“Eu não sou tão triste assim, é que hoje eu estou cansada.”
Ninguém nasce com dupla jornada de trabalho, naturaliza-se a dupla jornada de trabalho
Por Giovana Silvestri
Editado por Arthur Almeida e Rafael Junker
Parafraseando Simone de Beauvoir (1967), em “O Segundo Sexo”, ninguém nasce com dupla jornada de trabalho, naturaliza-se a dupla jornada de trabalho. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a dupla jornada que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora essa relação intermediária, e a entende como natural, entre a fêmea e as jornadas que qualificam o feminino.
O artigo de Taysa Silva Santos, “A condição feminina: Dupla Jornada de trabalho”, começa com duas citações que caracterizam a dupla jornada feminina, uma de Clarice Lispector, que compõe o título deste texto, “Eu não sou tão triste assim, é que hoje eu estou cansada” e outra de Elliane Martinez que caracteriza mais diretamente a condição de trabalho e vida do feminino na sociedade.
“[…] Tem o trabalho, tem os filhos, tem o marido, tem a casa… e eu, como fico? […] Aí um belo dia, a gente vai olhar a agenda e descobre que não tem tempo para nada que não seja trabalhar e cuidar dos outros. […] A gente tem de se permitir ser feliz”.
Esferas e Gêneros
Afinal, o que é a dupla jornada de trabalho? Existem, como comentado por Silva Santos, duas esferas de trabalho: a pública e a privada, por mais que ambas existam, os gêneros, o feminino e o masculino, ocupam diferentes tempos, ações e valores dentro de cada esfera. Essas diferenças foram naturalizadas na sociedade, devido aos padrões de gêneros, ao modelo patriarcal e ao sexismo.
A jornada de trabalho da esfera pública caracteriza-se por acontecer “fora do lar”, ou seja, é o trabalho diário para o sustento de um indivíduo ou da família. A jornada de trabalho da esfera privada caracteriza-se por acontecer “dentro do lar”, ou seja, são as tarefas domésticas de limpeza, zelo e manutenção de uma residência.
Devido às construções sociais de gênero, a sociedade pressupõe, impõe e articula tempo, ação e valores para cada gênero dentro das esferas de trabalho. O masculino e o feminino são os alicerces e alimentos para a existência da dupla jornada.
A mulher (sexo biológico) é entendida na sociedade como representante do feminino (gênero social), o homem (sexo biológico) é entendido na sociedade como representante do masculino (gênero social). Se nasce com o sexo biológico, mas não se nasce com o gênero social, ele é construído socialmente, variando de uma sociedade para outra as funções e características de cada.
Impõe-se que o homem represente o masculino: forte, frígido, provedor econômico e protetor de uma família ou grupo. Impõe-se que a mulher representa o feminino: frágil, sensível, cuidadora e zeladora de uma família ou grupo. A hierarquização dos gêneros existe tanto dentro da esfera privada quanto da pública.
O trecho a seguir, retirado do artigo “Mulher, trabalho e família: uma análise sobre a dupla jornada feminina e seus reflexos no âmbito familiar” por Ana Letícia de França e Édina Schimanski, elucida essas relações de gênero e as diferentes atividades de trabalho:
“As relações de gênero, portanto, se configuram numa construção social e cultural à medida que representam um processo contínuo da produção do poder de homens e mulheres nas diferentes culturas. Sendo assim, percebe-se que as diferenças de sexo repercutem diretamente nas relações de trabalho entre homens e mulheres. As atividades consideradas femininas estão sempre associadas com a função de reprodução, em geral, são as atividades que estão relacionadas ao espaço privado da família e à produção de valores de uso para o consumo familiar. Já as atividades destinadas à produção social e que são desenvolvidas no espaço público são tidas como uma atribuição masculina.”
Por ser associada ao cuidar e ao zelar, ao gênero feminino foi atribuído o trabalho privado/ doméstico, enquanto ao masculino foi atribuído o trabalho público por serem associados ao provedor econômico. Mais do que isso, como são vistas como “cuidadoras” e “mães”, as mulheres cuidam não apenas do lar, mas dos integrantes dele. Tendo menos tempo para cuidar de si próprias.
“Responsáveis pela maioria das horas trabalhadas em todo o mundo, as mulheres, generosamente, cuidam das crianças, dos idosos, dos enfermos, desdobrando-se em múltiplos papéis. Esquecidas de si mesmas, acabam por postergar um debate que se faz urgente: a divisão desigual das responsabilidades da família, a injustiça de sozinha, ter de dar conta de um trabalho de que todos usufruem.” Trecho extraído do artigo já citado de Ana Letícia de França e Édina Schimanski.
Propagandas e papéis de gênero
Muitas propagandas antes dos anos setenta (começo da segunda onda de movimentos feministas nos EUA — Estados Unidos da América) apresentam e perpetuam padrões de gênero, representando a visão da sociedade, não apenas nas relações de hierarquização social e afetiva entre homens e mulheres, mas, também, na esferas de trabalho a cada um atribuído.
Uma das propagandas sexistas mais famosas, e que envolve a atribuição da esfera privada de trabalho às mulheres é a do limpador “Tomorrow’s Lestoil” que, em 1968, expõe a imagem futurista com o título “A mulher do futuro fará da Lua um lugar limpo para se viver” (Tradução livre). Por outro lado, outras propagandas deixam explícitos os papéis de trabalho e de superioridade do homem.
A marca de roupas que ficou conhecida nos anos 50 pelo machismo explícito em suas propagandas é a “Van Heusen”, pertencente atualmente a companhia “PVH-Phillips-Van Heusen Corporation”, uma empresa americana de vestuário que possui marcas, além da Van Heusen, como: Tommy Hilfiger, Calvin Klein, IZOD, Arrow, Warner’s, Olga, True & Co. e Geoffrey Beene.
As gravatas “Van Heusen” tinha como título em sua propaganda a frase “Mostre para ela que o mundo é dos homens”. Em que o homem, ao acordar se prepara para ir trabalhar na esfera pública, com sua gravata “Van Heusen”, enquanto a mulher, em uma posição de submissão, preparou seu café da manhã, ou seja, trabalho na esfera privada. A propaganda não dá indícios que a mulher ocupa a esfera pública.
Ocupação feminina na esfera pública: uma conquista?
A inserção da mulher no mercado de trabalho aconteceu pelas necessidades e transformações econômicas que a sociedade enfrentava. Principalmente após as duas Grandes Guerras, a situação econômica dos países, o baixo índice de natalidade e a evasão de mão de obra masculina devido às guerras, empurraram a mulher para a esfera pública de trabalho, por necessidade econômica, tanto particular quanto nacional.
Isso aconteceu também no Brasil, em conjunto com a industrialização tardia nos anos setenta. Foi aí que a mulher brasileira começou a se inserir na esfera pública de jornada de trabalho. Como mencionado no artigo de Ana Letícia de França e Édina Schimanski, no caso brasileiro, de acordo com os dados da Fundação Carlos Chagas (2007), em 1970, apenas 18% das mulheres brasileiras trabalhavam. Contudo, em 2002, 50% delas estavam em atividade.
A crescente participação das brasileiras no esfera pública deve-se também à combinação de fatores tanto econômicos quanto culturais. A rebelião feminina no final dos anos 60, nos Estados Unidos e na Europa, influenciaram as brasileiras. A “Segunda Onda do Movimento Feminista” fez crescer a visibilidade das mulheres na política para além do voto — assegurado no Brasil em 1932 — mas, também, participarem como protagonistas. Mulheres na política vai ser um assunto tratado em outro artigo deste dossiê.
Efeitos das duas esferas
Dentro da nossa sociedade capitalista, o gênero social atribuí aspectos e valores para o trabalho, seja ele público ou privado. Silva Santos cita Monica Cristina Silva Santana, doutora em Ciências Sociais pela UFBA (Universidade Federal da Bahia):
“É importante esclarecer que a esfera privada de trabalho, que em grande maioria é exercido por mulheres, é caracterizada como trabalho não produtivo, ou seja, não criador de valor. Assim, esse trabalho se torna “desconhecido” frente à sociedade e frente aos companheiros dessas mulheres que não reconhecem o trabalho doméstico”.
Ou seja, o valor atribuído ao trabalho das mulheres, em qualquer uma das esferas, ou é visto como nulo ou visto como menos valoroso do que o do homem. Isso acontece devido aos padrões de gênero e ao modelo patriarcal. Se no âmbito privado não é reconhecido como trabalho, o serviço que realizam para todos, no âmbito público, seu valor é diminuído ao ser comparado com o trabalho do masculino.
Por mais que as mulheres tenham ocupado a esfera pública, isso não fez com que o homem exigisse a esfera privada. Devido esse fator, de interpretar a esfera privada como um serviço único, exclusivo e de natureza feminina, as mulheres abraçaram uma nova esfera de trabalho e permaneceram sujeitas a outra.
“É preciso desconstruir essa ideia de resignação, mulher não foi feita para servir. Todavia, há resistência masculina, em grande parte, no que se refere à realização do trabalho doméstico, pois não aceitam a desestabilização da sua hegemonia patriarcal, tendo em vista que muitos consideram a divisão do trabalho doméstico uma afronta, como se fosse ferir sua masculinidade [furto das construções sociais].” — Silva Santos.
Assim, a dupla jornada de trabalho se configura em padrões de gênero que se relacionam com as relações de trabalho em duas esferas. A mulher, ainda no século XXI, encontra barreiras para desmistificar seus padrões e da sociedade que atribuem para ela o trabalho privado.
Segundo a pesquisa feita por Silva Santos em seu artigo, muitas mulheres ainda possuem em sua consciência a obrigação de cuidar do lar, dos filhos e do marido, tendo a enquete realizada com frases.
Na frase 1: “Homens e mulheres deveriam igualmente dividir o trabalho doméstico”, 87% das entrevistadas concordam sendo que 11% discordam e 1% nem concorda e nem discorda.
Na frase 2: “Não importa quem faça o trabalho doméstico, desde que a mulher defina como fazer”, 71% concordam 24% discordam e 4% nem concorda nem discorda.
Na frase 3: “Os homens mesmo que queiram, não sabem fazer o trabalho de casa”, 55% concordam 39% discordam e 5% nem concorda nem discorda.
Na frase 4: “O cuidado com as pessoas doentes ou idosas que ficam em casa deve ser da mulher”, 54% concordam 42% discorda e 4% nem concordam e nem discordam.
Na frase 5: “É principalmente o homem que deve sustentar a família”, 65% concordam 32% discordam e 3% nem concorda e nem discorda.
Na frase 6: “Quando tem filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe fora e a mulher fique em casa”, 85% concordam 13% discordam e 2% nem concorda e nem discorda.
Logo, a dupla jornada de trabalho é naturalizada na sociedade. Tanto para o gênero masculino quanto o feminino, alguns papéis de gênero que moldam as esferas de trabalho e configuram a dual jornada, transformam mulheres em servos de trabalhos que não cabem somente a elas.
A interpretação dos gêneros como protagonistas únicos de alguma esfera específica de trabalho é o eixo da dupla jornada de trabalho feminino e do atual cansaço e descuido de muitas mulheres com si próprias. Elas diriam, com naturalidade, que não são tão tristes assim, afinal, hoje (como em tantos outros dias), estão cansadas.