Tô usando PrEP

nycolas ribeiro
TORANJA
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7 min readDec 4, 2019

Em fevereiro de 2018 tive uma crise de tosse seca que durou quase três meses. Comecei com a automedicação, fui para o clínico geral e terminei no pneumologista. Não era pneumonia, tuberculose e nem alergia. De tanto tossir e expandir o pulmão, machuquei os músculos das costelas a ponto do meu corpo não conseguir se curar sozinho. Cheguei a mastigar doses cavalares de analgésicos e anti-inflamatórios, mas somente um complexo vitamínico resolveu a mialgia (dores musculares) aguda. Enquanto isso, a tosse continuava.

Frustrado pela falta de diagnóstico, fiz o que toda pessoa normal faria: pesquisei os sintomas no Google. Para a minha não-surpresa, a maioria dos resultados estava relacionada ao HIV, o que acabou gerando aquela ansiedade anormal e totalmente familiar para homens gays. Explico: ser gay é ter um medo irracional de um simples resfriado. Como os sintomas iniciais do HIV são semelhantes a uma forte gripe (febre, tosse seca, dores musculares e de cabeça), basta uma garganta arranhada para entrar em uma neura absurda.

Sim, todo esse pânico é internalizado por anos de estigmas da AIDS e a relação da doença com a comunidade gay. Quando descobrimos nossa sexualidade, essa preocupação vem colada a ela e é muito difícil se desvencilhar desses preconceitos automáticos. Tanto que demorou muito tempo até eu criar a coragem de fazer o primeiro teste rápido, pois, na minha cabeça, era melhor “não saber” do que encarar qualquer resultado.

Como a tosse seca permanecia, fui até o Centro de Referência Moléstias Infecciosas (CRMI) fazer o teste rápido. Resultado negativo para HIV, sífilis e hepatite. Durante a entrevista padrão sobre motivos para ter feito o exame, a enfermeira perguntou se eu teria interesse em participar do programa de Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) que, em breve, chegaria em São José dos Campos. Aceitei e, em novembro de 2018, recebi a ligação informando que o medicamento tinha chegado no município e eu poderia participar do programa.

O “anticoncepcional” do HIV

Utilizada como um dos métodos do grupo de Prevenção Combinada do HIV, a PrEP funciona como o uso contínuo do anticoncepcional para mulheres: basta tomar uma pílula diária de antirretroviral (ARV) e os riscos de contrair o vírus do HIV caem em até 99%. Combinando tenofovir e entricitabina em uma única pílula, o Truvada é o medicamento responsável por “bloquear” os caminhos que o vírus do HIV utiliza para infectar as células. Paralelo aos tratamentos para soropositivos, esse método é estratégico e quase matemático: se as pessoas que convivem com HIV souberem seu status e mantê-lo indectável (quando não transmitem mais o vírus) e os soronegativos que estão mais expostos aos riscos passem a utilizar a PrEP, as taxas de infecção do vírus caem e, num mundo ideal, a transmissão da doença “congela”. É um projeto a longo prazo que envolvem diversos aspectos, mas que, em sua base, oferece uma nova alternativa para frear a doença que vem crescendo nos últimos anos, principalmente entre os mais jovens.

Para que o “hackeamento” da célula aconteça, é extremamente importante tomar o comprimido religiosamente todos os dias, caso contrário você não terá a concentração suficiente do medicamento em seu sangue para impedir que o vírus se instaure. O Truvada pode ser ingerido sem contra indicações, então não é preciso cancelar a cerveja e a cachaça. Também não existem sinais de que seus efeitos sejam anulados por conta de outro medicamento ou alimento, nem drogas recreativas, como a maconha. Entretanto, o consumo de álcool e drogas ilícitas favorecem consideravelmente os “comportamentos de riscos” que é um termo técnico para “transar sem camisinha”, o que nos leva à reforçar uma informação importante: a PrEP é um método de prevenção exclusiva ao HIV, portanto, ela não protege de outros vírus, como sífilis e hepatite. Portanto, o medicamento NÃO exclui o uso de camisinha, que segue sendo a maneira mais eficaz de se proteger.

A triagem

Passar pela triagem da PrEP foi fácil pois, segundo os parâmetros do governo, sou uma completa Vagabunda™. Além de não estar em um relacionamento sério, sou adepto ao sexo casual, assim como grande parte da sociedade (héteros inclusos). A diferença é que nós, gays, temos um tratamento “especial” quando o tema é comportamento sexual, que é o mesmo que nos proíbe de doar sangue. Dessa forma, fazer parte da comunidade gay é um fator que coloca você no famoso grupo de risco: homens que fazem sexo com homens (HSH), pessoas trans (em especial mulheres), profissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis. Essas são as pessoas eletivas para participar do programa, portanto se você se é uma delas, também terá sucesso na triagem.

A primeira entrevista é com uma enfermeira (comigo foi lá atrás, quando fui me testar) e depois por um médico que fará uma série de perguntas sobre sua vida sexual. Antes de iniciar, ele se assegura de avisar que todas as perguntas são de um questionário padrão do SUS, e nenhuma delas é feita particularmente por ele. Só fui entender o motivo dele se ater a isso quando me perguntou se eu era passivo ou ativo, o que pareceria uma curiosidade particular, já que a transmissão do vírus pode ser feita das duas formas. Ele ainda pergunta sobre uso de drogas e se eu já fiz/faço sexo em troca de bens (dinheiro, moradia e objetos de valor). Segundo ele, algumas pessoas se sentem ofendidas com essas perguntas, então vá de coração e mente aberta para contar sobre seu comportamento sexual. Ele não vai julgar se você for uma grande safada e essas informações são importantes para ele conhecer seu histórico e você entrar no programa.

Almoçando Truvada

Desde o início fui avisado de que os efeitos colaterais da PrEP eram mínimos e, se existissem, variavam de pessoa para pessoa. Os primeiros dias foram completamente normais. A única novidade era o grande comprimido azul e o despertador programado para às 12h30 de todos os dias, horário em que costumo almoçar. Criar o hábito de tomar o Truvada e carregá-lo para onde você for também é um processo chato, mas depois que entra na rotina, vira automático.

Na segunda semana, comecei a sentir que estava inchado, com a barriga dura e desconforto similar ao de gases. Tomei uns antigases, mas a sensação não passava. E digo “sensação” porque no espelho eu não via nenhuma diferença no meu corpo. Eu sentia que estava inchado, mas não parecia estar inchado.

Todo esse desconforto durou os primeiros 30 dias e, na semana que retornei para minha primeira consulta pós início de tratamento, já estava melhor. O médico informou que esse inchaço era normal e um dos efeitos colaterais mais conhecidos, entretanto, seria difícil que eu voltasse a tê-lo agora que meu corpo estava mais acostumado com o medicamento.

Hoje, completando um ano na PrEP, estou bem acostumado. A única diferença que observei nos últimos meses é o meu cabelo mais ralo e, quando molhado, evidencia muito mais o meu couro cabeludo do que antes. Em minha última consulta relatei isso para o médico e ele só confirmou o que eu estava tentando culpar a droga: não é um efeito colateral. É só a idade chegando.

E o 1%?

Como disse lá em cima, a PrEP protege o nosso organismo em até 99%, portanto, é uma diminuição considerável aos riscos. Mas, eles ainda existem. Por isso, vale ressaltar de novo, e mais uma vez, que este é um tratamento de Prevenção Combinada, ou seja: fazer o uso do Truvada não elimina o uso de outros métodos preventivos, principalmente a camisinha. Essa ainda é a opção mais segura para se proteger de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).

Existem pouquíssimos casos de pacientes que contraíram o HIV mesmo fazendo o uso da PrEP (apenas seis no mundo). A principal explicação é o uso descontinuado do comprimido (não tomar todos os dias) aliada ao sexo desprotegido. Por mais que diga mais sobre a atitude do usuário com o tratamento, isso demonstra que sim, ainda existe aquele 1% de chance de contrair o vírus e que o uso do método isolado não é o ideal.

“Cê faz bareback?”

No primeiro folheto que peguei da PrEP, uma das recomendações dizia algo como: “conte que você está fazendo o tratamento apenas para pessoas próximas e confiáveis”. Achei um conselho estranho, mas depois entendi o “cuidado”. Na época, estava engatando um relacionamento e decidi contar que tinha começado a tomar a droga. Estávamos em um bar e ele pareceu um pouco desconfortável com o assunto, principalmente quando eu falava a sigla “HIV”. No final, disse que achava legal eu me cuidar. Depois, por mensagem, pediu desculpas caso eu me ofendesse com a pergunta, mas ele queria saber se eu estava transando sem camisinha com desconhecidos. Apesar de natural, a pergunta evidenciou o que o uso da PrEP representa para boa parte da comunidade gay: o bareback, ou seja, sexo anal sem camisinha. Expliquei que não e, dias depois, acabei mostrando os resultados dos meus exames, algo que eu não tinha obrigação nenhuma de fazer, mas, na época, achei necessário.

É verdade que existem pessoas que recorrem à PrEP para não usarem camisinha. Li depoimentos no site PrEP Brasil em que adeptos ao bareback se diziam conscientes de que podem ser infectados por outros vírus, mas, como todos são tratáveis, estão dispostos a correr esse risco. É uma roleta russa, visto que a sífilis, por exemplo, deixa o organismo mais exposto para o HIV, mas, ainda assim, é uma escolha pessoal. Isso acaba contribuindo para o avanço de diagnósticos de outras ITSs? Com certeza! Entretanto, observo que o debate levantado em torno disso geralmente acaba sendo muito mais “moral” do que propriamente do campo da saúde, e isso é um tema para outro texto.

Até a decisão de escrever esse texto e compartilhar minha experiência com a PrEP, não contava para ninguém além de amigos próximos. Mais por preguiça do que por precaução de acharem que sou “irresponsável”. A verdade é que, atualmente, eu me sinto muito mais seguro e mais no controle da minha vida sexual. Sempre sei o meu status e me cuido, o que não é diferente pessoas que convivem com HIV e realizam o tratamento adequado. De três em três meses retorno ao médico e, periodicamente, realizo diversos exames de sangue que, inclusive, já indicaram que preciso cuidar da minha glicemia. E você, qual foi a última vez que se testou?

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