A Ditadura Militar e o seu debate atual

Eleito um presidente que estimula comemorações aos eventos que instituíram o Regime Militar no Brasil, o crescimento da onda do revisionismo histórico preocupa.

Revista Torta
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10 min readApr 26, 2019

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Por Arthur Almeida de Oliveira

Editado por Giovana Silvestri

Foto por Vinicios Rosa | Modelo Gustavo Cremonezi

Uma breve contextualização da Ditadura Militar

Em meio à Guerra Fria, os países se encontravam submetidos a um regime de bipolarização política, econômica e, principalmente, ideológica. Sob o pretexto de “proteção da ameaça comunista”, o Brasil, nesse período, era uma área de influência estadunidense, e, como tal, assumia o modelo capitalista.

Devido ao embargo econômico instituído pelos EUA (Estados Unidos da América) no fim da Revolução Cubana, a ilha se associou à URSS (União das República Socialistas Soviéticas) e à Crise dos Mísseis em 1962 — com a presença militar soviética na América -, intensificaram-se as manifestações de cunho ideológico socialista na América Latina, sobretudo em países como a Argentina, o Chile e o Brasil.

Neste sentido, a história narra que, como em uma espécie de contrarevolução, as forças capitalistas (a dita “direita”) se organizaram de forma a reprimir tais movimentações e, assim, teriam iniciado o Regime Militar, com o apoio da burguesia brasileira (ou seja, uma parcela da população), da mídia tradicional (como, por exemplo, a Rede Globo) e das Forças Armadas.

De início datando da virada do dia 31 de março para 1 de abril de 1964, a história alega que a Ditadura Militar teria começado em razão de um golpe civil-militar que destituiu o presidente João Goulart, sucessor do presidente Jânio Quadros, após a sua renúncia.

O Regime durou 21 anos, encerrando-se apenas no ano de 1985, contando com a governança de 5 militares:

Humberto de Alencar Castelo Branco (1964–1967)

Artur da Costa e Silva (1967–1969)

Emílio Garrastazu Médici (1969–1974)

Ernesto Geisel (1974–1979)

João Figueiredo (1979–1985)

Esse período da história do Brasil foi marcado pela ausência de direitos políticos, civis e sociais da população. Comandando por Decretos e Atos Institucionais (AIs), os ditadores concentraram o poder em suas mãos, passando por cima dos poderes Legislativo e Judiciário e da Constituição — a representante legal máximo da democracia.

Foto por Vinicios Rosa | Modelo Gustavo Cremonezi

Por mecanismos institucionais físicos e morais, a Ditadura repreendia qualquer ação que fosse tida como subversiva. Muitas pessoas foram caladas pela censura, presas pelo afronte com a Polícia, torturadas pelos grandes nomes do Exército Brasileiro (como foi Carlos Ustra, chefe do DOI-CODI), exiladas para outros países ou mesmo continentes e mortas com seus corpos desaparecidos.

A resistência ao regime se manifestava de diversas formas, por meio de atos políticos de estudantes dentro e fora das universidades (com ênfase, sobretudo, na UNE — União Nacional dos Estudantes), das canções e performances realizadas nos festivais de música popular (muito fortes na década de 1970) ou em peças de grupos teatrais politizados, das organizações guerrilheiras armadas nos campos e nas cidades e de revoltas sindicais.

A memória histórica da Ditadura

Hoje, a Ditadura é material de estudo do círculo básico da educação dos brasileiros, em livros didáticos são expostas as realidades violentas sofridas pela maioria da população durante os 21 anos de regime militar. A censura, a tortura e as mortes ocorridas entre 1964 e 1985 não são mais fatos feitos na surdina. Documentos oficiais em domínio público materializam as problemáticas envoltas do sistema. Existem, também, arquivos, museus e prêmios em homenagem às figuras que a Ditadura silenciou.

Porém, mesmo com todas essas evidências da brutalidade do Regime, há ainda quem o defenda. É, dessa forma, que ocorre um fenômeno chamado “revisionismo histórico”, em que, por meio de ambiguidades da narrativa de um evento, coloca-se em xeque a legitimidade de algumas verdades históricas.

No que diz respeito à Ditadura, alguns pontuam a positividade do regime nos âmbitos político-social e econômico, defendendo as Forças Armadas, questionando, assim, a história que coloca esse grupo como protagonista desse período de autoritarismo no país. Um exemplo contemporâneo que sintetiza tudo isso é o recentemente estreado documentário “1964: O Brasil entre armas e livros”.

Análise do filme “1964: O Brasil entre armas e livros”

Foto por Vinicios Rosa

No dia 31 de março de 2019 (dia em que se completou 55 anos do Regime Militar), pré-estreou o filme “1964: O Brasil entre armas e livros”, dirigido por Felipe Valerim, Henrique Viana e Lucas Ferrugem, em 10 cinemas pelo país. A partir do dia 2 de abril, esse material audiovisual já era domínio público, tendo sido publicado na íntegra na plataforma do Youtube.

O documentário se propõe a legitimar visões divergentes do senso comum que se tem do período ditatorial brasileiro. Antes da produção começar, há uma abertura que traz o depoimento em áudio de supostos estudantes e funcionários (não nomeados) ligados à educação que denunciam “boicotes” ou “censura” a propostas de exposições culturais de cunho tido “de direita”, como o longa-metragem em si.

A partir de depoimentos de diversas figuras polêmicas e reconhecidas publicamente pelo seu conservadorismo, o filme questiona a forma como a história narra uma série de eventos, buscando promover a reflexão sobre ocorrências diversas.

Com a presença do guru Olavo de Carvalho, do jornalista William Waack e do monarquista Luiz Philippe de Orléans e Bragança, a peça discorre sobre, principalmente, a responsabilidade da dita “esquerda” nos eventos sociais e políticos, histórica e inteiramente jogada à “direita”.

Apresentando informações parcialmente completas, o documentário contextualiza a Guerra Fria e a disputa ideológica por influência entre os EUA e a União Soviética, como duas forças antagônicas de relação maniqueísta, ou seja, o “bom” e o “mal”.

Os EUA, nesse sentido, são perdoados de sua participação patrocinadora no golpe de 1964 e mantenedora do regime, apresentando-se, no seu lugar, a URSS como, de fato, uma ameaça ao Estado Democrático de Direito, em que se apresentaram documentos de origem tchecoslováquia que “comprovam” planos soviéticos de tentativas de levantes socialistas no país.

Foto por Vinicios Rosa | Modelo Gustavo Cremonezi

No âmbito brasileiro, o documentário, de forma a negar o protagonismo e a proatividade das forças militares no evento de 1964, constrói uma narrativa de crescimento da “esquerda” e das manifestações socialistas, em paralelo à vida política brasileira.

Assim, são destacados:

1- A formação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a sua perpetuação de atuação, mesmo que na clandestinidade, quando proibida no governo de Eurico Gaspar Dutra (1946–1951);

2- A migração da capital do Rio de Janeiro para Brasília (projeto que, os depoimentos apontam como alegórico ao “modelo de cidade comunista perfeito”, em que o Estado estaria geograficamente inacessível à população — esta majoritariamente presente no litoral) durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956–1961);

3- O governo de Jânio Quadros (1961) com seu perfil pseudo-independente de apoio ideológico, seja ele capitalista ou socialista, e medidas de reaproximação com a URSS;

4- As polêmicas do governo populista de João Goulart (1961–1964).

Também para apoiar essa visão incomum dos eventos, o filme ressalta a insatisfação social para com a vida política brasileira do momento, associando a liderança dos eventos à força civil.

A obra assume a ocorrência de um golpe parlamentar, sob a ótica de que a declaração de vacância do cargo presidencial, em função da deposição involuntária de Jango, partira de uma ação popular. Assim, os militares apenas atuam como órgãos mantenedores e provedores do desejo da população.

O documentário segue a linha de criticar a efetividade do regime ditatorial na contenção do crescimento da dita “esquerda”. Em primeiro momento de embate dos ideários, a esquerda clássica ainda se fazia presente e atuava a partir da luta armada, em grupos de guerrilhas como o MR-8, a VAR-Palmeiras, entre outros, e isso foi duramente reprimido pelas forças militares, sendo nomeado como “terrorismo de esquerda”.

Neste sentido, porém, que o documentário critica a fragilidade na repressão das manifestações de uma nova esquerda que surgia, aquela que entrava nos âmbitos e ambientes culturais e acadêmicos e que se fortaleceu ao ponto de se fazer presente até os dias atuais.

Pesquisadores entrevistados na produção, assim, apontam que a censura, por exemplo, foi, além de ineficiente, mal executada. Eles afirmam que foi pela ausência constante de militares nas universidades e nos festivais musicais fortaleceram e permitiram o surgimento de figuras como Chico Buarque e Caetano Veloso, para além do “privilégio” de ditar a história e os seus registros matérias, uma vez que eles que estavam inseridos no meio acadêmico.

Foto por Vinicios Rosa | Modelo Gustavo Forcim

Por fim, o documentário traz à discussão mais dois pontos: a ausência de responsabilização da esquerda na Ditadura e o questionamento do caráter democrático-representativo na Constituição Federal instituída em 1988 (vigente até a atualidade).

A respeito das responsabilidades da esquerda, a peça apresenta as ações das guerrilhas, por exemplo, como um tipo de “terrorismo de esquerda”, que tinha sua parcela de culpa nos casos de violência e morte civil durante o período.

Além disso, também associa os dados de pessoas desaparecidas e dadas como mortas como um resultado de uma manipulação desses grupos subversivos, como se os seus membros forjassem o seu sumiço para que ficassem livres das buscas militares e dos próprios colegas de militância.

Sobre a Constituição, os depoimentos apontam que a Constituinte aproveitou-se da fragilidade da direita após o fim do regime ditatorial e da ampla presença cultural ideológica “esquerdista” para criar a ilusão de representação e contemplação política popular.

O filme em meio a uma onda de retrocesso

Antes da estréia oficial, a obra foi divulgada pelo Twitter de Eduardo Bolsonaro, um dos filhos de Jair Bolsonaro, o presidente eleito. O gesto por si só já é um grande reflexo da força que o conservadorismo e que a extrema direita têm ganhado na contemporaneidade.

Como parte de sua base eleitoral, Jair Bolsonaro apoiou-se fielmente no militarismo, defendendo, inclusive, desde que começou a ter mais destaque midiático, por volta de 2016, o Regime Ditatorial e figuras polêmicas ligadas a ele, como a saudação a Ustra durante a votação do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados.

O político, desde eleito, tem tomado uma série de posicionamentos que reafirmam seu saudosismo para com a Ditadura Militar, dentre eles, a incitação à comemoração dos 55 anos da movimentação de 31 de março de 1964 e as recentes polêmicas envolta do Ministério da Educação.

O ex-ministro da Educação escolhido pelo governo Bolsonaro, por sugestão de Olavo de Carvalho, Ricardo Vélez Rodríguez propôs no dia 3 de abril, pouquíssimo tempo depois do aniversário de 55 anos do início do Regime Militar, uma revisão e readequação dos livros didáticos que retratam as movimentações de 1964 como “golpe” para “revolução”. Dias após essa declaração, o ministro foi demitido sob a alegação de gerar “desgaste desnecessário” às Forças Armadas.

A problemática parecia resolvida, até o discurso de Bolsonaro na posse do novo ministro da Educação, Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub, em que disse: “Queremos uma garotada que comece a não se interessar por política, como é atualmente dentro das escola, mas comece a aprender coisas que possam levá-lo ao espaço no futuro”.

Em alusão ao projeto do “Escola Sem Partido”, o político, para além de legitimar a ideia por trás da proposta de Rodríguez (o ensino sem leitura crítica dos eventos históricos), também retoma aquilo que o documentário de Valerim, Viana e Ferrugem defende: que a educação foi “dominada” pela esquerda e que a forma de detê-la é propor um novo modelo de educação tradicionalista apartado da cultura de leitura crítica.

Nesse sentido, vale a ressalva do recorte de quem são os entrevistados no documentário: todos eram homens cisgêneros brancos e de situação financeira privilegiada. Na mesma visão, é este grupo que, majoritariamente, representa os eleitores de Jair Bolsonaro, cujos princípios morais entram em conflito com as demandas de parcelas da sociedade historicamente marginalizadas e que, por múltiplas questões, muitas vezes, beneficiaram-se de privilégios durante o Regime Militar, justamente pelo seu status social.

A banalização da problemática

A questão que permeia essa discussão a respeito da Ditadura Militar, o não-reconhecimento da memória histórica, as releituras dos eventos históricos sob óticas parciais enviesadas e a proposta de educação sem criticidade é justamente a banalização da violência a que isso tudo está intrinsecamente relacionado.

O Regime Militar, como outros eventos trágicos na história da humanidade, a escravidão negra e o holocausto judeu, envolveu a submissão de um grupo social a outro em uma relação extremamente tóxica de violência, que deixou marcas e legados que continuaram a existir por toda a história do país e do mundo.

Assim, ignorar (pois, é isso que o revisionismo faz na prática) essas violências de naturezas múltiplas é relativizar o sofrimento de um grupo histórico e social. Deste modo, o que a produtora do filme, a Brasil Paralelo, fez e o que Bolsonaro faz constantemente e podem ser vistos como um grande desrespeito às pessoas que viveram e sobreviveram (ou não) àquelas situações a que foram submetidas no exílio e/ou na tortura.

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