Minha avó está parando de andar

Luiz Malheiros
TORANJA
Published in
4 min readNov 19, 2019

Texto escrito a partir de entrevistas com o professor de Matemática da UNESP Rafael Streiba e com o professor de Filosofia da UNITAU César Augusto Eugênio.

O quintal da casa minha avó Amélia é grande. Ele tem aqueles pisos de ardósia, verdes e escorregadios, com um jardim de rosas. Nesse espaço, corri, chorei, fiz birra, joguei bola, dei risada… Ele também foi palco de uma das primeiras memórias que eu, Luiz, tenho. De camiseta regata branca e com um short cinza, estou preso por um mata-leão da minha avó. Tento sair. Não consigo. Minha avó tinha, sei lá, seus 60 anos e uma força enorme. “Vai, Cristina, dá o remédio para ele agora”, ela fala em tom firme para a minha mãe. Não consegui escapar da amoxicilina nesse dia.

Sempre vi na minha avó alguém forte. Não só por ser mulher em uma época difícil (aliás, não é fácil até hoje), mas por superar uma história de abandono e gerar uma família que, hoje, chega a mais de 40 pessoas. A trajetória dela foi pintada por grandes desafios, como criar sete crianças em condições totalmente adversas. Amélia é o Sol em torno do qual toda a família orbita. Porém, assim como aquele que nos aquece diariamente, esse Sol declina: a minha avó está parando de andar.

Amélia tem hoje seus 94 anos, e eu, com meus 25, me pergunto em que momento do tempo isso aconteceu. Cara, foi ontem que ela me segurou pelo pescoço, foi ontem que eu a via fazendo nhoque na mesa, foi ontem que nós ríamos juntos na hora do café. Hoje, ela se esquece das coisas: pergunta de quem sou filho, questiona meus tios sobre seus nomes. Já faz um bom tempo que a ardósia não sente o pisar dela. Num piscar de olhos, ela envelheceu e, embora perto, eu não percebi.

A resposta mais lógica para isso tudo é: o tempo está andando mais rápido. Foi para esse lugar-comum quente e aconchegante que eu fugi quando me perguntei sobre tudo isso, afinal, se assumo que o relógio está acelerado, sou um mero passageiro. Tudo está fora do meu controle, não posso fazer nada. A história, contudo, não é bem assim.

Feche seus olhos, pois vamos subir alguns bons quilômetros. Estamos no espaço sideral, preenchido por nada e lotado de mistérios que nos cercam a mente. Não, não estou falando de terraplanismo. A relação entre estrelas, planetas e galáxias construiu a forma como nós, humanos, lidamos com o tempo. Uma lua diferente marcava a época de colheita, então, a partir dela, as sociedades antigas delimitavam o tempo correto para plantar novamente.

Não vamos entrar em terrenos complicados como relatividade e gravidade. Cientificamente, o que precisamos entender sobre o tempo é: mantidas as condições, ele não se altera. Um segundo em 1925, ano em que minha vó nasceu, era um segundo em 1994, ano em que eu nasci, e é um segundo em 2019, ano em que estamos. Se nada mudar lá fora ou aqui, na Terra, um segundo permanecerá sendo um segundo para sempre. Não, o tempo não está andando mais rápido.

Como humanos, buscamos a todo momento experiências profundas. Queremos sentir coisas que nos aprofundem em vários sentidos e passamos por elas, sejam de dor ou alegria, sejam por iniciativa própria ou por acaso. Uma experiência profunda se torna uma memória. No primeiro parágrafo deste texto, compartilhei uma lembrança que tenho. Ser segurado daquela forma pela minha vó me marcou. Temos, então, uma experiência profunda. Quando isso acontece, a nossa percepção de tempo também se altera. Os segundos em que fiquei preso nos braços da minha vó pareciam uma eternidade. Do mesmo modo, os momentos em que fico com quem amo parecem passar na velocidade da luz. As condições do Sistema Solar não se alteraram para modificar o tempo nas minhas — e nas suas — lembranças registradas.

A gente quer profundidade, mas fica num mar cada vez mais raso, sempre na esperança de isso mudar. Muitas vezes, as horas no trabalho parecem se arrastar até que chegue a hora do almoço, que, por sua vez, passa muito rápido. O almoço, porém, não gera uma experiência profunda, é apenas mais uma parte do dia, então focamos no final de semana. Ele passa rápido em relação ao expediente, mas também não traz nada de diferente, nada de profundo. A quantidade de coisas que executamos nos faz ficar cada vez mais no raso, cada vez mais presos a um modus operandi que não nos agrada. Feitos para mergulhar, somos condicionados a boiar. Em busca das tais experiências profundas, realizamos inúmeras outras que desejamos esquecer. Não geramos memórias que marcam a nossa vida e ganhamos a sensação de que o tempo está correndo.

A minha avó está parando de andar, mas outra pessoa está começando. Com a sua bravura de um ano, Mariana corre pelo quintal freneticamente. Os pequenos passos dela estão condicionados ao mesmo tempo que segura a minha avó na poltrona dela. O tempo não permitirá que Amélia dê um remédio para Mariana como fez comigo, mas eu, um espectador disso, espero que a pequena registre momentos enquanto corre e escorrega pela ardósia.

Mariana também corre dentro de casa

--

--