30REPORTAGEM

COMO A UCRÂNIA TORNOU-SE DISPUTADA PELA OTAN E RÚSSIA

Com a invasão russa em fevereiro deste ano, uma guerra começou no território ucraniano e as razões dela passam diretamente pela organização.

Revista Torta
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Por Marcelo F. Salvatico

Editado por Elisa Romera e João Vitor Custódio

Enquanto a Guerra se prolongar, o valor do gás e do petróleo continuará a subir, e novas sanções podem ser utilizadas. Foto: Reprodução/Unsplash

Em 1949 é assinado o Tratado de Washington, dando início à Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN. Ela foi criada para combater o avanço da União Soviética durante a Guerra Fria, que ameaçava os sistemas políticos e segurança pública da Europa Ocidental e dos Estados Unidos da América (EUA).

Mais de 30 anos após o fim do conflito, a OTAN segue em processo de expansão, algo que incomoda Vladimir Putin e a Rússia, sendo um dos estopins para a Guerra da Ucrânia em fevereiro deste ano.

A Ucrânia, comandada pelo ex-humorista e atual presidente, Volodomyr Zelensky, resiste fortemente aos ataques russos e continua buscando ajuda internacional, principalmente da organização.

Para entender o porquê dessa expansão ser uma ameaça de ataques entre essas grandes potências, é necessário se aprofundar nas relações dos nossos atores principais: Ucrânia, Rússia e a OTAN.

A OTAN E SUAS MOVIMENTAÇÕES PÓS-GUERRA FRIA

O bloco, criado após o fim da Segunda Guerra Mundial e liderado pelos EUA, tinha como premissa combater o avanço soviético, e seu artigo 5º é o que nos ajuda a entender melhor a organização.

A premissa do artigo é de defesa coletiva, o que significa que:

“… um ataque contra um dos Aliados é considerado um ataque contra todos os Aliados.”

Ou seja, se um dos membros (como Itália, França e Reino Unido) fosse atacado, a retaliação viria com o apoio de todo o bloco, mesmo dos países que não estão no continente europeu.

Em 1955, a Alemanha Ocidental entrou para a organização, e isso foi um dos estopins para que a então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) criasse o Pacto de Varsóvia, que tinha função semelhante à da OTAN. A união contava com a parte Oriental da Alemanha e outros seis aliados soviéticos.

Enquanto a organização ocidental se expandia com as entradas de Grécia, Turquia e Espanha durante a Guerra Fria, o Pacto de Varsóvia não agradava seus membros. Diferente dos EUA, que enviavam ajuda militar aos aliados, os soviéticos deixaram suas tropas nos países do Pacto, o que gerava desconfiança entre eles.

Com o fim da União Soviética em 1991, o Pacto de Varsóvia foi finalizado e os países que eram parte dos soviéticos buscaram suas independências, aproximando-se do Ocidente. A OTAN, ao contrário do Pacto, não terminou e continuou a sua expansão.

Visto que na década de 90 a Rússia estava quebrada e sem muito poder de revidar as ações dos opositores, a Polônia, a República Tcheca e a Hungria, todos ex-membros do Pacto de Varsóvia, entraram no bloco,.

Em 2004, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia, países que eram membros do Pacto e parte da URSS, entraram para a OTAN. Em 2009, foi a vez da Croácia e da Albânia, seguidos dos mais recentes Montenegro (2017) e Macedônia do Norte (2020).

Sobre intervenções militares, a organização realizou, até o momento, poucas, sendo a primeira durante a Guerra da Bósnia (1995) e em seguida na Guerra do Kosovo (1999); a OTAN também atuou no Iraque e no Afeganistão.

DESCONTENTAMENTO DA RÚSSIA

Embora a OTAN tenha realizado intervenções em territórios que já pertenceram aos russos, o que realmente incomoda Moscou é a expansão do bloco para a Europa Oriental.

A principal reclamação da Rússia é que essa expansão está cada vez mais próxima de seu território, o que ameaça a sua segurança pública.

Além disso, as movimentações da Ucrânia para entrar no tratado contrariam o presidente Putin porque, para ele, o país não se tornou independente sozinho, mas, sim pelo desmembramento da URSS, acrescentando que

“É importante entender que a Ucrânia nunca teve uma tradição consistente de ser uma nação de verdade. Começaram a copiar modelos estrangeiros que não faziam parte de sua cultura”

O país vizinho também possui importância econômica para Putin e os nacionalistas russos por ter uma forte agricultura, usinas nucleares e investir em tecnologia. Ainda, a Ucrânia é uma barreira geográfica para possíveis invasores do território russo e tem um potencial lucrativo muito expressivo, por possuir gasodutos russos que levam gás natural à Europa.

POR QUE COM A UCRÂNIA É DIFERENTE?

Após o fim da URSS, a Ucrânia foi atrás de sua independência, e os anos 90 foram marcados por uma estabilização da economia. Além disso, cresceu o sentimento nacionalista e começaram os diálogos com a OTAN.

Foi em 2004 que começaram os atritos com a grande vizinha. Nas eleições daquele ano, o candidato pró-Rússia, Viktor Yanukovych, foi o vencedor. Porém, após acusações de fraude, Viktor Yushchenko, líder da oposição, convocou protestos para a realização de novas eleições.

As ações foram chamadas de Revolução Laranja e culminaram em uma nova eleição. O vencedor foi o próprio Viktor Yushchenko, que foi quem começou, posteriormente, os atritos com Putin.

Yushchenko governou a Ucrânia entre 2005 e 2010 e começou a questionar e querer negociar com a Rússia. A negociação pelo gás natural que passava pelo território não deixou Moscou feliz e gerou desconfiança mútua. Aqui, temos um ponto de virada nas relações entre os líderes de cada nação.

Nas eleições seguintes, , Viktor Yanukovych foi eleito após a gestão impopular de Yushchenko e governou a Ucrânia de 2010 a 2014, aplicando, assim, medidas diplomáticas favoráveis à Rússia.

Mesmo com os pedidos populares quanto à adesão ao tratado cada vez mais recorrentes,, em 2010 o parlamento ucraniano aprovou uma lei que encerrava essa possibilidade.

A partir disso, a Ucrânia passou a se ver mais polarizada entre as partes Ocidental e Oriental e, em novembro de 2013, uma série de acontecimentos culminou em uma crise no país. Foi naquele mês que o governo suspendeu os preparativos para associação à União Européia e, assim, teve início o Euromaidan.

Com o movimento, estabeleceu-sr uma onda de protestos na Ucrânia que exigiam uma maior integração do país com a Europa. Após a revolta, em 22 de fevereiro de 2014 Yanukovych abandona o país e foge para a Rússia.

Com o país em convulsão e sem um líder, a Ucrânia ficou vulnerável, dando início, em 2014, à crise na Crimeia. Dois dias após a fuga de Yanukovych, manifestantes derrubaram o governo do prefeito da cidade de Sevastopol, aliada de Kiev.

Nos dias seguintes, grupos paramilitares tomaram os prédios da Presidência e do Parlamento, além de dois aeroportos na Crimeia. A Rússia aproveitou o fervilhar para começar a anexação do território.

O parlamento da região levantou uma proposta para fazer parte do território da Federação Russa, que foi aprovado em referendo no dia 16 de março de 2014, mas a Assembléia Geral das Nações Unidas (AGNU) declarou o movimento como inválido.

UCRÂNIA VOLTA A SE APROXIMAR DA OTAN

O presidente Petro Poroshenko (2014–2019), um dos oligarcas mais ricos do país, foi quem retomou as conversas com a Europa. Em junho de 2014 ele assinou um acordo de livre comércio com a União Europeia e mencionou um plebiscito sobre a entrada na OTAN.

Poroshenko também tinha um discurso de “descomunização”, querendo desvincular a imagem e história da Ucrânia e Rússia e mostrar que não eram o mesmo povo.

No período em que foi líder Poroshenko envolveu-se em diversos esquemas de corrupção. Com a pauta anticorrupção, surge o candidato Volodomyr Zelensky, atual presidente da Ucrânia.

Zelensky, por incrível que pareça, foi o protagonista de uma série televisiva chamada “Servo do Povo” em que era um professor que foi eleito presidente após um discurso seu viralizar. Em 2019, ele elegeu-se ao cargo pelo partido que carrega o mesmo nome da produção audiovisual.

De origem judia e falante de russo, Zelensky tem mais de 16 milhões de seguidores no Instagram e utiliza a rede para seus pronunciamentos. Ele traz o discurso anti-Rússia e a promessa que faria diferente dos últimos presidentes.

Autodeclarado rival de Putin, o presidente ucraniano carrega um sentimento nacionalista que quer a entrada do país à OTAN e afastamento das políticas russas.

O ATAQUE RUSSO

Em fevereiro deste ano, após mais de um mês com tropas cercando as fronteiras ucranianas, a Rússia invadiu o país.

Com estabilidade na política interna russa, um vácuo de lideranças ocidentais fortes e uma menor dependência do mercado europeu, Putin decidiu que esse seria um bom momento para as invasões.

O ataque é chamado por Moscou de “Reconhecimento e Missão de Paz”, com a intenção de “resolver o problema ucraniano”. Esse problema a qual Putin se refere é a “desnazificação” do país, que praticou diversos genocídios aos apoiadores russos no território.

Embora haja entre 10 e 20% de autodeclarados nazistas nos grupos paramilitares da Ucrânia, nas eleições, os neonazistas tiveram apenas 1,6% dos votos.

O real problema ucraniano para Putin é o crescimento do sentimento nacionalista na Ucrânia, que aumenta a resistência contra a Rússia e sua cultura.

Os russos reconheceram a República Popular de Luhansk e a República Popular de Donetsk como independentes após o envio de tropas para as regiões, e também atacaram pelo sul, na Crimeia, e pelo norte na fronteira com a Bielorrússia.

Após mais de um mês do início da Guerra, a Rússia já tomou as duas usinas nucleares do país, cercou a capital Kiev e tomou controle de diversas cidades-chave.

E COMO A GUERRA ACABA?

Como já era esperado por Moscou, os países europeus e os EUA lançaram diversas sanções contra a Rússia. Mas, dessa vez, elas vieram mais pesadas.

Entre as mais importantes, estão a exclusão de bancos do sistema Swift , congelamento de ativos do Bank of Russia, bloqueio de cartões de crédito, cassação de bens de oligarcas russos e a não homologação do gasoduto Nord Stream 2, que aumentaria a exportação de gás para a Europa.

As sanções também são feitas por multinacionais, como Coca Cola, Apple e McDonald’s (filas gigantescas se formaram para aproveitar os últimos lanches do restaurante por um tempo, inclusive).

Até o momento, as sanções não foram suficientes para a Rússia tirar o pé do acelerador. Para que a Guerra acabe, Putin exige que:

  • a Ucrânia nunca faça parte da OTAN;
  • reconhecimento da Crimeia como território russo;
  • reconhecimento de Luhansk e Donetsk como independentes;
  • desmilitarização e desnazificação da Ucrânia.

A Rússia quer que a Ucrânia tenha um status de neutralidade, além de evitar futuros conflitos armados e nucleares com o país. Porém, a Ucrânia tem surpreendido em defender seu território, e o alargamento da Guerra prejudica os russos.

Conforme a Guerra se estende, mais sanções são impostas contra a Rússia, a pressão sobre Putin cresce e, junto a isso, os impactos na economia mundial.

PREOCUPAÇÕES E PRÓXIMOS PASSOS

A maior preocupação com o conflito é a população civil. Os números ainda são incertos, mas já são mais de mil mortos e dois milhões de refugiados do país. Teme-se que esse alto número possa gerar uma crise humanitária na Europa.

Outro ponto de atenção é a China, parceira econômica da Rússia. Até o momento, os chineses não declararam apoio mas mostraram preocupação com as sanções. Os chineses querem que a situação seja resolvida o quanto antes.

Em entrevista, Gabriel Cepaluni, doutor em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (USP), diz que não há preocupação por enquanto de uma retaliação da China às sanções do Ocidente:

“[…] a China tomará as decisões cautelosas que sempre tomou desde os anos 90 e continuará buscando o crescimento econômico. O partido comunista chinês está muito preocupado em preservar a ordem doméstica. Uma queda brutal do crescimento chinês é uma ameaça ao regime de Pequim.”

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