“Eu não sou tão triste assim, é que hoje eu estou cansada.”

Ninguém nasce com dupla jornada de trabalho, naturaliza-se a dupla jornada de trabalho

Revista Torta
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8 min readMay 31, 2019

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Por Giovana Silvestri

Editado por Arthur Almeida e Rafael Junker

Parafraseando Simone de Beauvoir (1967), em “O Segundo Sexo”, ninguém nasce com dupla jornada de trabalho, naturaliza-se a dupla jornada de trabalho. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a dupla jornada que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora essa relação intermediária, e a entende como natural, entre a fêmea e as jornadas que qualificam o feminino.

O artigo de Taysa Silva Santos, “A condição feminina: Dupla Jornada de trabalho”, começa com duas citações que caracterizam a dupla jornada feminina, uma de Clarice Lispector, que compõe o título deste texto, “Eu não sou tão triste assim, é que hoje eu estou cansada” e outra de Elliane Martinez que caracteriza mais diretamente a condição de trabalho e vida do feminino na sociedade.

“[…] Tem o trabalho, tem os filhos, tem o marido, tem a casa… e eu, como fico? […] Aí um belo dia, a gente vai olhar a agenda e descobre que não tem tempo para nada que não seja trabalhar e cuidar dos outros. […] A gente tem de se permitir ser feliz”.

Esferas e Gêneros

Afinal, o que é a dupla jornada de trabalho? Existem, como comentado por Silva Santos, duas esferas de trabalho: a pública e a privada, por mais que ambas existam, os gêneros, o feminino e o masculino, ocupam diferentes tempos, ações e valores dentro de cada esfera. Essas diferenças foram naturalizadas na sociedade, devido aos padrões de gêneros, ao modelo patriarcal e ao sexismo.

A jornada de trabalho da esfera pública caracteriza-se por acontecer “fora do lar”, ou seja, é o trabalho diário para o sustento de um indivíduo ou da família. A jornada de trabalho da esfera privada caracteriza-se por acontecer “dentro do lar”, ou seja, são as tarefas domésticas de limpeza, zelo e manutenção de uma residência.

Devido às construções sociais de gênero, a sociedade pressupõe, impõe e articula tempo, ação e valores para cada gênero dentro das esferas de trabalho. O masculino e o feminino são os alicerces e alimentos para a existência da dupla jornada.

A mulher (sexo biológico) é entendida na sociedade como representante do feminino (gênero social), o homem (sexo biológico) é entendido na sociedade como representante do masculino (gênero social). Se nasce com o sexo biológico, mas não se nasce com o gênero social, ele é construído socialmente, variando de uma sociedade para outra as funções e características de cada.

Impõe-se que o homem represente o masculino: forte, frígido, provedor econômico e protetor de uma família ou grupo. Impõe-se que a mulher representa o feminino: frágil, sensível, cuidadora e zeladora de uma família ou grupo. A hierarquização dos gêneros existe tanto dentro da esfera privada quanto da pública.

O trecho a seguir, retirado do artigo “Mulher, trabalho e família: uma análise sobre a dupla jornada feminina e seus reflexos no âmbito familiar” por Ana Letícia de França e Édina Schimanski, elucida essas relações de gênero e as diferentes atividades de trabalho:

“As relações de gênero, portanto, se configuram numa construção social e cultural à medida que representam um processo contínuo da produção do poder de homens e mulheres nas diferentes culturas. Sendo assim, percebe-se que as diferenças de sexo repercutem diretamente nas relações de trabalho entre homens e mulheres. As atividades consideradas femininas estão sempre associadas com a função de reprodução, em geral, são as atividades que estão relacionadas ao espaço privado da família e à produção de valores de uso para o consumo familiar. Já as atividades destinadas à produção social e que são desenvolvidas no espaço público são tidas como uma atribuição masculina.”

Por ser associada ao cuidar e ao zelar, ao gênero feminino foi atribuído o trabalho privado/ doméstico, enquanto ao masculino foi atribuído o trabalho público por serem associados ao provedor econômico. Mais do que isso, como são vistas como “cuidadoras” e “mães”, as mulheres cuidam não apenas do lar, mas dos integrantes dele. Tendo menos tempo para cuidar de si próprias.

“Responsáveis pela maioria das horas trabalhadas em todo o mundo, as mulheres, generosamente, cuidam das crianças, dos idosos, dos enfermos, desdobrando-se em múltiplos papéis. Esquecidas de si mesmas, acabam por postergar um debate que se faz urgente: a divisão desigual das responsabilidades da família, a injustiça de sozinha, ter de dar conta de um trabalho de que todos usufruem.” Trecho extraído do artigo já citado de Ana Letícia de França e Édina Schimanski.

Propagandas e papéis de gênero

Fonte/ Reprodução: Propagandas históricas

Muitas propagandas antes dos anos setenta (começo da segunda onda de movimentos feministas nos EUA — Estados Unidos da América) apresentam e perpetuam padrões de gênero, representando a visão da sociedade, não apenas nas relações de hierarquização social e afetiva entre homens e mulheres, mas, também, na esferas de trabalho a cada um atribuído.

Fonte/ Reprodução: Propagandas históricas

Uma das propagandas sexistas mais famosas, e que envolve a atribuição da esfera privada de trabalho às mulheres é a do limpador “Tomorrow’s Lestoil” que, em 1968, expõe a imagem futurista com o título “A mulher do futuro fará da Lua um lugar limpo para se viver” (Tradução livre). Por outro lado, outras propagandas deixam explícitos os papéis de trabalho e de superioridade do homem.

A marca de roupas que ficou conhecida nos anos 50 pelo machismo explícito em suas propagandas é a “Van Heusen”, pertencente atualmente a companhia “PVH-Phillips-Van Heusen Corporation”, uma empresa americana de vestuário que possui marcas, além da Van Heusen, como: Tommy Hilfiger, Calvin Klein, IZOD, Arrow, Warner’s, Olga, True & Co. e Geoffrey Beene.

As gravatas “Van Heusen” tinha como título em sua propaganda a frase “Mostre para ela que o mundo é dos homens”. Em que o homem, ao acordar se prepara para ir trabalhar na esfera pública, com sua gravata “Van Heusen”, enquanto a mulher, em uma posição de submissão, preparou seu café da manhã, ou seja, trabalho na esfera privada. A propaganda não dá indícios que a mulher ocupa a esfera pública.

Ocupação feminina na esfera pública: uma conquista?

A inserção da mulher no mercado de trabalho aconteceu pelas necessidades e transformações econômicas que a sociedade enfrentava. Principalmente após as duas Grandes Guerras, a situação econômica dos países, o baixo índice de natalidade e a evasão de mão de obra masculina devido às guerras, empurraram a mulher para a esfera pública de trabalho, por necessidade econômica, tanto particular quanto nacional.

Isso aconteceu também no Brasil, em conjunto com a industrialização tardia nos anos setenta. Foi aí que a mulher brasileira começou a se inserir na esfera pública de jornada de trabalho. Como mencionado no artigo de Ana Letícia de França e Édina Schimanski, no caso brasileiro, de acordo com os dados da Fundação Carlos Chagas (2007), em 1970, apenas 18% das mulheres brasileiras trabalhavam. Contudo, em 2002, 50% delas estavam em atividade.

A crescente participação das brasileiras no esfera pública deve-se também à combinação de fatores tanto econômicos quanto culturais. A rebelião feminina no final dos anos 60, nos Estados Unidos e na Europa, influenciaram as brasileiras. A “Segunda Onda do Movimento Feminista” fez crescer a visibilidade das mulheres na política para além do voto — assegurado no Brasil em 1932 — mas, também, participarem como protagonistas. Mulheres na política vai ser um assunto tratado em outro artigo deste dossiê.

Efeitos das duas esferas

Dentro da nossa sociedade capitalista, o gênero social atribuí aspectos e valores para o trabalho, seja ele público ou privado. Silva Santos cita Monica Cristina Silva Santana, doutora em Ciências Sociais pela UFBA (Universidade Federal da Bahia):

“É importante esclarecer que a esfera privada de trabalho, que em grande maioria é exercido por mulheres, é caracterizada como trabalho não produtivo, ou seja, não criador de valor. Assim, esse trabalho se torna “desconhecido” frente à sociedade e frente aos companheiros dessas mulheres que não reconhecem o trabalho doméstico”.

Ou seja, o valor atribuído ao trabalho das mulheres, em qualquer uma das esferas, ou é visto como nulo ou visto como menos valoroso do que o do homem. Isso acontece devido aos padrões de gênero e ao modelo patriarcal. Se no âmbito privado não é reconhecido como trabalho, o serviço que realizam para todos, no âmbito público, seu valor é diminuído ao ser comparado com o trabalho do masculino.

Por mais que as mulheres tenham ocupado a esfera pública, isso não fez com que o homem exigisse a esfera privada. Devido esse fator, de interpretar a esfera privada como um serviço único, exclusivo e de natureza feminina, as mulheres abraçaram uma nova esfera de trabalho e permaneceram sujeitas a outra.

Vídeo retirado documentário da NETFLIX “Feministas: O Que Elas Estavam Pensando?”, o vídeo de 1972 aconteceu na “Womanhouse” um espaço para performances e arte feminista organizado por Judy Chicago e Miriam Schapiro, co-fundadoras do Programa de Arte Feminista do Instituto de Artes da Califórnia

“É preciso desconstruir essa ideia de resignação, mulher não foi feita para servir. Todavia, há resistência masculina, em grande parte, no que se refere à realização do trabalho doméstico, pois não aceitam a desestabilização da sua hegemonia patriarcal, tendo em vista que muitos consideram a divisão do trabalho doméstico uma afronta, como se fosse ferir sua masculinidade [furto das construções sociais].” — Silva Santos.

Assim, a dupla jornada de trabalho se configura em padrões de gênero que se relacionam com as relações de trabalho em duas esferas. A mulher, ainda no século XXI, encontra barreiras para desmistificar seus padrões e da sociedade que atribuem para ela o trabalho privado.

Segundo a pesquisa feita por Silva Santos em seu artigo, muitas mulheres ainda possuem em sua consciência a obrigação de cuidar do lar, dos filhos e do marido, tendo a enquete realizada com frases.

Na frase 1: “Homens e mulheres deveriam igualmente dividir o trabalho doméstico”, 87% das entrevistadas concordam sendo que 11% discordam e 1% nem concorda e nem discorda.

Na frase 2: “Não importa quem faça o trabalho doméstico, desde que a mulher defina como fazer”, 71% concordam 24% discordam e 4% nem concorda nem discorda.

Na frase 3: “Os homens mesmo que queiram, não sabem fazer o trabalho de casa”, 55% concordam 39% discordam e 5% nem concorda nem discorda.

Na frase 4: “O cuidado com as pessoas doentes ou idosas que ficam em casa deve ser da mulher”, 54% concordam 42% discorda e 4% nem concordam e nem discordam.

Na frase 5: “É principalmente o homem que deve sustentar a família”, 65% concordam 32% discordam e 3% nem concorda e nem discorda.

Na frase 6: “Quando tem filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe fora e a mulher fique em casa”, 85% concordam 13% discordam e 2% nem concorda e nem discorda.

Logo, a dupla jornada de trabalho é naturalizada na sociedade. Tanto para o gênero masculino quanto o feminino, alguns papéis de gênero que moldam as esferas de trabalho e configuram a dual jornada, transformam mulheres em servos de trabalhos que não cabem somente a elas.

A interpretação dos gêneros como protagonistas únicos de alguma esfera específica de trabalho é o eixo da dupla jornada de trabalho feminino e do atual cansaço e descuido de muitas mulheres com si próprias. Elas diriam, com naturalidade, que não são tão tristes assim, afinal, hoje (como em tantos outros dias), estão cansadas.

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