Uma carta para o primeiro homem que me viu

Luiz Malheiros
TORANJA
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3 min readApr 6, 2020

Ok, é bem possível que o senhor se pergunte por que raios um garoto de 25 anos está escrevendo algo em plena noite de Natal. Compreendo, é um pensamento normal. Acontece que eu precisava alinhar umas coisas com você. Queria discutir uns aspectos da vida que me deixam meio, como diz a minha mãe, ressabiado, afinal um aviso sobre eles desde o início me ajudaria bastante, doutor Régis, o primeiro homem que me viu na Terra.

Antes dos motivos, vou me apresentar. Sou Luiz Malheiros, filho da Cristina, nascido em 26 de maio de 1994. Era uma noite fria, antecedida por um dia agradável, quando o senhor disse à minha mãe: “Bom, dá para ele nascer amanhã”. E nasci. Nasci pelas suas mãos, doutor Régis. Em novembro de 2019, recebi uma foto sua com a fatídica notícia: você partiu dessa para a próxima. Essa mensagem me chocou, doutor. “Caraca, o cara que me viu pela primeira vez não tá mais aqui”, pensei eu. “Preciso falar umas coisas para ele”, continuei eu. Enfim, aqui estou eu.

Doutor, há um tempo, ia para uma reunião de trabalho em São Paulo quando passei por uma cooperativa de reciclagem. Era 9h e pingos soltos despencavam aqui e ali. Em frente ao monte de plástico, um homem travava seu carrinho de coleta na cintura. Era um Quíron ao contrário: visto como menor e rejeitado com força por seus semelhantes. Chicoteado pelo tempo, amassado pela angústia. Morto enquanto vivo, doutor. Uma hora depois, o cheiro de perfumes estrangeiros brigava por espaço com o oxigênio no ar. Camisas branquíssimas desfilando. Por fim, estava eu na minha reunião, num belo centro corporativo. Discutiram-se números, avanços, impulsos, crescimento, produção. Como ter mais do mais que já se tem demais. Vivos enquanto mortos, doutor…

Agora que o senhor tem uma visão diferente do tempo, me diz: um dia superaremos esse abismo? Um dia a gente vai entender que o clichê é extremamente real? Sim, por dentro a gente é igual. Um médico como você sabe disso, mas por que nós, humanidade, não consegue quebrar essa barreira? Por que a gente ainda insiste em coisas que passam como a flor do campo? Por que a gente não brinca de quebra-cabeça em vez de cabo de guerra?

A gente confunde, doutor, legado com herança. Em breve, farei um exame na vesícula. Algo simples, só para entender o que anda causando alguns enjoos em mim. E se vier uma notícia que eu não espero? O que deixarei adiante? O que compartilhei com meus semelhantes que realmente valeu a pena? Cinco mil reais de uma herança não pagam a quantidade de sofrimento poupado numa conversa franca.

Doutor, essa inconstância da vida me incomoda. Lendo, encontrei uma passagem de Heródoto, o historiador grego, que retrata isso. O vitorioso imperador persa Xerxes (isso, aquele que Rodrigo Santoro interpretou em 300) chorou após uma vitória e, questionado pelo seu tio Artábano sobre o motivo, respondeu: “Fui tomado de piedade à lembrança da brevidade da vida humana, quando compreendi que, de todas essas multidões, nem um só indivíduo estará vivo daqui a cem anos”. Passaram-se milênios: todos aqueles morreram, o senhor também e eu e os outros que leem esta carta, bem, estamos na fila. É possível que frente a esse confronto a gente fique pensando só sobre o carro do ano ou sobre como acumular mais, mais e mais? O tic do relógio é uma sentença a cada engrenagem.

Bem, doutor, a essa altura, é provável que já estejam me chamando de reclamão ou de negativo demais. Aliás, talvez até o senhor pense isso! Realmente, há também beleza na vida. Há muita beleza mesmo. Porém, o jardim pode ser lindo e ter milhares de flores, mas basta uma pequena faísca para ele desaparecer. Desaparecer em segundos. O que é belo perde sua beleza quando o entorno queima — ou espera na chuva para vender sua sucata e recomeçar o trajeto.

Acho que o senhor conseguiu entender, doutor Régis. A fé me faz ver como é o outro lado, e eu ficaria muito feliz de encontrá-lo aí. Seria uma grata surpresa saber que leu o que escrevi. Não sei quando irei, é claro, mas reserve um bom tempo para o nosso café. Teremos muitos assuntos.

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