Por todos os momentos em que você não esteve aqui

Nathália de Oliveira
TORANJA
Published in
6 min readDec 17, 2019
Arte por Tatiane Fernandes

A Maria Eduarda Tamate e a Maria Eugênia Tuan têm muito mais em comum do que apenas o primeiro nome. As duas são jovens, feministas e nasceram na cidade de Taubaté, interior de São Paulo. Elas, assim como 84% das crianças brasileiras*, possuem a mãe como primeiro responsável.

Esta matéria conta a história da Maria Eduarda e da Maria Eugênia, assim como dos Joãos, das Anas e de tantos outros jovens que não têm uma relação ou que não conhecem os seus pais. Abandono parental é a realidade de mais de 1 milhão de famílias*, afetando a vida de milhares de crianças e mulheres.

“Eu não lembro de ter uma relação de carinho com o meu pai”

Os pais da Maria Eduarda Tamate começaram a namorar na adolescência. Eles estudavam juntos na mesma escola e eram vizinhos. A mãe de Maria engravidou com 14 anos e, logo no início da gravidez, o rapaz foi com sua família para o Japão. Ele só voltou para o Brasil quando a filha tinha um ano de idade. “Eu não tenho lembrança do meu pai na minha infância. Em eventos escolares, por exemplo, ele nunca esteve presente”, conta.

Ela sempre morou com a mãe, os avós maternos e as tias. Essa é a sua família. Em sua vida, a grande figura paterna é o seu avô. Mas a relação entre pai e filha nem sempre foi de atrito. Na sua infância, eles conviviam e se entendiam. “Começou a ficar mais complicado quando eu tinha oito anos. Foi na época que ele terminou o namoro com a minha mãe. Ele era um jovem que tinha uma criança com a qual não sabia lidar”, ressalta.

A relação entre seus pais era complicada e as emoções acabam afetando Maria, que, ainda muito criança, percebeu como sua mãe ficava triste ao ver o ex-namorado com outras mulheres. “Ele assumiu um novo namoro, com uma mulher que abertamente não gostava da minha mãe. Isso me deixava muito abalada e eu discutia muito por isso”, recorda a filha, que também tinha problemas com o autoritarismo e machismo. “Ele é de uma cultura oriental em que o homem fala e a mulher abaixa a cabeça”, compartilha Maria Eduarda, que sempre confrontou essas atitudes.

O pai seguiu sua vida, mas não aceitou quando a ex-parceira iniciou um novo relacionamento. O padrasto e a presença de uma figura masculina na vida da jovem foram vistos como uma competição. “Para mim nunca foi assim, porque ele nunca esteve na minha vida. Não tinha pelo que competir”, destaca. Isso aconteceu em um momento em que a relação dos dois já estava abalada por questões financeiras e o pagamento da pensão. “Ele sempre foi muito bem de vida, mas achava que eu não tinha o direito de ter acesso a isso”, reforça.

Há quatro anos, Maria entrou na justiça, pedindo o ressarcimento de todas os pagamentos que não foram feitos. Ela utilizou o dinheiro para mudar de cidade e iniciar o curso de Ciências Sociais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “Atualmente, ele não fala comigo de jeito nenhum. Eu tentei [conversar com ele], pois já senti muita falta de um relacionamento paterno”, explica. Hoje, Maria Eduarda utiliza os seus estudos para entender melhor sobre sua experiência. O seu Trabalho de Conclusão de Curso é sobre abandono parental. “Eu fico tentando preencher essa falta que ele faz. Talvez por uma ilusão de que agora vai ser diferente”, conclui.

Para o futuro? Pretende continuar na área acadêmica e aprofundar a pesquisa na formação familiar brasileira.

“Uma vez, escutei ele falar que não se sentia meu pai”

A Maria Eugênia Tuan sente que é um fardo na vida de seu pai. O relacionamento entre os dois sempre foi muito complicado. Ele é ausente e nunca participou dos momentos especiais na vida da filha. “Quando eu era criança, teve uma vez que ele foi me pegar para passear, só que eu estava doente. Ele nem entrou na casa para me ver”, conta.

A mãe e o pai de Maria eram amigos. Hoje, a mãe vê o relacionamento como algo falso. O pai já diz que eles eram muito unidos e verdadeiros. Ele é gay e a ex-amiga sabia e era sua confidente. Até que, em uma noite em que os dois beberam muito, tiveram um caso. Na época, eles tinham 21 e 24 anos. A filha não sabe muitos detalhes do que aconteceu entre os dois. “Parece que ele sempre teve um pouco de ranço do que aconteceu. Eu sempre tentei ter um relacionamento com ele. Sempre quis, mas ele não”, conta. “Para a minha família paterna, ele demonstra ser o melhor do mundo. Então, o nosso relacionamento é bem para a foto mesmo, bem margarina”.

Maria tem 21 anos, mas desde os 12 ele não sabe o que é ter o pai em seus aniversários ou em momentos de necessidade. “Sempre me senti muito culpada por ter nascido. Parecia que eu atrapalhava e que era algo pesado demais para carregar”, compartilha a jovem, que viu esse sentimento crescer ainda mais quando começaram os problemas com a pensão. “Quando eu tinha 8 anos, ele tentou tirar o pagamento. Eu desenvolvi um sentimento de raiva por isso”. Ela chegou a comparecer nas audiências com a mãe, que na época era costureira e não podia sustentar a filha sozinha. Desde os 17 anos, Maria trabalha para a sua independência financeira e não precisar depender de ninguém.

Atualmente, seus pais são casados com outros parceiros. Por parte de mãe, ela não se dá bem com o padrasto, que é o motivo dela morar com a avó. “Ela começou a namorar com ele quando eu tinha uns 4 anos. Ele é extremamente machista e quer que eu me posicione da maneira que a sociedade acha correta”, conta. Por parte de pai, ela se dá bem com o padrasto, apesar de não ter uma relação de confiança. “A gente já conversou muito sobre isso, mas ele tenta tirar muita a culpa do seu marido em relação a tudo o que acontece entre a gente”.

Em toda a sua vida, Maria sempre soube que podia contar com uma pessoa: sua avó materna. “Até meus 11 anos, antes da minha mãe se casar, a gente morava com a minha vó. Então, cresci com ela. Graças a Deus. Eu sempre a vi como uma figura materna e paterna”, destaca. “Como ela me teve muito nova, eu sempre tive a minha vó como o adulto da casa”.

Hoje, Maria Eugênia cursa Moda na Universidade do Paraíba e, para o seu futuro, deseja se tornar uma grande estilista.

Na Justiça

Juridicamente, casos como os da Maria Eduarda e da Maria Eugênia são caracterizados como abandono afetivo, que ainda é um assunto muito recente para os tribunais e juízes. “Nem todo mundo que gera filhos tem o cuidado de estar presente na vida deles. Porém, a questão da afetividade não está relacionada a pensão em si”, explica a advogada e conciliadora Fabiane Bustamante, pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões pela Universidade Candido Mendes.

O abandono

Na Justiça, há duas vertentes: a primeira diz que essas situações não podem gerar responsabilidade civil porque ninguém é obrigado a amar ninguém e a manter um relacionamento que não quer. Ou seja, pagar a falta de amor não faz surgir amor. A outra linha diz que é um dever dos pais o convívio com o filho. Se a pessoa escolheu ter uma criança, ela deve ser responsabilizada. Mesmo em casos de gravidez inesperada, a pessoa escolheu ter o risco de um relacionamento. Esse é um assunto que causa muita divisão de opiniões. É por isso que os casos de abandono não podem ser comparados, pois dependem muito do julgamento do profissional responsável pelo caso. Mas, de forma geral, os processos não geram indenização.

Pensão

É obrigação dos pais alimentar e educar os filhos. Esse é um dever que está na Constituição Brasileira, no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Hoje, os casos são avaliados a partir de três causas: necessidade, possibilidade e proporcionalidade. Em um processo de pensão, é necessário elencar todos os gastos com a criança, contabilizando não só estudo e alimento, mas como luz, água e até internet.

Por exemplo, o filho precisa de R$3.000 para sobreviver. Esse é a necessidade. Depois, são avaliados os ganhos dos dois pais (essa é a possibilidade), sendo que quem possui mais recursos deve contribuir a mais com esse valor (proporcionalidade). Independente de quem tem a guarda, os dois devem contribuir. Ou seja, por mais que o pai não more e não seja presente, ele deve garantir o bem-estar do filho.

Essas situações envolvem muitas questões e variam muito de caso a caso. Por isso, é extremamente importante envolver um advogado especializado em direito familiar. O profissional saberá orientar e conduzir a situação para garantir o principal: a vida da criança.

*dados do IBGE.

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