REPORTAGEM

A IMPORTÂNCIA DO EQUILÍBRIO CLIMÁTICO

Porque a humanidade não pode deixar o planeta alcançar mais 3 graus em sua temperatura média.

Revista Torta
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Por Lorrana Marino

Editado por Eduarda Motta e João Vitor Custódio

“[O fremen] se debruçou deliberadamente sobre a ponta da mesa e cuspiu em sua superfície polida” Duna, pág 131.

O ato descrito pode soar grosseiro para o leitor descontextualizado, entretanto, ao compreender que a ficção científica de Frank Herbert se desenvolve em um ambiente escasso de recursos e desértico, o ato de compartilhar a água do próprio corpo é um sinal de respeito. Mas, qual a relação do planeta fictício Arrakis, publicado em “Duna” no ano de 1965, com a Terra de 2020?

O cenário da seca. Segundo pesquisas sobre o período Plioceno médio — datado em 3 milhões de anos atrás -, se o efeito estufa continuar se intensificando e a temperatura da Terra subir os 3 graus previstos até 2050, o Hemisfério Sul pode ter uma redução no volume de chuva anual de até 30% comparado ao atual, o que interfere diretamente na agricultura, por exemplo.

Para compreender melhor as consequências das mudanças climáticas, primeiro é necessário entender porque o planeta precisa que o efeito estufa funcione corretamente.

EFEITO ESTUFA, O COBERTOR DO PLANETA

Em entrevista para a Torta, a Doutora em Ciência do Sistema Terrestre, pelo Centro de Ciência do Sistema Terrestre (CCST) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Graciela Tejada Pinell, associa a atmosfera a um cobertor que segura uma parte do calor solar dentro do planeta e possibilita a sobrevivência.

“Os raios de Sol que chegam na Terra são refletidos novamente para o espaço, se nós não tivéssemos a atmosfera, não conseguiríamos manter a temperatura habitável que é em média 22 a 25 graus centígrados, seria por volta de -14 a -21 graus”, explica Pinell.

Esse processo é chamado de aquecimento global, e o “cobertor” é responsável por criar o efeito estufa que, ao pé da letra, faz do planeta um lugar propício para o “cultivo” da vida.

O tecido dessa “manta” que envolve a Terra é formado por gases como: dióxido de carbono, gás metano, óxido nitroso, gases fluoretados e vapor de água. Quando a concentração dessas substâncias aumenta, ou seja, a espessura do cobertor engrossa, a parcela de calor que deveria voltar para o espaço fica retida na atmosfera e desequilibra a média de temperatura do planeta.

O equilíbrio térmico não está associado à igualar graus em todo o planeta, mas a conservar as particularidades climáticas de cada região. Imagine que o clima é uma caixa que delimita até onde as mudanças temporais podem chegar. O tempo é algo constantemente mutável.

Por exemplo: em um dia o tempo pode estar em um canto da caixa, permitindo chuva, no dia seguinte uma corrente de ar pode levá-lo para outra extremidade, possibilitando sol intenso. A caixinha do Nordeste permite que chova e faça sol, mas nunca neve.

Essas caixas espalham-se pelo globo terrestre, cada qual com bordas diferentes, habituadas a determinadas condições e cultivando diferentes relações de vida. O processo de desequilíbrio térmico, no entanto, deforma as caixas, mudando os limites que as alterações de tempo podem chegar.

“Se o efeito estufa diminuir muito, o planeta congela, se ele crescer demais, o planeta cozinha”, Felipe Castanhari, Mundo Mistério episódio 8.

Contrariando a comparação inicial com o planeta de Frank Herbert, a seca não é a única consequência que a disparidade da temperatura global pode gerar. Porém, sejam chuvas intensas ou estiagem, ambos podem se caracterizar como interferências insustentáveis para os seres vivos que habitam as diversas regiões do planeta, prejudicando os ecossistemas dos biomas.

AS CAUSAS DO DESEQUILÍBRIO

O grande responsável pelas mudanças climáticas, como explica o INPE, é, entre outros, a queima de combustíveis fósseis através de automóveis, indústrias e usinas termoelétricas.

Embora esse processo pareça contemporâneo, o uso de novas formas de energia e combustíveis derivados do petróleo tiveram início com a segunda fase da Revolução Industrial (de 1860 a 1900), um movimento que se caracteriza pela produção, lucro e otimização.

“O progresso se realizou nos momentos em que a humanidade conseguiu fazer as forças da natureza trabalharem por ela por meio das máquinas”, Equipe Brasil Escola

Foi nesse período que a temperatura média global começou a subir. Segundo dados da Organização Meteorológica Mundial (OMM), publicados pela BBC, o planeta está “quase um grau mais quente do que estava antes do processo de industrialização”.

A Revolução Industrial, no entanto, também veio carregada de avanços tecnológicos e científicos que impulsionaram áreas essenciais para a manutenção da vida atual, como a medicina preventiva, sanitária e o controle de epidemias.

O problema não está no desenvolvimento em si, mas em como ele afetou e afeta a natureza através da emissão de gases poluentes. Segundo dados de 2018 publicados pela BBC, China, Estados Unidos e União Europeia ocupam o pódio dos maiores emissores de dióxido de carbono no mundo.

Além da queima de combustíveis fósseis, é relevante citar os incêndios florestais. Pinell explicita que não é necessário desmatar mais nenhuma área para manter a economia no Brasil.

As regiões de pastagem presentes em todo território nacional são suficientes, e nota-se que há áreas abandonadas, não utilizadas e que já poderiam ressurgir novamente.

Segundo dados do INPE, de 2004 a 2014 o desmatamento na Amazônia Legal diminuiu cerca 82%, o que representa uma imensa área preservada. Entretanto, desde então as ações de devastação ambiental têm aumentado.

A Doutora ainda expõe que não é o modelo econômico que exige desmatamento, o problema são os grandes proprietários de terra, maiores responsáveis pelas queimadas em regiões amazônicas.

“Na Amazônia por exemplo, quase não existe fogo natural. No Pantanal, esses eventos são bem pouco típicos e geralmente se dão por raios. Mas esse ano não é o caso, a maioria dos incêndios, tanto no Pantanal quanto na Amazônia, têm sido provocados por interesses de aumentar área para gado e agronegócio”, comenta Graciela Pinell.

O artigo “As maçãs apodrecidas do agronegócio brasileiro” esclarece ainda mais o problema:

“O aumento das emissões de gases de efeito estufa (GEE) proveniente do desmatamento e de incêndios florestais no Brasil pode anular os esforços de mitigação das mudanças climáticas pela União Europeia.”

Em 1992, durante a Rio 92, admitiu-se internacionalmente a necessidade de conciliar desenvolvimento e recursos naturais. O encontro, entretanto, não foi o único. Desde a década de 90, a Organização das Nações Unidas promove anualmente encontros com os países membros da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, com o intuito de estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera.

Com isso em vista, compreende-se que o equilíbrio proporcionado naturalmente pelo planeta está sofrendo mudanças causadas por ações humanas (devastação de florestas, queima de combustíveis fósseis etc) e que os ecossistemas serão prejudicados se a temperatura global continuar aumentando. Mas, qual a relevância de preservar biomas?

A IMPORTÂNCIA DA HARMONIA AMBIENTAL

Biomas conservados significam serviços ecossistêmicos em bom funcionamento. Ou seja: provisão de alimentos, regulação climática e serviços culturais.

Entre os serviços das florestas Amazônicas, por exemplo, é possível elencar a manutenção do equilíbrio climático, a regulação hídrica, recarga de aquíferos, captação de dióxido de carbono e retorno de oxigênio para os seres humanos entre outros benefícios para a qualidade de vida.

Exemplificando pela linha econômica, Pinell chama atenção para o projeto Amazônia 4.0, do Pós Doutor pela Universidade do Estado do Colorado, Ismael Nobre, em conjunto com o Doutor em Meteorologia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Carlos Nobre.

O projeto elucida como o Brasil tem tudo para se transformar em uma verdadeira potência ambiental e se tornar líder mundial da economia circular:

O projeto Amazônia 4.0 pauta-se, por exemplo, em uma “distribuição equitativa dos benefícios socioeconômicos” e em uma “valorização intrínseca do bioma Amazônico” | Fonte imagem: Pixabay.

“As plantas da Amazônia contêm segredos bioquímicos, como novas moléculas, enzimas, antibióticos e fungicidas naturais que podem ser sintetizados em laboratório e resultar em produtos de alto valor”.

Em comparação, Graciela Pinell afirma que o poder econômico da Amazônia pode ser maior que o do agronegócio. Ou seja, a fragilização desses ambientes tão ricos resulta em cessar a prestação de diversos benefícios para o ser humano. E afinal, qual o peso do desequilíbrio ambiental?

EFEITOS NA VIDA REAL

Cenários dignos de uma ficção científica tal qual Duna podem se tornar reais e recorrentes sem que a Terra atinja a marca de mais 3 graus. Se o planeta chegar a pelo menos mais 1,5 graus em sua temperatura média, as consequências já ganham semblantes distópicos, como explica a entrevistada.

A realidade atual de pandemia que o novo Coronavírus instaurou poderá se tornar cotidiana, por exemplo, se o derretimento do permafrost do Ártico continuar.

Essa região é um depósito de vidas antigas que, ao descongelar, a matéria orgânica que entra em processo de decomposição pode vir a liberar o equivalente a “quatro a seis anos de emissões de carvão, petróleo e gás natural”, agravando o processo de aquecimento global.

Como se não fosse perigoso o suficiente, esses sedimentos milenares contidos no permafrost tornam mais real a probabilidade de vírus ou pestes erradicadas e novas serem liberadas.

Entretanto as mudanças não precisam atingir o Ártico para desencadear uma pandemia. “Se nós mexermos muito mais na floresta amazônica, vamos ter pandemias e quantidades de vírus que não estamos preparados para lidar”, explica a Doutora.

As florestas e seus ecossistemas mantêm vírus e formas de vida que, com 3 graus a mais e desmatamento, não conseguirão se manter estáveis. Como o caso dos morcegos na Indonésia que, ao precisarem sair de seus habitats em busca de alimento, deram início a primeira contaminação conhecida do vírus Nipah.

Queda na produtividade vegetal, crise na pecuária, deficiência hídrica, surgimento de doenças e desastres naturais são algumas consequências socioeconômicas que um clima imprevisível, digno de um planeta sem previsão de estabilidade, pode trazer.

O PROBLEMA DO NEGACIONISMO CIENTÍFICO

Ainda que 97% dos cientistas concordem que as mudanças climáticas sejam reais, a Organização das Nações Unidas (ONU) tenha uma agenda de desenvolvimento sustentável, os países participem de discussões anuais sobre o clima e as consequências do desequilíbrio estejam claras, o negacionismo climático existe e atua.

O Brasil foi o mais impactado pela produção de desinformação devido a uma educação para a ciência menos consolidada”. Fonte imagem: Ensaio fotográfico dos alunos da Universidade Sagrado Coração Bauru (USC) sob orientação da professora Erica Franzon.

Segundo fala do atual Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, exposto no artigo Negacionismo climático no Brasil”, as mudanças climáticas antropogênicas são “um assunto acadêmico controverso” e há “muito alarmismo sobre o assunto”. Enquanto encarregado do ministério, Salles fechou a Secretaria de Mudanças Climáticas e Florestas e o Brasil desistiu de sediar a Conferência do Clima em 2019.

Graciela Pinell se mostra triste com essa realidade, pois Ciência é algo difícil e requer muito esforço. A situação do negacionismo climático a lembra sobre a questão do cigarro, em que cientistas muito bem pagos defenderam por anos que fumar não carregava risco para a saúde, enquanto pesquisadores sérios lutavam para provar o contrário.

A Ciência é rigorosa e demanda tempo para sair; um especialista é corrigido por outros especialistas, como explica a Doutora. “Você é avaliado e revisado por cada frase que escreveu” e ainda sim há descrédito e desprezo por parte das pessoas, como analisa o médico Drauzio Varella.

Pinell aponta que é preciso mais jornalismo científico, para que seja feita uma união entre sociedade e ciência por meio de uma linguagem simples e acessível. “Educação, educação e educação” a pesquisadora enfatiza.

O fato é, o planeta está esquentando e é preciso que as pessoas acreditem nisso para que as consequências sejam mitigadas. Parafraseando a ficção científica de Herbert uma última vez:

Passado um ponto crítico no espaço finito de um ecossistema planetário, a pergunta, no caso dos seres humanos, não é quantos conseguirão sobreviver dentro do sistema, e sim que tipo de vida levarão aqueles que sobreviverem (Duna, edição 2017, Apêndice I).

Você pode aprender mais sobre os limites do planeta Terra no Dossiê da Sobrecarga, publicado pela Revista Torta.

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