo da arte e não vai ter nenhuma experiência dentro da arte que vai superar essa. Posso dizer que quando você sai do país, para representar ele lá fora, você começa a viajar, conhecer e trocar experiências, aprende a absorver, volta com um tipo de visão que aqui seria impossível, uma evolução psicológica mental, da dança e de tudo. Eu já fui para 35 países, imagina? A sacada genial foi juntar o clássico com o sujo. Agora eu faço espetáculo de dança no teatro municipal do Rio de Janeiro, que é um lugar que normalmente só aceita ópera,companhia de balé… Seria muito difícil o hip hop entrar nesse espaço e o RIOH2K conseguiu isso pela primeira vez. Eu nunca imaginei que isso seria possível. Viajei 10 anos da minha vida pelo mundo e o Brasil nunca comprou a minha peça. Eu precisei dançar 10 anos em uma companhia internacional, para depois dançar no meu país. Deveria ser o inverso, mas é a realidade. E graças a Deus que foi o RIOH2K, foram amigos e foi aqui que minha família pode ver ao vivo o que eu fazia lá fora. Essa vivência pelo mundo podia parar aqui, poderia parar de dançar agora, pois nada se compararia a essa experiência.

S.: Você tem um projeto social chamado Hip Hop que vem de dentro, quando ele foi criado, como ele surgiu?

H. C.: O projeto surgiu antes de mim, uns 15/20 anos atrás e ele é passado de líder para líder. Não sei bem como isso começou, porém é uma cultura de rua que a gente já fazia na Lapa e no Aterro do Flamengo. No Aterro, o pessoal ia para treinar, evoluir, viver o hip hop, não com intuito de viver de dança, ser rico e sim fazer eventos, brincar, ajudar as pessoas, sendo o underground do RJ. Na Lapa, tinha baile toda noite de sábado para mostramos tudo que aprendemos durante a semana. Enfim, com essa galera eu fui aprendendo os movimentos até que um cara parou de dançar e disse “´É você quem vai liderar”.

O projeto foi criado, inicialmente, para passar a real vivência do hip-hop. O festival “Hip Hop que vem dentro” está dentro do projeto social. É como se ele fosse um representante de todas as ações sociais, flahsmob, batalhas, aulas, eventos, confraternização, encontros, entrevistas, ensaio e posso fazer tudo isso em um dia, uma semana e de uma forma acessível, para quem não tem dinheiro (tipo a gente). As coisas estão muito elitizadas hoje em dia, por mais que eu saiba que é necessário cobrar para ter uma qualidade melhor, depois que passa de certo valor, a comunidade não pode mais pagar. Então, o meu principal foco é levar a mesma qualidade e conteúdo para quem não pode pagar.

S.: O nome traz alguma referência ou alguma história?

H. C.: Quando ele foi passado para mim, não tinha nome, mas chegou o momento em que foi necessário inventar. Antes de mim a galera não tinha esse pensamento de criar, escrever um projeto, procurar apoio e tudo mais e deve ser por isso que não fizeram coisas melhores na época. Dos 10 anos, dois eu treinei com eles e o restante corresponde ao período que estou de frente, tentando fazer com que as coisas funcionem. Eu coloquei o nome “Hip hop que vem dentro” porque é o que vem de dentro, que vinha de dentro das pessoas, elas não tinham pretensão de dinheiro, não tinha motivo para estar ali se arrebentando de treinar. Estavam ali porque queriam, porque vinha de dentro delas, queriam se divertir e viver aquilo ali, sem ninguém mandar eles fazerem nada.

S.: O que representa os 10 anos que o projeto completa este ano?

H. C.: Representa toda essa luta que a gente tem. Em 10 anos ninguém nunca apoiou a gente, nunca tivemos patrocínio, nunca entrou dinheiro de nada. Não ganhamos apoio da Petrobras, não conseguimos apoio do governo do estado, nem da prefeitura, da coca cola, nada. A única coisa que ganhamos foi apoio cultural, que é roupa e tênis para dar de premiação nos torneios, que é da loja que me patrocinava. Ou seja, o que eu ganhava, eu dava de presente para a galera, para quem participava dos torneios, ou que fez uma aula muito bem. Mas nem por isso desistimos e vamos continuar até conseguir. Vamos fazer um circuito que irá passar pelas comunidades do centro, por todos os lugares que já foram palco para gente de graça.

S.: Quais são seus planos?

H. C.: Meu plano é fazer, todo mês, ações sociais para movimentar o Rio de Janeiro inteiro e mostrar que nós estamos aí. Muitas pessoas não sabem que existe esse projeto rolando, que tem aulas de graça. Mas o Rio H2K fez uma parceria com a gente, o que ajudou bastante em nossa divulgação e as aulas superlotaram. E foi muito maneiro, porque é uma troca. Quero que o Rio de Janeiro inteiro veja que não existe rivalidade de festivais, ou de grupos, que é união.

Glossário

B-boy Pitt — Alex Pitt, é brasileiro, coreógrafo, dançarino e bailarino da cantora Iza. Filipi Ursão — Professor de danças urbanas em vários países. Faz parte da Agência Rio H2k.

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