REPORTAGEM

ASSEXUAIS: HÁ ESPAÇO PARA O CINZA NO ARCO-ÍRIS?

A comunidade que encontrou refúgio nas redes sociais diante da invisibilização da grande mídia.

Revista Torta
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Por Eduarda Motta

Editado por Elisa Romera e João Vitor Custódio

Uma piada interna entre a comunidade assexual (que dizem preferir bolo do que sexo) fez do doce um símbolo de reconhecimento || Arte: Júlia Borella/Revista Torta

Sendo um campo das Ciências Sociais em constante redefinição, pesquisadores dedicam suas carreiras buscando terminologias que possam categorizar algo que, na verdade, é inerente, fluido e subjetivo: a sexualidade humana.

Quando voltamos às origens dos termos hoje popularizados, encontramos Karl-Maria Kertbeny, um ativista austro-húngaro que publicava folhetins em Berlim no ano de 1869. Na época, o autor comentava a respeito da promiscuidade de alguns comportamentos sexuais, sobretudo entre pessoas do mesmo sexo.

Assim, ao tentar denominá-las de um modo que não fosse ofensivo, o jornalista ignorou o subjetivo “pederasta” usado naquele período e passou a utilizar o termo “homossexual” para quem se relaciona com pessoas do mesmo sexo e “heterossexual” para quem se relaciona com o sexo oposto.

Ainda que suas definições tenham se popularizado e ampliado para outras minorias sexuais como “bissexuais” e “transexuais”, essa categorização seguiu pautada na classificação de desejos e identidades sexuais expressas — e o que caiu no esquecimento foi outro termo utilizado por Kertbeny: a “monossexualidade”.

Essa seria a primeira definição do que, no século XXI, conheceríamos por “assexualidade”. Tal palavra, que no início se referia apenas a quem não sentia desejos nem mantinha relações sexuais, se adaptou à crescente identificação de pessoas ao espectro.

Logo, ela passou a representar não somente aqueles que se restringiam ao sexo completamente, mas também a indivíduos que sentem suas vontade sexuais oscilarem ou, até mesmo, que ela seja inexistente, tornando-se um termo “guarda-chuva

Desse modo, assim como podemos identificar variações, preferências e particularidades entre os bissexuais, o mesmo ocorre com os assexuais, ou ace, como são chamados nos Estados Unidos.

Os “grayssexuais”, ou pessoas que se identificam na área cinza do espectro, são os que mais sentem essa fluidez sexual. Já os denominados “demissexuais” têm o desejo condicionado a uma conexão emocional, podendo, nesse contexto, vivenciar essa atração de forma plena.

Além disso, é importante considerar que, ainda que a maior parte da população seja alossexual (sinta desejo sem restrições) e que tenhamos estabelecido acordos sociais com base em preceitos sexonormativos, há uma diferença dificilmente abordada entre interesse sexual e romântico.

Pasmem: os dois não necessariamente andam juntos.

A atração sexual, ligada ao ímpeto carnal, é um fator independente do interesse romântico, que se trata de sentimentos como a paixão e o amor. Com isso, uma mulher pode se identificar como homoromântica e demissexual, por exemplo.

Essa distinção explicita que é sim possível que assexuais tenham relacionamentos amorosos de forma plena, adaptando o sexo conforme as particularidades do casal.

O tabu acerca de discussões do tipo corrobora para a criação de estigmas e preconceitos a respeito do grupo, e isso não se restringe às suas relações.

Assexuais podem ser também arromânticos, ou seja, não sentir atração nem afetiva, nem sexual | Arte: Reprodução/IG Queer

Preconceitos e representatividade

A identificação dos aces muitas vezes é tardia por conta da falta de representatividade que esse grupo enfrenta e, quando acontece, é constantemente invalidada ou mal compreendida. Quando soma-se a esse cenário o pertencimento a outras minorias — de pessoas racializadas ou com deficiência, por exemplo — a invisibilização é ainda maior.

De acordo com os cálculos de Anthony Bogaert, pesquisador do Departamento de Psicologia da Universidade de Brock, no Canadá, 1% da população mundial se identifica enquanto assexual.

Já no Brasil, em pesquisa realizada pela Universidade de São Paulo (USP), o número se mostra mais expressivo: 7,7% das mulheres e 2,5% dos homens consideram as relações sexuais descartáveis.

Porém é importante considerar alguns pontos diante desses resultados: o primeiro é que a elaboração da pergunta na pesquisa brasileira não remete explicitamente à assexualidade e o outro é que, para fazer uma correspondência verídica, seria necessária a familiarização das pessoas entrevistadas com os termos e variações da assexualidade.

Ainda segundo Bogaert, o campo científico não tem um consenso a respeito da questão, que “é considerada uma variação singular de orientação sexual” e não uma patologia, apesar de, em alguns casos, determinados cientistas relacionarem erroneamente a falta de desejo sexual a traumas e distúrbios hormonais.

Essa patologização é entendida como preconceituosa pela comunidade LGBTQIA+, que já lidou com esse descrédito outras vezes, como no caso da transexualidade, que, até 2018, era considerada um transtorno mental.

Entende-se que muito dessa falta de representatividade seja resultado da hipersexualização social nas produções cinematográficas, contribuindo, assim, para a visão de que uma pessoa sexualmente ativa seria a única forma de um adulto saudável.

Dessa forma, como explica o artigo “Assexualidade em seriados televisivos: uma análise sócio-histórica” do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL):

“As categorias como homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade são construídas a partir de um direcionamento da atração sexual (ao mesmo sexo, ao oposto ou a ambos), em uma lógica na qual a sexualidade é determinada pelo direcionamento ao outro.”

Nesse contexto, a assexualidade, que é caracterizada pela ausência desse direcionamento sem, nem mesmo, ser considerada para compor um papel de destaque numa obra televisiva frente aos padrões da cultura hegemônica.

Com base no estudo, que teve por objetivo analisar a representatividade assexual nas séries, as produções ocupam o papel fundamental de proporcionar diálogos e disseminar conhecimentos culturais, sendo capaz de auxiliar na construção do imaginário social.

Entretanto, a identificação e o reconhecimento do indivíduo assexual são limitados a cenas escassas, implícitas e que, muitas vezes, reforçam a problemática de ser associada a um distúrbio. Nas palavras dos autores:

“A partir dos episódios investigados foi possível aferir a assexualidade nos seguintes contextos: tratada como fenômeno desviante e patologizado; como aspecto pouco representado nos seriados; ou como parte de possibilidade de ser e existir no mundo.”

Nos — raros — casos em que a orientação é tratada de forma adequada, é por meio de diálogos rápidos. Onde o debate costuma ser aprofundado, no entanto, é nas redes sociais.

A união do grupo

Criada em 2010, a Ace Week é uma das principais formas de militância ativa na comunidade | Foto: Reprodução/Asexual Awareness Week

Enquanto a TV e as séries são importantes para dar visibilidade a essas pessoas e colaborarem para a construção de novas perspectivas, a internet constitui e fortalece os vínculos criados entre os membros dessa comunidade.

Pode-se afirmar que a militância assexual teve origem na internet há cerca de 20 anos e que, desde então, esse é o principal canal de informação e orientação sobre o assunto.

Nesse quesito, a comunidade tem tido avanços, já que a letra “A” é cada vez mais incluída na sigla em sua forma resumida (LGBTQIA+), trazendo, dessa forma, mais destaque até mesmo entre seus pares.

A elaboração da bandeira, nas cores preto, cinza, branco e roxo, também foi estabelecida online e se tornou o principal símbolo representativo do movimento, abrangendo todos aqueles dentro do espectro assexual, em qualquer das suas variações.

E foi pelo movimento ter se expandido e criado laços entre si que já houveram alguns eventos próprios para fortalecer a visibilidade ace, como a “Parada Assexual do Brasil”. A primeira delas aconteceu em 2015 e foi organizada por meio do Facebook.

Outro movimento recente é a “Ace Week”, fruto do fortalecimento e articulação dos membros na web. A semana tem por objetivo transmitir informações para fins educacionais e de conscientização para que, assim, a discussão se amplie até alcançar patamares mais concretos no Congresso e na grande mídia.

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