O demônio do condomínio

nycolas ribeiro
TORANJA
Published in
3 min readJul 3, 2020
Arte pelo grande @paulo.vrs

É madrugada. Quase duas. Finalmente encontro uma posição confortável nos edredons e esqueço dos pés gelados. Estou naquele limiar entre a realidade e o universo de sonhos, mas algo não permitirá. Baixinho, debaixo das cobertas, Cora dá o primeiro rosnado. Segundos depois, o segundo. Tateio o colchão à sua procura até achar sua lombar com os pelos ouriçados. A ameaça se aproxima.

Pouco depois ouço o apito da porta do bloco B sendo destrancada. São eles. Cora começa a ficar mais agitada, ensaiando latidos para irromper o silêncio do apartamento. Entretanto, não é com ela que eu ou meus vizinhos precisamos nos preocupar. O demônio do condomínio já está no hall e nada será capaz de impedi-lo de satisfazer as suas vontades na fria madrugada de quarta-feira. Acompanhado de um casal idoso de asiáticos e outros dois cachorros, o pinscher preto dá o seu primeiro urro estridente e eu sei que, até ele retornar para seu apartamento, não será o último.

Não há ninguém na rua a não ser ele e seus companheiros de passeios noturnos. Mas ainda assim, ele não para. Late para o vazio da noite. Late para os bancos da praça. Para os seus donos, para as placas, para o asfalto. O esganiçado maldito passeia pelo topo das árvores da larga avenida chegando até mim, tirando o fiapo de sonolência que eu tinha me agarrado. Conforme a caminhada evolui, mais distante ele parece, mas ainda assim presente. Com ódio, e o sono ainda mais atrasado, durmo.

Às seis, tudo de novo. A única diferença é o tímido sol que substitui o breu do episódio anterior. Acordo puto, mas cansado demais para tomar uma atitude. Sou vencido pelo peso do sono de quem dormiu tarde e volto a dormir. Lá pelas treze, um novo passeio, novos latidos infernais. Cora fica nervosa e começa a andar descontroladamente pelo apartamento, latindo e batendo suas unhas no falso piso de madeira, contribuindo para a sinfonia do inferno orquestrada pelo pinscher lá fora. Paro e o observo na janela.

Em sua pequena coleira roxa, ele gira em todas as direções, disparando gratuitamente o seu latido à vizinhança. Por um minuto, me imagino como um sniper americano que, ali, da janela da sala, poderia pôr um fim no sofrimento de um bairro inteiro. Imagine quantas famílias seriam gratas a mim. Talvez o bosque, pelo qual a associação de moradores está há anos brigando com a prefeitura, possa ser batizado com o meu nome. Conforme meu devaneio vai se expandindo, os latidos ganham força. É como se ele soubesse que está sendo observado e, do meu ódio, alimentasse sua energia vocal.

Certas vezes, quando preciso deixar isolamento social em busca de suprimentos, minha saída coincide com a dele. Nos encontramos no estacionamento e, em um novo delírio de raiva, penso em homicídio. Sua dona, uma simpática senhorinha, me cumprimenta, ao mesmo tempo em que tenta controlar a coleira de dois. Seu marido, que mal fala português, apenas acena com a cabeça e se preocupa com o terceiro cachorro. Inutilmente, ele avança em minha direção. Nossos olhares se cruzam e eu consigo enxergar em sua retina toda a maldade que já assolou a humanidade.

Continuamos nos encarando e percebo que a encarnação do anticristo não tem mais do que trinta centímetros. Com apenas um pé eu seria capaz de instalar a paz celestial na Terra. Mas o diabo arquitetou tudo com maestria. É claro que ele enviaria seu filho em forma de um cachorro. Como eu, que daria a vida pela minha vira-lata, seria capaz de por o fim na de outro cão? Que tipo de monstro pisoteia até a morte um indefeso, frágil, minúsculo pinscher? Nenhum júri ficaria do meu lado. Afasto os pensamentos e me afasto da família. A quarentena está longe de acabar e o inferno do edifício Marie Claire também.

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