REPORTAGEM

HOMESCHOOLING FRENTE À REALIDADE DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei que regulamenta o ensino domiciliar. No entanto, a medida preocupa diversos setores da sociedade e especialistas alertam para os interesses por trás da medida.

Revista Torta
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Por Guilherme Matos

Editado por Arthur Almeida e Elisa Romera

Os interessados no ensino domiciliar correspondem a apenas 0,04% dos estudantes brasileiros, segundo estimativa da Associação Nacional de Ensino Domiciliar (ANED). || Arte: Julia Silva/Revista Torta

Semanas atrás, em Itumbiara (GO), uma professora da rede pública apresentava o livro “Pipo e Fifi: Ensinando proteção contra a violência sexual”, a obra faz parte de um projeto do município para prevenir o abuso e a exploração. O trabalho desenvolvido em sala ajuda os alunos a identificar “toques de sim ou não”, visto que as crianças têm dificuldades para identificar abusos. Durante a atividade, uma aluna afirmou que seu avô a tocava com o “toque do não”, a educadora então pediu para que ela desenhasse o acontecido. O relato da criança resultou na prisão do homem de 45 anos no dia 6 de junho.

Somente em 2022, o Projeto Prevenção e Qualidade de Vida com Amor Exigente de Itumbiara já identificou cinco casos semelhantes. Em 2019, de acordo com a coordenadora do projeto, Tânia Regina, foram identificados 132 casos.

Esse caso serve para exemplificar um dos papéis que a escola tem na vida de crianças e adolescentes. Muitas vezes, as famílias não conseguem (ou não querem, pois são eles mesmos os agressores) denunciar casos de abuso físico e sexual. Assim, os profissionais da educação precisam assumir esse papel e levar o acontecimento à justiça.

A importância dos educadores e da escola tornam-se ainda maiores nesta quadra da história. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelou um crescimento de 21,3% nos casos de maus-tratos a crianças e adolescentes em 2021.

O motivo para apresentar essas informações sobre escolas, crianças e adolescentes é o dia 18 de maio, dia em que a Câmara dos Deputados aprovou o homeschooling ou ensino domiciliar.

O QUE É O HOMESCHOOLING E COMO FUNCIONARIA NO BRASIL

Esse método consiste em substituir a escola pela casa da criança ou adolescente. Os tutores seriam os responsáveis por decidir quais matérias fariam parte da formação dos infantes. No Projeto de Lei (PL), é prevista a obrigatoriedade de que sigam o conteúdo da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), no entanto, os tutores podem optar por matérias adicionais.

Normalmente, os próprios tutores se responsabilizam por ministrar as aulas, mas dependendo do modelo adotado pela família ou comunidade, outras pessoas podem ser convidadas para dar aulas de determinadas disciplinas. A exigência da PL é que os responsáveis pelo estudante apresentem documentos que comprovem que possuem, no mínimo, Ensino Superior ou Educação Profissional Tecnológica.

Além disso, os pais devem formalizar a opção pelo método junto a uma instituição de ensino credenciada e realizar matrícula anual do aluno. O projeto também prevê que os responsáveis legais frequentem reuniões semestrais para compartilhar suas experiências junto a um docente responsável pelo desenvolvimento do aluno.

Os estudantes em homeschooling terão que participar de avaliações anuais de aprendizagem realizadas pela escola em que estão matriculados. O texto prevê que, caso o aluno reprove duas vezes seguidas ou três alternadas, terão que frequentar a escola e os pais perderão o direito de realizar o ensino domiciliar.

OS PERIGOS

[citação] “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. […] Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I — igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, descreve a Constituição Federal de 1988.

Lendo este trecho, é possível identificar inconstitucionalidades no PL. Além disso, em setembro de 2018, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) transformou o ensino domiciliar em uma prática ilegal.

Luiz Fux e Ricardo Lewandowski foram os mais críticos ao ensino em casa. Fux pontuou que afetaria os jovens das classes mais vulneráveis e facilitaria a construção de personalidades intolerantes.

A visão do ministro vai ao encontro com ONGs e especialistas na área. Um manifesto assinado por mais de 400 entidades ligadas à educação se posicionou contra o PL e alertou sobre a possibilidade de agravamento de desigualdades.

A Organização não-governamental (ONG) Conectas, que atua há mais de 20 anos protegendo os Direitos Humanos internacionalmente, publicou um texto em seu site no qual elenca alguns dos problemas que poderão ser gerados pela nova lei.

Além da questão da violência, eles também apontam para o papel da escola na formação do indivíduo. É nesse ambiente que a criança começa a entrar em contato com diferenças e a pluralidade, o que se torna um treino para o convívio em sociedade na vida adulta.

No entanto, o governo Bolsonaro, junto à bancada evangélica, comemorou sua aprovação na Câmara. Quais são os possíveis interesses do governo?

“GOVERNO FEDERAL: A CULPA É SEMPRE DOS OUTROS”

Na última década, se popularizou um discurso conservador sobre uma suposta “doutrinação de esquerda” nas escolas brasileiras. Ao lado da “ameaça comunista”, esse medo irracional gerou diversas pautas para extrema-direita gritar e dominar o discurso público.

Como exemplo, podemos citar os ataques ao legado de Paulo Freire, o delírio da escola sem partido e o violento combate à suposta “ideologia de gênero”.

Há anos, a direita vem desgastando a confiança da população em diversas instituições e ideais brasileiros. O primeiro alvo foi a classe política, a partir das Jornadas de Junho de 2013, e depois muitas outras se tornaram alvos, como foi o caso das escolas.

De acordo com pesquisa realizada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pelo Datafolha em maio deste ano, oito a cada dez brasileiros são contrários à substituição das escolas pelo ensino em casa.

Mesmo assim, a aprovação desta pauta estava listada entre as prioridades do Governo Federal desde o começo de 2021. A regulamentação do homeschooling era a única das 34 prioridades que versava sobre educação.

Existem alguns fatores que podem explicar porque Bolsonaro se interessa pela pauta, além do apelo que tem para sua base mais radicalizada.

O primeiro deles é o temor do avanço do concorrente sobre os evangélicos. Uma pesquisa divulgada no dia 25 de maio mostrou um avanço do ex-presidente Lula nesse segmento.

De acordo com levantamento do PoderData, entre os evangélicos, o atual presidente soma 46% das intenções de voto para o primeiro turno das eleições de 2022. Já o petista tem 33%. Na pesquisa anterior, realizada de 8 a 10 de maio, Bolsonaro aparecia com 52%.

Porém, também é possível relacionar essa pauta com a maneira que o Governo Bolsonaro tem de combater os problemas. A tática é simples: terceirizar a culpa.

A prática tornou-se tão comum que se tornou um meme popular após a CPI da COVID-19. || Fonte: Reprodução/Manuela D’Ávila

Disfarçando-se de uma suposta preocupação com os estudantes, o intuito é retirar a responsabilidade de si e jogar para as famílias. Essa afirmação é reiterada pelos dados de investimento na educação durante os últimos 4 anos.

Em 2020, por exemplo, o governo não gastou todo o orçamento previsto para o Ministério da Educação. Dos R$ 143 bilhões que poderiam ser utilizados, somente R$ 116,5 bilhões (81%) foram investidos, o menor valor desde 2011.

A Revista Piauí, em sua seção “=igualdades”, fez uma série de revelações sobre o dinheiro investido na educação. Segundo a apuração, o Brasil possui 2.485 escolas inacabadas que, desde 2008, consumiram cerca de R$ 1,7 bilhões. O dinheiro vai para materiais que se deterioram antes do uso e para empresas que não cumprem as licitações ou são impedidas de trabalhar por motivos políticos.

Mas esse desperdício será o menor dos problemas caso os dados sobre a evasão escolar continuem progredindo. O Censo Escolar de 2021 aponta que quase 2 milhões de alunos pararam de frequentar a creche, escola ou ensino médio nos últimos cinco anos.

Somente entre 2019 e 2021, mais de 650 mil crianças deixaram de frequentar creches e pré-escolas. Crianças de 5 a 9 anos são as que tiveram o maior índice de aumento da evasão escolar, passando de 1,4% para 5,5%. Esses dados, ainda que alarmantes, não foram alvos de políticas públicas pensadas para mitigar o problema ou atender às crianças.

O Orçamento de 2021, por exemplo, destinou 382 milhões de reais para compra de caminhões guindaste, carregadeiras, escavadeiras, motoniveladoras e rolos compactadores de uma empresa em Minas Gerais. Em contrapartida, foram apenas 50 milhões investidos na construção e ampliação de escolas de educação infantil.

O Governo Federal não se preocupou nem mesmo em providenciar alimentação adequada para crianças do Ensino Básico. Uma carta elaborada pelo Observatório da Alimentação Escolar (OEA), mostrou que o governo gastou menos de R$1,00 com a alimentação por aluno.

Os dados não são nada animadores, nem para os brasileiros, nem para o governo. Por isso, como em outros problemas que precisou enfrentar, o governo quer jogar para outro a responsabilidade. A ONG Todos Pela Educação pede que o governo mude sua postura:

“O Todos reafirma a defesa constitucional e meritória do papel da escola na formação e socialização de jovens e crianças e as limitações estruturais de monitoramento e regulação de tal prática. Em vez de propor o homeschooling no País, caberia ao Governo Federal liderar a inserção de temas estruturantes para a Educação Básica, essenciais para alcançarmos uma Educação Básica de qualidade, especialmente frente ao cenário atual pandêmico”.

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