REPORTAGEM

DISPARIDADE TEMPORAL ENTRE CIÊNCIA E JORNALISMO DIANTE DA PANDEMIA

Sociedade da informação acentua cobrança de jornalistas e cientistas na busca e divulgação de vacinas para a Covid-19.

Revista Torta
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Por Emanuele Almeida

Editado por Eduarda Motta e João Vitor Custódio

A pós-modernidade propiciou a tolerância popular em relação a revisionismos históricos, pseudociências e mitos, que assim como as fake news, ascendem exponencialmente devido a sua conveniência para o regime capitalista e globalizado da contemporaneidade. Nesse contexto, ocorre a falta de compromisso com a verdade, relacionada à desvalorização do conhecimento científico. || Foto: Bruno Azevedo.

Os acontecimentos históricos transformaram a realidade do Jornalismo. Desde a invenção da prensa até a Revolução Industrial o trabalho da imprensa se renovou e modificou a realidade da sociedade do século XVIII.

Atualmente, com a mudança histórica do cotidiano mundial diante do novo Coronavírus, o Jornalismo teve que se atualizar e trabalhar de uma forma nunca antes vista. Porém com essas mudanças também vieram novos desafios, principalmente diante da relação temporal entre informação e ciência.

Vivemos em uma sociedade da informação

A partir do aumento de investimento em tecnologia no século XX, o sociólogo espanhol Manuel Castells analisou em sua obra “Sociedade em rede” a realidade contemporânea. Em seu estudo, ele notou um grande avanço tecnológico em pouco tempo; no qual a indústria capitalista se voltou para a produção de conteúdo informacional, porém sem segurança de veracidade das informações produzidas.

Então, pode-se resumir a sociedade da informação como o momento em que os avanços tecnológicos cresceram demasiadamente e modificaram a capacidade da sociedade de processar novas informações. Diante disso, é possível analisar o consumo em larga escala de informação que possuímos, principalmente no contexto atual de crise sanitária e política.

Segundo o Observatório da Imprensa e Kantar IBOPE Media, os meios tradicionais de comunicação tiveram grande aumento de acesso aos seus produtos na quarentena, o que traduz a procura da população por informação rápida e diária.

Seguindo essa lógica, é importante notarmos que somos bombardeados por informações a todo momento — verídicas ou não — principalmente nas redes sociais. E enquanto isso acontece, a imprensa tenta combater a desinformação; e o público, indo na contramão, viraliza inverdades nas redes sociais.

Hoje, nos vemos diante desse problema, como é possível entender no texto “Enfraquecimento das metanarrativas influencia a difusão de fake news”, publicado na Torta.

Concomitantemente, são lançados diariamente todo tipo de pesquisa científica relacionada ao novo Coronavírus e os jornais são cobrados de forma constante por atualizações.

Dessa forma, um caos informacional está instaurado, o que podemos chamar de “infodemia”, como nomeou o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) Tedros Adhanom Ghebreyesus.

A ansiedade dentro da sociedade da informação

O filósofo Francis Bacon disse uma vez “o conhecimento é em si mesmo um poder”, e essa frase se aplica na realidade atual de infodemia. Com todo o arsenal de informações disponíveis online, as pessoas sentem a obrigação de estarem cientes de tudo que ocorre no mundo.

Assim, a sociedade informacional desenvolve a capacidade cognitiva de associar várias informações, gerando uma forma predominante de poder. No entanto, ao mesmo tempo, causa uma necessidade exorbitante de se saber de tudo num piscar de olhos.

No contexto atual, é possível aplicar isso na situação de pesquisas de uma possível vacina para a Covid-19. A ansiedade de informação gera cobrança por um resultado científico e sua divulgação por jornalistas.

O jornalista José Aparecido de Oliveira e o pós-graduando em Comunicação Social Isaac Epstein, desevolveram um artigo intitulado “Tempo, ciência e consenso: os diferentes tempos que envolvem a pesquisa científica, a decisão política e a opinião pública”, que trata sobre como a ciência tornou-se mais atrativa para a sociedade na última década.

Contudo, segundo os autores, a população não é ciente do processo de estudo científico e do tempo que demanda para algum resultado ser alcançado e aprovado pelos “pares”, ou seja, por outros cientistas.

Portanto, para a microbiologista Natalia Pasternack, em entrevista ao programa “Roda Viva”, a Ciência é incompatível com ansiedade de informação, principalmente devido ao imediatismo cobrado pelas pessoas. Pois a Ciência, segundo ela, não é exata, demanda tempo e é suscetível a mudanças.

E diante de tudo isso, surge uma dicotomia temporal: a relação entre o tempo da pesquisa científica e o tempo da informação jornalística.

Tempo da ciência

O imediatismo do Jornalismo, junto a pressão político-social, faz com que a vacina contra a COVID-19 esteja sendo produzida em tempo recorde || Foto por Athit Perawongmetha/Reuters

É perceptível que fora da comunidade científica pouco se é discutido sobre o tempo real da pesquisa, principalmente da clínica.

Segundo o site do Hospital Israelita Albert Eistein, esse tipo de estudo trabalha com seres humanos e busca avaliar a segurança e eficácia de um procedimento, medicamento ou uma vacina por meio de levantamento de dados que envolve exames, entrevista, coleta de sangue ou outros materiais biológicos e etc.

A partir disso, é importante saber que essa pesquisa aborda várias fases, que podem variar entre semanas e anos. A dengue, por exemplo, surgiu no Brasil em meados do século XVII, porém a primeira vacina aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) — que ainda não é conclusiva e totalmente eficaz — foi criada em 2015, depois de muitas décadas de estudo.

Então, é necessário entender que a linearidade temporal da Ciência é metódica e demanda tempo e, muitas vezes, pode ser contrariada e não aprovada pela comunidade científica. E isso é visível na situação atual de pandemia.

Muitos estudos clínicos são abortados por falhas nos processos e incompatibilidade, como o estudo australiano sobre a Ivermectina (utilizada como antiparasitário de amplo espectro), que foi erroneamente interpretado e lançado como uma possível cura para o novo Coronavírus.

Tempo do jornalismo

“O acontecimento, então, é tudo aquilo que irrompe na superfície lisa da história entre uma multiplicidade aleatória, porém constante de fatos virtuais. Até porque, para o jornalismo, um simples fato, inconcluso, supostamente verídico, torna-se matéria-prima para se chegar ao produto notícia.” Muniz Sodré

De acordo com o texto de José Aparecido e Isaac Epstein, o tempo do Jornalismo para divulgar os avanços científicos e sanar a ansiedade e curiosidade da população é mais curto que o tempo da pesquisa científica. E, segundo os autores, a consequência dessa condição temporal é uma assimetria entre o tempo do estudo, da divulgação e da necessidade de cura dos pacientes.

O professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) e presidente do Instituto de Desenvolvimento do Jornalismo (PROJOR), Francisco Belda, em entrevista à Torta, afirma que diante da sociedade informacional que vivemos existe uma expectativa da população para respostas rápidas, concisas e milagrosas, o que vai na contramão do tempo metódico que a ciência demanda.

Segundo Belda, em frente a esse momento histórico que presenciamos, lidamos com a vida e a morte diariamente. E, como resultado, essas expectativas tomam contornos de desespero que só podem ser sanados pelo estudo científico e divulgação noticiosa.

Outros desafios

Conciliar as expectativas da população a respeito do tempo de produção científica e jornalística é um trabalho árduo|| Foto por Pixabay

Dessa forma, o professor concorda com a afirmação de Oliveira e Epstein que relata a falta de compreensão da população diante da Ciência e seus processos:

“Nós convivemos historicamente com mazelas humanas sem respostas exatas, como a dengue e a AIDS, que há muito tempo são estudadas, porém ainda não possuem resultados conclusivos”

Para ele, além da desinformação e da disparidade temporal com a Ciência, o jornalismo científico enfrenta problemas geopolíticos para difundir conteúdo à população.

“Em frente à todas essas iniciativas corporativas de indústrias farmacêuticas privadas e públicas ao redor do mundo, em uma corrida atrás de uma vacina, muitos processos científicos são deixados para trás”, afirma Belda.

As Forças Armadas, por exemplo, produziram um estoque de 1,8 milhão de comprimidos de cloroquina, mesmo após vários estudos não comprovarem a eficácia da droga na cura do Coronavírus.

De acordo com Belda, os interesses políticos e econômicos nos tempos atuais, muitas das vezes, levam em conta o alcance de popularidade e capital intelectual que uma possível vacina pode dar ao seu país.

O professor explica que essa disparidade temporal pode acentuar discursos políticos e comportamentos extremos na sociedade. A obrigação da imprensa, de publicar e criticar ações públicas, acarreta reações sociais indesejadas, como a violência verbal e física aos jornalistas nas coberturas cotidianas.

Essas situações de ataque contra a imprensa, segundo Belda, são resultado da polaridade política que se acirrou desde a última campanha presidencial de 2018. E que diante da realidade pandêmica que vivemos, se acentuaram e até mesmo impediram jornalistas de realizarem seu trabalho.

É possível perceber que a cobertura de Ciência no Brasil, portanto, sofre com vários problemas para ser feita de forma eficaz e satisfatória para a população. Assim como a própria pesquisa científica convive com a demanda diária de resultados em um país que muitas vezes contraria indicações sanitárias.

Dessa forma, o professor concorda com a disparidade entre o tempo do Jornalismo e o tempo da Ciência, porém não considera que exista uma resolução para essa situação. Belda acredita que a transparência e esclarecimento para a sociedade é o que poderá ajudar na compreensão da situação pandêmica atual e no debate público.

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