A desordem do consumismo na sociedade do consumo

As teses de Bauman e de Lipovetsky acerca da sociedade de consumo e a necessidade de reinvenção para a sobrevivência do planeta.

Revista Torta
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10 min readAug 30, 2019

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Por Rafael Junker Simões

Editado por Arthur Almeida, Giovana Silvestri e Rafael Junker

Foto por Vinicios Rosa || Modelo Arthur Malentaqui

Entre todos os textos que o fiel leitor — os dados do Medium que quantificam e identificam os leitores provam a existência de fiéis — pode encontrar nesse dossiê da Revista Torta, este é aquele comprometido com a identificação da “sociedade de consumo” como um dos causadores do tema da capa.

Aqui, não cabe mostrar alternativas ao problema — é evidente, supõem-se, que extrair do planeta mais do que ele pode dar seja um problema -, mas identificar o que é a sociedade de consumo e como ela impacta a exploração dos recursos naturais.

Assim, o que já se adianta é que este texto trará uma visão pessimista da nossa realidade — uma vez que o próprio Zygmunt Bauman, cuja linha de pensamento orienta a presente publicação, manifesta esse tipo de visão.

Possíveis soluções para o problema do esgotamento de recursos serão explorados nos próximos textos deste dossiê.

Foto por Vinicios Rosa || Modelo Arthur Malentaqui

Sociedade do consumo

O tema da sociedade de consumo é explorado por diversos autores, a partir de várias correntes de pensamento. A fim de garantir uma coesão narrativa, aqui serão citados — principalmente — dois autores: Zygmunt Bauman e Gilles Lipovetsky.

Bauman, proeminente pensador polonês, é bem famoso por suas teses a respeito do que ele chama de modernidade-líquida. Entender esse conceito é elemento chave para entender suas ideias a respeito da sociedade de consumo.

Num rápido panorama, até meados do século XX, prevalecia uma modernidade-sólida, na qual havia uma produção voltada para a segurança e durabilidade do que era produzido. O trabalho era o elemento central desse momento histórico.

Com o avançar dos anos e, também, com o colapso do modelo de produção fordista vigente na época, surge a modernidade-líquida, na qual há um aumento na velocidade do consumo.

O ato de consumir não é mais voltado para a estabilidade e para a durabilidade dos produtos, mas pela sua constante substituição por outros mais novos.

A modernidade-líquida passa a ter o consumismo como elemento central. É importante destacar também que Bauman diferencia “consumo” de “consumismo”.

Foto por Vinicios Rosa || Modelo Arthur Malentaqui

Para ele, o consumo é natural da espécie humana, precisamos consumir alimentos para sobreviver, roupas para estarmos aquecidos, etc.

Já o consumismo vai muito além do consumo por uma necessidade, estando muito mais ligado a desejos subjetivos que serão melhor explorados mais a frente.

Uma vez que o consumismo está relacionado aos desejos subjetivos e à compra pelo prazer de satisfazer esses desejos, para garantir a perpetuação desse sistema é preciso que esses desejos nunca cessem. Não podemos parar de desejar, temos que estar eternamente insatisfeitos, em busca de novas satisfações.

Bauman vai dizer, a respeito da publicidade:

“toda promessa deve ser enganosa, ou pelo menos exagerada, para que a busca continue”.

Assim, uma das formas de promover a reprodução do consumismo é exagerar na publicidade do produto para que, ao consumi-lo, a pessoa se decepcione e logo deixe de desejá-lo, visando substituí-lo por outro mais novo e “melhor”.

Faz-se uma promessa, cria-se o desejo do consumo para depois não satisfazê-lo. Para o sociólogo polonês, “a economia consumista tem de se basear no excesso e no desperdício”. Essa é uma das formas pelas quais esse sistema se reproduz.

É evidente que esse modelo consumista gera impactos ambientais, uma vez que o estímulo constante ao consumo e ao descarte rápido aumenta o uso de recursos naturais para manter uma cadeia produtiva capaz de garantir esse consumo.

Foto por Vinicios Rosa || Modelo Arthur Malentaqui

Até agora, pode parecer que o elemento central da sociedade de hoje seja o consumo desmedido e baseado em desejos e prazeres subjetivos. Mas, para Bauman, o objetivo central dessa sociedade:

“não é a satisfação de necessidades, desejos e vontades, mas a comodificação ou recomodificação do consumidor: elevar a condição dos consumidores à de mercadorias vendáveis”.

Para entender melhor essa tese de Bauman, é preciso esclarecer alguns pontos. Como já antes dito, os seres humanos apresentam uma necessidade natural de consumo. Na sociedade capitalista, para ser capaz de consumir, é preciso dinheiro.

O salário é o valor monetário dado pelo empregador para o trabalhador pela sua força de trabalho. Ele vende sua força de trabalho para o empregador, o que lhe permite um salário que será o responsável por incluí-lo no universo do consumo.

Sendo a força de trabalho a responsável por garantir o consumo, ela passa a ser o produto, a mercadoria do trabalhador, que precisa ser vendida para o empregador.

No entanto, baseando-se nas ideias do economista Karl Polanyi, Bauman defende que a força de trabalho não é uma mercadoria comum:

“ ‘a capacidade de trabalho’ não pode ser comprada e nem vendida em separado de seus portadores. De maneira distinta de outras mercadorias, os compradores não podem levar sua compra para casa. O que eles compraram não se torna sua propriedade exclusiva e incondicional”.

Foto por Vinicios Rosa

O que Bauman defende é que a força de trabalho, ou “a capacidade de trabalho”, não pode ser separada de quem a possui, isto é, do trabalhador. Assim, a força de trabalho de alguém é, em alguma medida, esse próprio alguém.

Uma vez que a força de trabalho do indivíduo é ele próprio, na sociedade capitalista, a força dele precisa ser vendida e se transformar em mercadoria. Nesse sentido, a própria pessoa torna-se uma mercadoria.

Assim ocorre a comodificação. As pessoas passam a ser vendáveis. E nessa lógica, quanto maior o preço a ser pago pela força de trabalho, melhor. As pessoas tornam-se vendedoras de si mesmas. Para isso, agregam à sua mercadoria cursos, diplomas, línguas etc. Tudo para se venderem melhor e por um preço maior.

Nas palavras de Bauman, as pessoas:

“são aliciadas, estimuladas ou forçadas a promover uma mercadoria atraente e desejável. Para tanto, fazem o máximo possível e usam os melhores recursos que têm a disposição para aumentar o valor de mercado dos produtos que estão vendendo. E os produtos que são encorajadas a colocar no mercado, promover e vender são elas mesmas”.

Essa ideia de se vender para ser consumido extrapola o mundo do trabalho e chega a todas as relações humanas. As pessoas fazem propaganda de si mesmas e vendem seus atributos aos outros até mesmo numa relação amorosa. É uma mercantilização do ser humano em todas as esferas da vida.

Foto por Vinicios Rosa

Unindo o consumismo com a comodificação, é notável o sucesso da nossa sociedade na reprodução do consumo. As pessoas consomem porque são estimuladas a satisfazer seus desejos e prazeres — embora saibamos que o resultado disso é a não satisfação — e, também, porque precisam vender a si mesmas.

O consumo é mantido pela eterna insatisfação e pela necessidade cada vez maior de se tornar atrativo para o mercado. As pessoas se tornam mercadorias para adquirirem mercadorias.

Sociedade do hiperconsumo

Contemporâneo de Bauman, o filósofo francês Gilles Lipovetsky — há de se convir que os nomes de Zygmunt e Lipovetsky apresentam uma dificuldade ímpar de pronúncia — também se dedica ao estudo da sociedade de consumo.

No entanto, para o francês, “sociedade de consumo” parece insuficiente para se dirigir ao momento no qual vivemos. Lipovetsky cria, então, o termo “hiperconsumo”.

Antes de tratar propriamente do “hiperconsumo”, o filósofo divide o desenvolvimento do capitalismo em três fases.

1ª fase (1880 a 1945)

É marcada pela expansão das grandes loja em substituição às menores e pelo início da democratização do consumo. A primeira fase foi impulsionada pelo desenvolvimento industrial e pelo consequente aumento da capacidade de produção.

2ª fase (1945 até anos 70)

Nessa fase, a democratização do consumo se expande com o aumento do poder de compra.

Bens duráveis, férias e lazer, elementos antes muito associados a uma certa elite social, agora se popularizam e passam a ser acessados por mais pessoas. É nesse momento histórico que há um desenvolvimento maior da publicidade, do marketing.

O filósofo francês também vai identificar a ascensão da moda em oposição à pátina*. Para explicar melhor esses dois conceitos, é preciso recorrer às palavras dos sociólogos Rodrigo José Fernandes de Barros e Alisson Gutemberg, autores do artigo que orienta este texto.

Nas palavras dos dois:

“pátina* seria as impressões que o tempo deixa nos objetos, garantindo que estes são antigos e que pertencem a uma mesma família por gerações. Havia o desejo de herdar móveis e demais objetos dos antepassados, pois a eles era atribuído tanto valor financeiro quanto simbólico, rendendo prestígio, status e diferenciação aos que os tivessem. Já a moda é o oposto da pátina, por ser individual, passageira, focada na temporalidade ligeira, sempre se renovando e, sempre que possível, esquecendo-se dos antepassados”.

Novamente, é possível ver a transitoriedade do consumismo, fundado, aqui, na ideia de “moda”.

Foto por Vinicios Rosa

Lipovetsky enxerga na segunda fase o ato de consumir transformando-se em um fim em si mesmo. As pessoas consomem por consumir. É, em outras palavras, um gozo pelo gozo. E, nesse sentido, ele se diferencia de alguns outros pensadores que se debruçaram sobre o consumo.

Enquanto alguns autores acreditavam que, na época, o consumo estava ligado à diferenciação social, à busca pelo status, Lipovetsky entende que esses fatores não são os únicos. Para ele, as pessoas consomem, também, buscando

“viver melhor, gozar os prazeres da vida, dispor do supérfluo”.

Explicando melhor, as pessoas consomem visando também um valor simbólico atribuído às coisas. As férias tornam-se símbolo de paz espiritual e felicidade. E a partir desse valor simbólico que elas são consumidas.

O também francês Jean Baudrillard vai afirmar que esse valor simbólico das mercadorias está ligado à distinção de classe. O consumo de alguns produtos, portanto, proporciona uma certa posição social.

Quando alguém compra um relógio da marca Rolex, por exemplo, não está necessariamente comprando um relógio, mas pagando pelo prestígio que ter um traz. O relógio se torna um símbolo de diferenciação social.

Lipovetsky reconhece, na segunda fase do capitalismo, a presença do consumo pela diferenciação social. Dessa forma, a segunda fase do capitalismo une um prazer pela experiência de consumir, um “gozo pelo gozo” à busca por diferenciação social, por status.

3ª fase (anos 70 até hoje)

A terceira fase, para Lipovetsky, é a era do “hiperconsumo”. Nesse momento, o consumo motivado pela diferenciação social é praticamente desimportante. Agora, prevalece o consumo pelo consumo, pela experiência de consumir.

As pessoas começam a comprar para satisfazer desejos subjetivos, para agradarem a si mesmas, para preencherem vazios existenciais, para se enxergarem nas mercadorias que elas consomem. Essas motivações são importantes para entender as revoluções tanto do consumo quanto da publicidade.

Foto por Vinicios Rosa || Modelo Arthur Malentaqui

Os consumidores, em tempos de “hiperconsumo”, querem enxergar seus valores subjetivos e suas crenças nas mercadorias que eles consomem. Por exemplo, alguém que defende os direitos dos animais e que vai contra toda uma exploração humana de outras espécies, quer comprar um shampoo que não seja testado em animais.

Nesse caso, a figura central que motiva o consumo não é a qualidade do produto, mas a afirmação dos valores de quem o consome. Aquele shampoo, para o consumidor, representa todo um conjunto de valores de defesa dos animais.

Essa situação é propícia para a venda de ideias, de conceitos e valores imateriais. Tudo isso é explorado pelas empresas que buscam passar aos seus clientes uma imagem ecológica, sustentável e engajada com a qualidade de vida dos seus funcionários, por exemplo.

Elas estão vendendo justamente esses conceitos, ainda que, na prática, não os apliquem.

Lipovetsky enxerga uma remodelação dos produtos capitalistas por aquilo que ele chama de “operações de natureza estética”. Aqui não cabe entrar melhor no conceito de “estética”, tão caro à Filosofia, mas entender que os produtos passam a ser “subjetivados de arte”.

As pessoas começam a enxergar toda uma beleza que emociona em algumas mercadorias. Isso ocorre justamente porque as mercadorias trazem consigo valores, visões de mundo vistas e compartilhadas pelos consumidores.

Foto por Vinicios Rosa || Modelo Arthur Malentaqui

Sociedade de consumo, Hiperconsumo e meio ambiente

Como já adiantado nos primeiros parágrafos deste texto, a intenção aqui é fazer uma leitura da sociedade de consumo. Também foi adiantado que essa leitura seria um tanto quanto pessimista. Pessimismo esse que não pode tender ao imobilismo. É preciso fazer alguma coisa.

Lipovetsky, diferentemente de Bauman, acredita que na sua sociedade de “hiperconsumo” os indivíduos começam a buscar viver melhor e consumir melhor. Não é uma inverdade, haja vista que o consumidor ecologicamente preocupado consome produtos que transmitam essa ideia sustentável.

No entanto, como bem identificou Bauman, as pessoas são constantemente estimuladas a consumir mais e mais, sem parar. Esse excesso de consumo, desordenado e nunca saciado, gera danos ambientais absurdos.

Os custos ambientais das roupas, da carne e dos automóveis, por exemplo, são elevadíssimos. E as notícias que chegam cada vez mais comprovam que uma mudança nos hábitos de consumo é urgente. Pensar sobre a sociedade de consumo não deve ser privilégio, mas uma necessidade vital.

Foto por Vinicios Rosa || Modelo Arthur Malentaqui

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